Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade
Autos nº. 0403127-32.2010.8.26.0000
Requerente: Prefeito do Município de Sales
Objeto: Inconstitucionalidade do art. 156 da Lei n. 872, de 25 de setembro de 1992, do Município de Sales.
Ementa:
1. Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, do art. 156 da Lei n. 872, de 25 de setembro de 1992, do Município de Sales. Dispositivo que garante benefício de indenização ao funcionário municipal demitido tanto por iniciativa do Poder Público, quanto a seu pedido.
2. Benefício incompatível com o interesse público (art. 128 da CE).
3. Violação do princípio da moralidade administrativa (art. 111 da CE).
4. Parecer pela procedência da ação.
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Sales em face do art. 156 da Lei n. 872/92, que instituiu o regime jurídico dos funcionários públicos do Município de Jales, garantindo indenização ao funcionário público municipal demitido por iniciativa do Poder Público, bem como por sua própria iniciativa (exoneração).
Sustenta o autor que o dispositivo legal viola o princípio da moralidade ao premiar servidor demitido pelas mais variadas razões e aquele que pede exoneração.
O pedido liminar foi deferido a fls. 58/59.
Contra referida decisão, a Câmara Municipal de Sales interpôs agravo regimental, cujo provimento foi negado (fls. 131/137).
Irresignada, a Câmara Municipal de Sales interpôs embargos de declaração, os quais não foram acolhidos (fls. 169/173).
O Presidente da Câmara Municipal de Sales prestou informações, defendendo a constitucionalidade do ato (fls. 140/142).
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 183/184).
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
O art. 156 da Lei n. 872/92, que instituiu o regime jurídico dos funcionários públicos do Município de Sales, apresenta a seguinte redação:
“(....)
Art. 156- O funcionário demitido terá direito de perceber no ato de sua demissão, se por iniciativa do poder municipal independente do motivo ou causa, a título de indenização valor correspondente a um salário mínimo do mês vigente para cada ano de serviço prestado, acrescido de 10% (dez percentuais), em um único pagamento; e se a demissão for de iniciativa do próprio funcionário, receberá 60% (sessenta percentuais) do valor apurado.
(....)”
O artigo em destaque, como será visto a
seguir, é incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, máxime com as
seguintes disposições:
“Art. 111 – A administração pública direta,
indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos
princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade,
razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.
Art.
128 – As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e
quando atendam efetivamente ao interesse público e às exigências do serviço.
Art.
144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e
financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios
estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”
A
Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa
indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização
político-administrativa e lhe garantindo plena autonomia, como se nota, aliás, da exegese dos arts. 1.º, 18, 29,
30 e 34, VI, “c” da CF (Cf. Alexandre de Moraes, “Direito Constitucional”,
Atlas, São Paulo, 7.ª ed., p. 261).
Na definição de José Afonso da Silva, autonomia “é a capacidade ou poder de gerir os próprios negócios, dentro de um
círculo prefixado por entidade superior”, representada no caso pela Constituição
(Cf. Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros, São Paulo, 1992, p.
545).
Ou
seja, essa autonomia consagrada ao
Município, pela vigente Constituição, não tem caráter absoluto e soberano; ao
contrário, ela encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e
dos pactos fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (Cf. De Plácido
e Silva, Vocabulário Jurídico, Forense, Rio de Janeiro, Volume I, 1984, p.
251).
A
autonomia municipal assenta-se em
quatro capacidades básicas: (a)
auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria, (b) autogoverno, pela eletividade do
Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência
de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua
competência exclusiva e suplementar, (d)
autoadministração ou administração própria, para manter e prestar os serviços
de interesse local (Silva, José Afonso, ob. cit., p. 546).
Nessas
quatro capacidades encontram-se caracterizadas a autonomia política
(capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa
(capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a
autonomia administrativa
(administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia
financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas
rendas, que é uma característica da autoadministração) (Silva, José Afonso, ob.
e loc. cits).
Contudo,
a liberdade conferida aos Municípios – para gerir os seus próprios assuntos,
aplicar as suas rendas e editar leis sobre matérias de sua competência – não é
ampla e ilimitada, pois autonomia não é sinônimo de soberania, mas está sim
subordinada aos limites estabelecidos na própria Constituição.
Na
espécie, verifica-se que o Poder Executivo editou dispositivo de lei garantindo
indenização tanto ao funcionário público municipal demitido, quanto ao que
pediu exoneração.
Segundo
a lei ora impugnada, em caso de demissão por iniciativa do poder municipal
independentemente do motivo ou causa, o funcionário público demitido terá
direito, a título de indenização, ao valor correspondente a um salário mínimo
do mês vigente para cada ano de serviço prestado, acrescido de 10% (dez por
cento).
Já
para o funcionário que pede sua própria demissão (exoneração), será garantido a
título de indenização 60% (sessenta por cento) do valor apurado.
Sem
sobra de dúvidas o referido dispositivo malfere os princípios da moralidade, da
razoabilidade e do interesse público, visto que o funcionário público que foi
demitido pelo Poder Público acaba sendo, de fato, premiado com a mencionada
indenização que se afigura totalmente imoral e desarrazoada.
Note-se
ser inconcebível que o funcionário municipal que foi demitido pelo Poder
Público Municipal, pela prática das mais variadas infrações administrativas,
receba qualquer tipo de indenização, tendo em vista a própria natureza de sua
demissão.
Sem
falar que referido benefício serve de incentivo aos “maus servidores”, posto
que cientes que no caso de serem demitidos terão direito à citada indenização,
que dependendo dos anos de serviço público por eles prestados, poderá ser
extremamente vultuosa.
O
mesmo raciocínio deve ser feito em relação aos servidores municipais que
requerem suas próprias demissões, na medida em que não existe nenhuma
justificativa para que sejam, por tal razão, indenizados.
Nos
dois casos a indenização garantida lesa o erário municipal, mantido com a
arrecadação de tributos e outras receitas em geral, o que torna ilógica, sob o
prisma da moralidade, da razoabilidade e do interesse público, a manutenção dos
aludidos benefícios.
É
de sabença geral que o homem público age em nome do Estado, não podendo
favorecer ninguém, devendo assegurar a igualdade e a moralidade perante a lei, sob
pena de invalidade dos atos que praticar.
De
igual modo, no exercício de sua função normativa, o legislador deve observar o
princípio da moralidade na lei, estando, assim, impedido de instituir benesses
injustificáveis, desarrazoadas, como no caso em tela, a expensas do erário
municipal.
Nada
justifica, com a devida venia, a
adoção de tratamento tão privilegiado a quem é demitido ou pede exoneração.
Desta
feita, o princípio da moralidade foi seriamente abalado, porquanto a lei não pode autorizar que o
governante aja sem isenção, em defesa de interesses privados, negligenciando os
interesses da sociedade, dos quais deveria se ocupar.
Para
Hely Lopes Meirelles, “a moralidade
administrativa integra o Direito, como
elemento indissociável na sua aplicação e na sua finalidade,
erigindo-se em fator de legalidade.” (Cf. Direito Administrativo
Brasileiro, Malheiros, São Paulo, 200,3, 28.ª edição, atualizada por Eurico de
Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, p. 89)
Por
sua vez, Lúcia Valle Figueiredo assevera que “o princípio da moralidade corresponde ao conjunto de regras de conduta
da Administração que, em determinado ordenamento jurídico, são consideradas os
standards comportamentais que a sociedade deseja e espera.” (Cf. Curso de
Direito Administrativo, Malheiros, 9.ª edição, 2008, p. 57)
Tamanha
liberalidade com recursos públicos, num país que ostenta uma das maiores cargas
tributárias do mundo, mas muito pouco devolve à sociedade em termos de saúde,
educação, segurança, etc., constitui verdadeiro acinte, que merece rigorosa
reprovação do Poder Judiciário.
Tanto o legislador como o
administrador público estão subordinados às normas e princípios
constitucionais, conforme previsto no art. 111 da Carta Estadual.
Há
que se considerar, por outro lado, a parca situação financeira do pequeno Município
de Sales.
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido de se reconhecer a procedência desta ação direta de inconstitucionalidade, declarando-se a inconstitucionalidade do art. 156 da Lei n. 872, de 25 de setembro de 1992, do Município de Sales.
São Paulo, 30 de janeiro
de 2012.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de
Justiça
Jurídico
vlcb