parecer em ação direta de inconstitucionalidade
Processo n.º
0348562-21.2010.8.26.0000 (990.10.348562-9)
Autor: Governador do
Estado de São Paulo
Objeto de
impugnação: Lei n.º 2.922,
de 27 de junho de 2008, do Município de Paulínia.
Ementa: Ação direta de
inconstitucionalidade. Lei n.º 2.922, de 27 de junho de 2008, do Município de
Paulínia (Autoriza o Poder Executivo Municipal a conceder, em caráter de
exclusividade, de forma parcial ou total, os serviços públicos de abastecimento
de água e esgotamento sanitário do Município mediante concessão comum ou
parceria público–privada, precedida de licitação). Suscitada preliminar de
inviabilidade da ação por tratar-se, na espécie, de inconstitucionalidade
reflexa ou indireta, cuja aferição pressupõe o exame prévio de espécie
normativa infraconstitucional. No que tange ao mérito, verifica-se que o
Município de Paulínia está situado na Região Metropolitana de Campinas e, como
a prestação de tais serviços transcende o interesse meramente local, a referida
lei invadiu a esfera de competência do Estado de São Paulo. Precedentes do
TJ/SP. Ação procedente.
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,
Colendo Órgão Especial:
Cuida-se de ação – proposta pelo
Governador do Estado de São Paulo – na qual se pretende ver declarada a
inconstitucionalidade da Lei n.º 2.922, de 27 de junho de 2008, do Município de
Paulínia, que reza o seguinte:
Segundo consta na inicial, as ações
municipais em matéria de saneamento não podem extrapolar o âmbito meramente
local, competindo ao Estado o gerenciamento dos serviços regionais. Assim, ao
editar o ato normativo em questão, que regulamenta aspectos relacionados à
prestação de serviços de saneamento básico, o Município de Paulínia –
integrante da Região Metropolitana de Campinas, consoante o art. 1.º da Lei
Complementar Estadual n.º 870, de 19 de junho de 2000 – extrapolou o âmbito de
sua competência, invadindo a esfera de atuação estadual, donde saíram
contrariados os arts. 1.º, 152, inciso IV, e parágrafo único, 153, caput, e § 1.º, 154, caput, 205, caput, e inciso V, e 216, caput,
e § 2.º, da Constituição do Estado de São Paulo.
Houve concessão de liminar (fl. 187,
verso), motivando a interposição – pelo Município de Paulínia – de Agravo
Regimental, ao qual, porém, foi negado provimento (fls. 277/282).
Nas suas informações, o Município de Paulínia
reafirma o seu interesse apenas nos serviços de distribuição e comercialização
de água e coleta de esgotos, do trecho municipal. A questão é controvertida. Na
doutrina, há quem entenda que o serviço de saneamento deva ser gerenciado como
um todo, pelo Estado, mas há quem entenda também que algumas etapas desse
serviço (distribuição domiciliar de água e coleta domiciliar de esgoto) podem
permanecer sob o domínio municipal.
A Carta em vigor não atribui,
expressamente, a qualquer dos entes federativos a competência exclusiva para a
prestação do serviço de saneamento básico, tratando-se, aliás, de competência
comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. No plano
infraconstitucional, a Lei n.º 5.318/67 instituiu a Política Nacional de
Saneamento e no Estado de São Paulo foi editada a Lei Complementar n.º
7.750/92, que possibilita a atuação estatal nas regiões metropolitanas. A
inconstitucionalidade, na espécie, não resulta do confronto direto da lei com a
Constituição Estadual, mas sim é indireta ou reflexa, porquanto sua aferição
depende do exame prévio de norma infraconstitucional.
Assim, preliminarmente, requer a extinção do
processo sem julgamento de mérito. Mas, se for superada a preliminar, o
Município de Paulínia sustenta que os serviços de saneamento básico são de
competência municipal, ante a predominância
do interesse local. A própria Constituição Estadual, no seu art. 293, autoriza
os Municípios atendidos pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São
Paulo a criar e organizar os seus serviços autônomos de água e esgoto. Cita
doutrina e jurisprudência favoráveis ao seu posicionamento, enfatizando, por
fim, que das 19 (dezenove) cidades que compõem a Região Metropolitana de
Campinas apenas 4 (quatro) são atendidas pela SABESP, o que evidencia o interesse
puramente econômico do Estado de São Paulo na preservação do status quo.
Em resumo, é o que consta nos autos.
Doutos
Desembargadores,
a controvérsia, no caso em análise, resume-se ao seguinte: A Prefeitura
Municipal de Paulínia quer assumir o controle dos serviços de distribuição de
água e coleta de esgotos, mas o Estado de São Paulo resiste a essa pretensão,
porquanto entende que, presente o interesse regional, é da sua exclusiva
competência a execução desses serviços na Região Metropolitana de Campinas.
A questão encerra dificuldades,
apresentando divergência no campo doutrinário.
Com efeito, há quem entenda que os
serviços de saneamento básico podem ser divididos em etapas ou parcelas
(captação, adução, tratamento e distribuição por atacado de água para consumo).
Quando estas etapas ou parcelas puderem receber provimento adequado por parte dos Municípios, como a distribuição domiciliar
de água e a coleta domiciliar de esgoto, continuam de interesse local e sob o
domínio municipal (Cf. ALAOR CAFFE ALVES,
Saneamento Básico – Concessões, Permissões e Convênios Públicos, p. 202).
Do lado oposto, estão os que entendem que
nas regiões metropolitanas não é possível a prestação isolada dos serviços de
saneamento básico, relativamente a cada Município (Cf. LUIS ROBERTO BARROSO, Saneamento básico: competências
constitucionais da União, Estados e Municípios, p. 265; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição
brasileira”, Saraiva, São Paulo, 1986, pp.671/672; EROS GRAU, Regiões metropolitanas: regime jurídico. São Paulo: J.
Bushatsky, 1974, pp.16/17), só podendo a sua titularidade ser atribuída ao
Estado.
Antes de adotar um posicionamento a
respeito desse tema, peço vênia para tecer algumas considerações prévias a
respeito da ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal com
fundamento no art. 125, § 2.º, da Carta Republicana.
No âmbito dos Estados, nunca é demais
lembrar, o controle abstrato de constitucionalidade das leis ou atos normativos
municipais e estaduais é exercido pelo Tribunal de Justiça, o qual se utiliza
de parâmetros obtidos exclusivamente da Carta Estadual.
Prima
facie,
a Constituição do Estado de São Paulo não define, em termos expressos, de quem
é a competência para prestar os serviços de saneamento básico nas regiões
metropolitanas, apenas dispondo, no seu art. 153, caput, que “o território estadual poderá ser dividido, total ou
parcialmente, em unidades regionais constituídas por agrupamentos de Municípios
limítrofes, mediante lei complementar,
para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de
interesse comum, atendidas as respectivas peculiaridades”.
É verdade que na inicial foi argumentado
corretamente que “a competência do Estado em relação aos serviços de interesse
comum regional decorre logicamente das regras constitucionais regedoras da
integração das regiões metropolitanas”. Mas tal menção não é suficiente para
tornar viável esta ação direta, máxime porque cabe à lei complementar instituir
as regiões metropolitanas e, por isso, a conclusão de inconstitucionalidade
dependerá sempre do exame prévio dessa espécie normativa infraconstitucional, o
que, porém, não se admite no controle normativo abstrato.
Esse raciocínio pode ser assim resumido: 1. o Estado entende que é sua a
competência para a prestação dos serviços de saneamento básico nas regiões
metropolitanas; 2. o
Município defende a sua participação em algumas etapas ou fases dos serviços,
no que seja do seu interesse; 3.
as regiões metropolitanas são instituídas por lei complementar;
É entendimento assente no STF que:
"Não cabe ação direta quando o ato normativo questionado, hierarquicamente
inferior à lei, deve ser confrontado diretamente com a legislação ordinária e
só indiretamente com a Constituição, pois, neste caso, cuida-se de
ilegalidade e não de inconstitucionalidade". (ADIn 1.883-CE, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA)
Ainda que se queira entrever, na
insubmissão do Município de Paulínia à exploração dos serviços exclusivamente
pelo Estado de São Paulo, um conflito de competências, o que transformaria a controvérsia
numa questão constitucional, a presente ação não seria viável, dado que tal
conflito só poderia ser solucionado com a interpretação da Constituição Federal
e não da Carta Paulista, que nada dispõe a esse respeito.
Entretanto, e para o caso de ser superada
a objeção preliminarmente oposta, no mérito o parecer é favorável ao
reconhecimento da inconstitucionalidade da lei em discussão.
Com efeito, se cabe ao Estado, mediante
lei complementar, instituir regiões metropolitanas, constituídas por agrupamentos
de municípios limítrofes, e avocar para si a organização, o planejamento e a
execução de funções públicas de interesse comum, na forma do permissivo do §
3.º do art. 25 da Constituição Federal, e art. 153, caput, da Constituição Paulista, não há que se falar em primazia do
interesse local.
Em primoroso estudo sobre o tema, o
jurista CAIO TACITO anotou que “a
avocação estadual de matéria ordinariamente municipal não viola a autonomia do
Município na medida em que se fundamenta em norma constitucional, ou seja, em
norma de igual hierarquia.”, concluindo, em seguida, que “é a própria
Constituição que, ao mesmo tempo, afirma e limita a autonomia municipal”. (Cf.
“Saneamento Básico – Região Metropolitana, Competência Estadual”, in BDA - Boletim de Direito
Administrativo – Junho de 2002, p. 454)
Assim, em se tratando de municípios
limítrofes, uma vez que o Estado exerça a prerrogativa constitucional de
constituir a região metropolitana, por meio de lei complementar, não vejo como
possa ser recusada a sua competência exclusiva para a “organização, o
planejamento e a execução dos serviços de saneamento básico”, não podendo ser
invocada a autonomia municipal, que, nesses casos, cede ao interesse regional.
Demais disso, na conjuntura econômica
atual, em que sobram problemas e faltam recursos, a iniciativa do Município de Paulínia
de assumir etapas ou parcelas dos serviços de saneamento básico não parece
estar afinada aos valores prestigiados pela Constituição em vigor, como a
eficiência, a economicidade e o interesse público.
É bem de ver, por fim, que nada impede o
Estado e o Município de unirem-se em torno de um objetivo comum, exigindo-se
apenas para o sucesso dessa iniciativa a plena integração e o planejamento das
ações, sob comando único, e não ações desconexas, que visem tão somente à
satisfação de interesses políticos subjacentes.
Bem a propósito, ao examinar proposituras
semelhantes, nas ADIs 139.229.0/4-00 e 109.600.0/3-00, o Órgão Especial desse
egrégio Tribunal de Justiça acolheu as ponderações do Governador do Estado de
São Paulo e reconheceu a competência estadual para operar os serviços de
interesse regional.
Em face do exposto, proponho a extinção
prematura desse processo de fiscalização abstrata, pois nele não cabe a
avaliação de inconstitucionalidade indireta, ou, caso contrário, a procedência
da presente ação, com a declaração de inconstitucionalidade da Lei n.º 2.922/2008,
do Município de Paulínia, por afronta aos arts. 1.º, 152, inciso IV, e
parágrafo único, 153, caput, e § 1.º,
154, caput, 205, caput, e inciso V, e 216, caput,
e § 2.º, da Constituição do Estado de São Paulo.
São Paulo, 22 de julho
de 2011.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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