Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo n.o 0450856-54.2010 (990.10.450856-8)

Autora: Federação Brasileira dos Bancos – FEBRABAN

Objeto de impugnação: Lei n.o 5.416, de 26 de agosto de 2008, do Município de Indaiatuba.

                       

 

EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade – Lei n.̊ 5.416, de 26 de agosto de 2008, do Município de Indaiatuba – Preliminar de ilegitimidade ativa ‘ad causam’ – A FEBRABAN, entidade de classe de âmbito nacional, não possui legitimidade para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal (CF, art. 125, § 2.̊), só reconhecida em favor das entidades de classe com atuação estadual ou municipal – Inteligência do art. 90, inciso V, da Carta Estadual – Extinção do processo sem julgamento do mérito – As ‘leis de polícia’ não são de iniciativa reservada ao Executivo – A vedação prevista no art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo não obriga o Legislativo, que, inclusive, pode autorizar a realização de despesas não previstas no orçamento – A matéria sobre a qual a Câmara legislou, relativa à proteção e segurança dos usuários de serviços bancários, não é de competência da União – Precedentes do STF – A Lei Federal n.̊  7.102/1983 não se ocupou da instalação de sistema eletrônico de monitoramento e gravação em circuito fechado nos estabelecimentos bancários, inexistindo, assim, bloqueio de competência com relação a essa matéria – Os Municípios dispõem de competência para suplementar a legislação federal (CF, art. 30, II) – Lei que visa à proteção dos usuários de serviços bancários não é arbitrária ou incompatível com a razoabilidade, nem há indicativo seguro de que foi editada com desvio de poder – As garantias do ato jurídico perfeito e direito adquirido possuem assento na Constituição Federal e sua definição é encontrada na Lei de Introdução ao Código Civil, os quais, porém, não servem de parâmetro de controle válido em ação direta de inconstitucionalidade de lei municipal (CF, art. 125, § 2.̊) – Inexistência de direito adquirido contra o interesse público – Precedentes do TJSP – Ação improcedente.

 

Colendo Órgão Especial,

Eméritos Desembargadores:

 

                   Cuida-se de ação direta – ajuizada pela FEBRABAN – na qual se questiona a validade jurídico-constitucional de Lei n.o 5.416, de 26 de agosto de 2008, do Município de Indaiatuba, originária de projeto de lei de autoria do Vereador Gervásio Aparecido da Silva, que ‘Dispõe sobre a obrigatoriedade de sistema de monitoramento de segurança por imagem, interna e externa, nas instituições financeiras, caixas eletrônicos e dá outras providências ’, cuja redação é a seguinte:

 

 

                   Segundo reza inicial, a lei em epígrafe é incompatível com a Constituição porque: [a] disciplina matéria que é de iniciativa reservada ao Executivo; [b] não houve indicação de recursos próprios ao atendimento dos novos encargos; [c] os Municípios não dispõem de competência para fixar regras sobre segurança bancária; [d] existe bloqueio de competência sobre a matéria, que vem disciplinada na Lei Federal n.o 7.102/1983; [e] contém previsão desarrazoada, arbitrária e foi editada com desvio de finalidade e [f] atenta contra as garantias do ato jurídico perfeito e direito adquirido, à medida que só poderia alcançar os estabelecimentos bancários licenciados após sua edição, mas nunca os  anteriores.

                   Houve concessão de liminar (fl. 81-verso).

                            Citado para os fins do art. 90, § 2.o, da Carta Paulista, o Procurador-Geral do Estado optou por não proceder à defesa da norma ora impugnada, que disciplina matéria exclusivamente local, inexistindo, assim, interesse estadual na sua preservação (fls. 106/107).

                            Nas informações prestadas, a Câmara e o Prefeito Municipal de Indaiatuba saíram em defesa da validade da norma ora verberada e os seus argumentos resumem-se ao seguinte: a lei referida na inicial não criou/alterou cargos, tampouco incrementou despesas; a matéria nela regulamentada é de interesse local; não houve violação à garantia do ato jurídico perfeito; a exigência por ela estabelecida não é arbitrária ou desarrazoada; a jurisprudência assente nas Cortes superiores já se posicionou favoravelmente à competência municipal para fixar normas relativas ao bem-estar e à segurança dos usuários dos serviços bancários.

 

                                  Em resumo, é o que consta nos autos.

 

                   Preliminarmente: a FEBRABAN, entidade de classe de âmbito nacional, não detém legitimidade para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade no plano estadual (CF, art. 125, § 2.o), porquanto o art. 90, inciso V, da Constituição do Estado de São Paulo é expresso ao conferir tal legitimidade somente às entidades de classe de atuação estadual ou municipal, desde que evidenciado seu interesse jurídico no caso (pertinência temática).

                   Assim, pela ordem, requer-se a extinção deste processo de fiscalização abstrata.

                   No mérito, em que pese à argumentação exposta na inicial, a ação é improcedente.

                   Com efeito, o Poder Público pode condicionar e restringir o exercício de atividades e direitos individuais, em proveito da coletividade ou do próprio Estado, o que constitui típica manifestação do poder de polícia, na exata definição de HELY LOPES MEIRELLES (Cf. ‘Direito Administrativo Brasileiro’, Malheiros, 28.a edição, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, pág. 127).

                   Essa atuação estatal se justifica sempre que houver algum interesse relevante da coletividade ou do próprio Estado, como é a segurança pessoal dos usuários de serviços bancários, que serviu de norte à edição da lei municipal ora contestada.

                   O enunciado do princípio da legalidade consagra que ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’ (CF, art. 5.o, II) e, nessa conformidade, somente a lei poderia tornar obrigatória a instalação de sistema de monitoramento de segurança por imagem, interna e externa, nas instituições financeiras e caixas eletrônicos.

                   Acerca dos meios de atuação do poder polícia, HELY LOPES MEIRELLES (ob. cit., pág. 134) anotou que: ‘... a polícia administrativa atua de maneira preferentemente preventiva, ela age através de ordens e proibições, mas, e sobretudo, por meio de normas limitadoras e sancionadoras da conduta daqueles que utilizam bens ou exercem atividades que possam afetar a coletividade, estabelecendo as denominadas limitações administrativas. Para tanto, o Poder Público edita leis e os órgãos executivos expedem regulamentos e instruções fixando as condições e requisitos para o uso da propriedade e o exercício das atividades que devam ser policiadas (g.n.), e após as verificações necessárias é outorgado o respectivo alvará de licença ou autorização, ao qual se segue a fiscalização competente’.

                   Ora, como não há reserva de iniciativa em matéria de poder de polícia, e para chegar-se a tal conclusão basta conferir o rol previsto no art. 24, § 2.̊, itens 1 a 6, da Constituição Paulista, a iniciativa da Câmara Municipal de Indaiatuba deve ser tida por válida.

                   Nesse particular, aliás, a argumentação exposta na inicial é contraditória, pois, inicialmente, afirmou-se que a Câmara usurpou prerrogativa que é própria da função executiva, qual seja a de desencadear o processo legislativo nos casos expressos na Constituição, com indicação de afronta ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes, mas, nos tópicos subsequentes, a discussão encaminhou-se para a falta de competência municipal para legislar sobre segurança bancária e o bloqueio de competência, por se tratar, na espécie, de matéria já disciplinada na Lei Federal n.o 7.102/1983.

                   Ocorre, porém, que esses fundamentos são excludentes entre si, pois se a Câmara legislou sobre matéria de competência da União (segurança bancária), o que se admite tão somente para argumentar, é evidente que nem mesmo se essa lei derivasse de projeto de iniciativa do Prefeito ela seria válida, ao passo que o reconhecimento de que houve vício de iniciativa, a contrario sensu, implica na admissão de que o tema é de competência municipal.

                   Na verdade, porém, é insubsistente o argumento de invasão da órbita de competência da União. A uma, porque a lei municipal em questão nada dispôs sobre segurança bancária. A duas, porque a Lei Federal n.o 7.102/1983 não trata da matéria disciplinada na Lei n.o 5.416/2008 e, além disso, por força do art. 30, inciso II, da Constituição da República, os Municípios dispõem de competência para suplementar a legislação federal, ‘no que couber’. A três, porque existem certas atividades que interessam simultaneamente a todas entidades federativas e o poder de regular e de policiar se difunde entre todas as Administrações interessadas, provendo cada qual nos limites de sua competência territorial (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, ob. cit., pág. 126), e, à míngua de regulamentação do tema na órbita federal, inexiste óbice ao exercício da competência municipal.  

                   De igual modo inconsistente a alegação de vício de iniciativa, pois a lei em questão não criou/alterou cargos ou funções, nem aumentou a despesa pública, ao contrário do sustentado na inicial, cujo subscritor transpôs os limites da abstração para extrair da norma consequências de ordem prática que, porém, não derivam de sua direta interpretação. 

                   Sem conhecer a organização administrativa e a estrutura dos órgãos públicos municipais, o subscritor da inicial parte da afirmação dogmática de que a aplicação concreta da norma resultará na criação de cargos e funções e no aumento da despesa pública, procurando extrair, dessa consequência, a reserva de iniciativa em favor do Executivo.

                   Nem poderia agir diferentemente, pois, do contrário, ele teria muita dificuldade em identificar, dentre as matérias relacionadas no art. 24, § 2.o, 1 a 6, da Constituição Estadual, o empecilho à iniciativa da Câmara de impor obrigação ao particular, o que é próprio da lei, conforme anotado inicialmente, por força do princípio da legalidade.

                   Em matéria de poder de polícia, a competência do Executivo resume-se, basicamente, à expedição de regulamentos e instruções com a fixação das condições e requisitos para o exercício das atividades que devam ser policiadas (Cf. HELY LOPES MEIRELLES, ob. cit., p. 34), mas a restrição ou condicionamento só poderá derivar da lei, que não é reservada a nenhum Poder, não se podendo olvidar, demais, que, por constituir exceção ao princípio da iniciativa geral ou concorrente, os casos de iniciativa reservada são somente aqueles expressamente previstos na Constituição, impossibilitando, assim, que, por meio de esforço exegético incomum, conforme exposto na inicial, outras matérias sejam submetidas ao domínio exclusivo do Prefeito, o que, se for admitido por essa Egrégia Corte, caracterizará grave afronta ao princípio da independência e harmonia entre os Poderes. 

                   Por esse aspecto, aliás, a inconstitucionalidade seria indireta ou reflexa, o que é insuscetível de aferição no controle abstrato de normas, à medida que o subscritor da inicial não apontou nenhum dispositivo constitucional estadual garantidor da reserva de iniciativa em favor do Executivo das matérias que versem a regulamentação do poder de polícia.          

                   Não bastasse isso, a jurisprudência trazida à colação pelo Prefeito Municipal de Indaiatuba sinaliza que ‘o Município pode editar legislação própria, com fundamento na autonomia constitucional que lhe é inerente (CF, art. 30, I), com o objetivo de determinar, às instituições financeiras, que instalem em suas agências, em favor dos usuários dos serviços bancários (clientes ou não), equipamentos destinados a proporcionar-lhes segurança (tais como portas eletrônicas e câmaras filmadoras) ou a propiciar-lhes conforto, mediante oferecimento de instalações sanitárias, ou fornecimento de cadeiras de espera, ou, ainda, colocação de bebedouros’ (nesse mesmo sentido: AI 347.717-AgR/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

                   Tal precedente firmado pela mais Alta Corte Judiciária desse país, a qual foi encarregada da grave missão de proferir a palavra final em matéria de interpretação da Carta Fundamental, é bastante elucidativo e serve para afastar de vez o argumento contido na inicial no sentido de que o Município de Indaiatuba usurpou competência própria da União.

                   Em resumo: a Câmara legislou sobre matéria de interesse local e sobre a qual não paira reserva de iniciativa; a obrigação imposta ao particular, típica manifestação do poder de polícia estatal, somente poderia derivar de lei e o Prefeito participou ativamente do processo de formação da norma ora impugnada, ao sancionar o projeto de lei que lhe foi encaminhado, evidenciando-se, assim, sua aquiescência à iniciativa parlamentar.

                   No mais, cumpre observar que a restrição prevista no art. 25 da Constituição Estadual (‘Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos’) é endereçada exclusivamente ao Executivo, detentor do poder de sanção ou veto, mas não à Câmara, cujos representantes podem acolher ou rejeitar o veto aposto e, até mesmo, autorizar a realização de despesas não expressamente previstas no orçamento. 

                   De mais a mais, a ausência de especificação de recursos não gera a inconstitucionalidade da norma, podendo, quando muito, diferir a sua aplicação para momento futuro, após ser superada a dificuldade momentânea de caixa, o que revela a insubsistência dessa fundamentação, que vem servindo à eliminação de inúmeras normas válidas.

                   Quanto à alegação de afronta ao ato jurídico perfeito e direito adquirido, é bem de ver que o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo já se posicionou no sentido de que ‘ninguém adquire direito contra o interesse público’ (RJTJSP 128/391) e, por outro lado, a Constituição Estadual não reproduziu os direitos e garantias fundamentais inscritos no art. 5.o, e seus incisos, da Constituição Federal, de modo que o acolhimento de tal fundamentação implica confronto direto da norma impugnada com a Carta Magna, em desacordo, porém, com o disposto no seu art. 125, 2.o, além de tipificar nítida invasão na esfera de competência do Supremo Tribunal Federal, a quem cabe proferir a palavra final sobre o tema.

                   Como se não bastasse, apesar de expressamente consagrados na Constituição, a definição de ato jurídico perfeito e direito adquirido remete ao art. 6.o, §§ 1.o e 2.o, da Lei de Introdução ao Código Civil, tornando-se, assim, praticamente impossível determinar se a norma em questão fere direitos e garantias fundamentais com a singela interpretação da Carta Constitucional Estadual, que, aliás, nem se ocupou desse assunto.     

                   Por fim, o argumento de que a lei em discussão é desarrazoada, desproporcional e padece de desvio de finalidade não comporta acolhimento, pois há perfeita adequação entre a iniciativa e o fim almejado pela norma (proteção dos usuários de serviços bancários), além de o meio empregado não se revelar excessivo, à medida que as atividades exercidas pelas instituições bancárias são as mais lucrativas do país e não há empecilho, portanto, à adoção de medidas que visem à melhoria das condições de segurança dos usuários de seus serviços, soando desarrazoada a objeção apresentada nesse sentido.

                   Nessas circunstâncias, o Ministério Público aguarda o acolhimento da preliminar suscitada, ante a ilegitimidade ativa ad causam, ou, no mérito, a improcedência desta ação direta de inconstitucionalidade, à medida que a matéria legislada é de competência municipal e a Câmara não usurpou competência que é própria da função executiva.

 

São Paulo, 29 de abril de 2011.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

krcy