Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 0.565.393-63-2010 (990.10.565393-6)

Requerente: Prefeito Municipal de Marília

Objeto: Lei nº 5.853, de 17 de junho 2004, do Município de Marília

 

Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal. Iniciativa parlamentar. Determinação para que a Empresa de Desenvolvimento Urbano e Habitacionais de Marília - EMDURB efetue o levantamento de pesquisas a respeito de acidentes de trânsito e aloque agentes orientadores até a instalação de semáforos nos cruzamentos de vias.  2) Ofensa ao princípio da separação dos Poderes.  Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa (arts. 5º, 47, II e XIV, da Constituição Paulista).  3) Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Marília, tendo por objeto a Lei nº 5.853, de 17 de junho 2004, daquele Município, que “Dispõe sobre sinalização e orientação por parte da EMDURB nos pontos onde não houver semáforo e que apresente incidência igual ou superior a sete acidentes anuais com ou sem vítimas, até que seja implantado o sinal de trânsito”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 59 e vº).

O Presidente da Câmara Municipal deixou transcorrer "in albis" o prazo para informações (fls. 72).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 68/70).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Em que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente incompatível com nossa sistemática constitucional.

Este é o teor do ato normativo impugnado:

“Art. 1º - Fica autorizada a Empresa de Desenvolvimento Urbano e Habitacionais de Marília - EMDURB a efetuar o levantamento de pesquisas e números estatísticos anuais para verificar a quantidade de acidentes causados com ou sem vítimas em cruzamentos nas vias pertencentes ao município de Marília.

Art. 2º - A EMDURB será responsável pelo levantamento e cadastramento de acidentes, conforme o artigo 1º desta lei e deverá publicar mensalmente seus balanços e pesquisas em locais e repartições públicas que possuam vínculo com este mesmo órgão de trânsito.

Art. 3º - Verificada a incidência igual ou superior a sete acidentes anuais com ou sem vítimas, em qualquer via do município de Marília tornar-se-á obrigatório a presença diária de agentes orientadores do GAT nestes locais, sempre nos horários críticos do trânsito ou que apresentem maiores probabilidades de ocorrerem novos acidentes conforme os números estatísticos colhidos pela própria EMDURB até que seja implantado o semáforo nos locais necessários.

Art. 4º - Ao término do ano em que houve a necessidade de utilização dos serviços prestados pelos agentes do GAT em uma via do município, a EMDURB ficará responsável pela manutenção destes agentes de trânsito por tempo indeterminado, até que seja implantado o semáforo nos locais necessários.

Art. 5º - Para fins de cumprimento e fiscalização desta lei, ficam eleitos as diversas entidades e sindicatos que representam a população, bem como o Ministério Público Estadual e a Câmara Municipal de Marília.

Art. 6º - As comunicações das irregularidades tratadas nesta lei, não poderão ser anônimas e deverão ser apresentadas as autoridades competentes que representam todos os seguimentos da sociedade assim como o Ministério Público Estadual e a Câmara Municipal de Marília.

Art. 7º - O não cumprimento desta lei municipal acarretará aos administradores a perda do cargo, e aos órgãos responsáveis o pagamento pecuniário de multas e indenizações às vítimas ou familiares destas que se sentirem lesados e procurarem a justiça para que esta repare suas perdas.

Art. 8º - Se caracterizada como crime a falta de veracidade nas informações prestadas competentes a comunicação e providências a serem tomadas com relação a existência de fraudes, seja na comunicação de acidentes ou nas pesquisas e levantamentos dos mesmos.

Art. 9º - Os recursos para a implantação e manutenção desta lei, bem como a contratação, deslocamento, e estrutura para dar apoio logístico aos agentes de trânsito deverão vir da arrecadação das multas de trânsito."

 

         A lei, de iniciativa parlamentar, cria obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas pela Administração Pública, prevendo a obrigação de efetuar o levantamento de pesquisas a respeito de acidentes de trânsito e alocar agentes orientadores até a instalação de semáforos nos cruzamentos de vias.

Não há dúvida de que, como tal, a iniciativa parlamentar, ainda que revestida de boas intenções, invadiu a esfera da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional, por violar o disposto no art. 5º e no art. 47, II e XIV, da Constituição Paulista.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, na hipótese analisada, criou obrigações de cunho administrativo para a Administração Pública local.

Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando quea Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

 

            E, mais recentemente, assim se fez constar no despacho que deferiu a liminar na ADIn 990.10.073579-9:

         "Impõe-se, à partida, a apreciação do pedido liminar, que fica deferido.

         Evidente o fumus boni júris, pois já proclamada na ADIN nº 154.526-0/0 (Rel. EROS PICELI - J. 08.10.2008 - V.U.), ser inconstitucional lei de vereadora iniciativa que cria obrigação para o Poder Executivo de utilização de papel reciclado.

         Digo o mesmo quanto ao periculum in mora, poquanto a obrigação imposta ao promovente de regulamentar a norma impugnada deveras implica, na prática, em sujeição, se não imediata, quase, a interferência, in casu descabida, o planejamento da administração no que tange a execução dos procedimentos licitatórios visando às aquisições de materiais de expedientes para o ano em exercício.

         Ademais, não faz o menor sentido manter a eficácia e a vigência, ainda que potenciais, eis que minguante sua regulamentação, certamente, porém, capazes de gerar ao menos atritos entre Legislativo e Executivo locais, de norma que ostenta palpável vício de inconstitucionalidade formal."   (ADIn 990.10.073579-9, rel. des. Palma Bisson, j. 1º.03.2010)

            Não bastasse o acima exposto, o artigo 5º, ao impor ao Ministério Público Estadual o dever de fiscalização do cumprimento dos preceitos estabelecidos na Lei impugnada, viola o disposto no art. 94, inc. I, da Constituição do Estado de São Paulo.

         Ocorre que, de acordo com a norma acima aludida, a iniciativa de lei (complementar) que disponha sobre as atribuições do Ministério Público é exclusiva do Procurador-Geral de Justiça.

         Por fim, os artigos 7º e 8º também embutem inconstitucionalidade.  O primeiro ao prever a perda do cargo aos administradores que não observarem os preceitos da Lei impugnada; e o segundo por criar tipificação criminal, matérias que são reservadas à União, nos termos do art. 22, inc. I, da Constituição Federal.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 5.853, de 17 de junho 2004, do Município de Marília.

São Paulo, 17 de maio de 2011.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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