Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Autos nº. 0494241-52.2010 (990.10.494241.1)

Requerente: Prefeito do Município de Taubaté

Objeto: Lei Complementar nº 224, de 29 de junho de 2010, do Município de Taubaté

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, da Lei Complementar nº 224, de 29 de junho de 2010, do Município de Taubaté, que “altera a Lei Complementar nº 1, de 4 de dezembro de 1990, para determinar o estabelecimento de cronograma de nomeação nos editais de concursos públicos dos órgãos públicos municipais da cidade”. Projeto de vereador. Usurpação das funções do Prefeito, a quem compete a iniciativa das leis que tratam de servidores públicos e do provimento de seus cargos. Violação dos artigos 5.º; 24, § 2º, inciso 4; e 144, da Constituição do Estado de São Paulo. Precedentes. Parecer pela declaração de inconstitucionalidade.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito, tendo por objeto a Lei Complementar nº 224, de 29 de junho de 2010, do Município de Taubaté, que “altera a Lei Complementar nº 1, de 4 de dezembro de 1990, para determinar o estabelecimento de cronograma de nomeação nos editais de concursos públicos dos órgãos públicos municipais da cidade”.

O autor sustenta que a lei, derivada de projeto de vereador, altera regras pertinentes aos concursos públicos, determinando a fixação, em edital, de cronograma detalhado das nomeações planejadas e instituindo o direito subjetivo dos candidatos aprovados à nomeação, segundo o referido cronograma.

Aponta o desrespeito ao processo legislativo constitucional, salientando que compete exclusivamente ao Prefeito a iniciativa de leis que disponham sobre servidores públicos e provimento de cargos, a teor do art. 24, § 2º, 4, da Constituição do Estado. Divisa, ainda, ofensa ao princípio da separação dos poderes (art. 5º, CE).

O pedido liminar foi indeferido (fls. 53).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 65/77. Defendeu a constitucionalidade do ato normativo, argumentando que as Cortes Superiores vêm reconhecendo o direito subjetivo de nomeação dos candidatos aprovados, de acordo com o número de vagas estabelecidas em edital. A lei, destarte, confere transparência ao processo de seleção.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 59/60).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A lei em análise promoveu o acréscimo dos §§ 3º e 4º ao art. 66 da Lei Complementar nº 1, de 4 de dezembro de 1990, nos seguintes termos:

art. 66 - ...

(...)

§ 3º - O prazo de validade do concurso e as condições de sua realização, incluindo o quantitativo de vagas a serem obrigatoriamente preenchidas no decorrer do prazo de validade do certame e o cronograma detalhado de nomeações planejadas, serão fixados em edital, que será publicado no Diário Oficial do Município e em jornal diário de grande circulação.

§ 4º - Observado o cronograma fixado na forma do § 3º, os candidatos aprovados dentro do número de vagas previsto no edital têm direito à nomeação.

A iniciativa, embora inspirada nos mais legítimos propósitos, acabou usurpando as funções do Prefeito e não subsiste na ordem constitucional vigente.

Cuida-se, como se vê, de lei que trata de servidores públicos e provimento de seus cargos, cujo projeto foi subscrito por Vereador, com inequívoca afronta aos artigos 5.º; 24, § 2º, inciso 4; e 144, da Constituição do Estado de São Paulo, a seguir transcritos:

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição (...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

(...)

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, reforma e transferência de militares para a inatividade;

(...)

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Com efeito, a disciplina normativa pertinente aos servidores públicos e ao provimento de seus cargos, incluindo as regras relativas ao concurso público, insere-se, por sua essência, na esfera de exclusiva iniciativa do Chefe do Poder Executivo.

Esse entendimento tem o respaldo da jurisprudência:

Ação direta de inconstitucionalidade. Lei estdual 9.717, de 20 de agosto de 1992, do Estado do Rio Grande do Sul, que veda o estabelecimento de limite máximo de idade para inscrição de canditados nos concursos públicos realizados por órgãos da Administração Direta e Indireta do Estado: procedência. A vedação imposta por lei de origem parlamentar viola a iniciativa reservada ao Poder Executivo (CF, art. 61, § 1º, II, c), por cuidar de matéria atinente ao provimento de cargos públicos (ADI 776, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 2-8-2007, Plenário, DJ de 6-9-2007).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N. 847/2000, DO MUNICÍPIO DE CARAGUATATUBA, DE INICIATIVA PARLAMENTAR, QUE DISPÕE SOBRE REGRAS DE CONCURSO PÚBLICO. VÍCIO DE INICIATIVA. COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO EXECUTIVO. AFRONTA AOS ARTS. 5º E 24, § 2º, I e IV, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL E ARTS. 2º e 61, § 1º, II, c, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO. NÃO PODE O LEGISLATIVO MUNICIPAL IMISCUIR-SE NA SEARA DO EXECUTIVO, QUE LHE É AFETA POR MEIO DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL (ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL E ART. 2º DA CARTA MAGNA), A QUEM COMPETE EXCLUSIVAMENTE A INICIATIVA DE LEIS QUE DISPONHAM SOBRE O REGIME JURÍDICO, O QUAL, EM VIRTUDE DA EXTENSÃO DE SUA ABRANGÊNCIA CONCEITUAL, COMPEENDE TODAS AS REGRAS PERTINENTES AOS SERVIDORES, NELAS INCLUÍDAS A CRIAÇÃO E O PROVIMENTO DE CARGOS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (ART. 24, § 2º, I e IV, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL E ART. 61, § 1º, II, c, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL) (ADI n. 0027842-09.2010.8.26.0000, j. 22.9.2010, rel. Des. RENÊ RICUPERO).

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N° 6.505, DE 13 DE FEVEREIRO DE 2006, DO MUNICÍPIO DE FRANCA QUE "DISPÕE SOBRE A ISENÇÃO DA TAXA DE INSCRIÇÃO NOS CONCURSOS PÚBLICOS, REALIZADOS PELA PREFEITURA MUNICIPAL DE FRANCA, AOS CANDIDATOS COM BAIXA RENDA FAMILIAR OU PORTADORES DE NECESSIDADES ESPECIAIS". ATO NORMATIVO DE INICIATIVA DE VEREADOR QUE INVADE SEARA PRÓPRIA DO PREFEITO, NO QUE TOCA AO GERENCIAMENTO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS. NATUREZA DE PREÇO PÚBLICO DA COBRANÇA DlSPENSADA. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO EXECUTIVO. AUSÊNCIA DE ESPECIFICAÇÃO DOS RECURSOS PARA SEU ATENDIMENTO. VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS  5o, 25, 144, 159, PARÁGRAFO ÚNICO, TODOS DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. PRECEDENTE DESTA CORTE. PEDIDO JULGADO PROCEDENTE (ADIN n. 160.027-0/1, j. 25.06.2008, rel. Des. OSCARLINO MOELLER).

Ação direta de inconstitucionalidade - Ajuizamento pelo Prefeito de Mauá - Lei municipal n. 4.024/06, de iniciativa parlamentar, que proíbe a realização de concursos públicoS aos sábados - Vício de iniciativa configurado, consubstanciando invasão da esfera de competência do Executivo - Criação, ademais, de despesas sem previsão de recursos - Inadmissibilidade - Violação dos artigos 5º, 25 144, da Constituição do Estado de São Paulo. Inconstitucionalidade configurada - Ação procedente (ADIN n. 9031863-11.2006.8.26.0000, j. 11.4.2007, rel. Des. Walter de Almeida Guilherme).

E da doutrina:

As referidas matérias cuja discussão legislativa depende da iniciativa privativa do Presidente da República (CF, art. 61, § 1º) são de observância obrigatória pelos Estados-membros que, ao disciplinar o processo legislativo no âmbito das respectivas Constituições estaduais, não poderão afastar-se da disciplina constitucional federal.

Assim, por exemplo, a iniciativa reservada das leis que versem o regime jurídico dos servidores públicos revela-se, enquanto prerrogativa conferida pela Carta Política ao Chefe do Poder Executivo, projeção específica do princípio da separação dos poderes, incidindo em inconstitucionalidade formal a norma inscrita em Constituição do Estado que, subtraindo a disciplina da matéria ao domínio normativo da lei, dispõe sobre provimento de cargos que integram a estrutura jurídico-administrativa do Poder Executivo local (Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 23ª. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 646).

Esse panorama conduz à ofensa ao princípio basilar da separação de poderes, pois, no dizer desse Sodalício:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

Nem mesmo o argumento da Presidência da Câmara Municipal – no sentido de que a normatização se ajusta ao entendimento dos tribunais quanto ao direito subjetivo do candidato aprovado no certame de ser nomeado para o cargo pleiteado – nos convence.

Na verdade, a lei impugnada vai muito além de declarar o direito à nomeação, invadindo o campo reservado à discricionariedade administrativa.

É o que ocorre, por exemplo, quando impõe a elaboração do “cronograma detalhado de nomeações planejadas” ou a divulgação do edital em jornal diário de grande circulação, providência, aliás, absolutamente dispensável se a publicidade foi conferida pelo Diário Oficial (RE 390.939, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 16-8-2005, Segunda Turma, DJ de 9-9-2005).

Sob tal enfoque, é forçoso reconhecer que o ato normativo cria despesas sem indicação da fonte de custeio, em desacordo, também, com a regra do art. 25 da Carta Paulista.

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 224, de 29 de junho de 2010, do Município de Taubaté, que “altera a Lei Complementar nº 1, de 4 de dezembro de 1990, para determinar o estabelecimento de cronograma de nomeação nos editais de concursos públicos dos órgãos públicos municipais da cidade”.

 

São Paulo, 22 de Julho de 2011.

                                    

 

        Sérgio Turra Sobrane

        Subprocurador-Geral de Justiça

        Jurídico

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