Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 0580120-27.2010 (990.10.580120-0)

Requerente: Prefeito Municipal de Jundiaí

Objeto: Inconstitucionalidade  do art. 2º, caput  e seus parágrafos, da Lei Municipal n. 7.335, de 10 de setembro de 2009, de Jundiaí

 

 

 

 

 

 

 

Ementa:

1) Ação direta de inconstitucionalidade.  Art. 2º, caput e seus parágrafos, da Lei Municipal n. 7.335, de 10 de setembro de 2009, de Jundiaí, de iniciativa parlamentar, que assegura acesso de cães-guias aos locais que especifica.

2) Processo objetivo. Causa de pedir aberta. Possibilidade de reconhecimento da inconstitucionalidade por fundamento não apontado na inicial.

3) Matéria de competência concorrente da União e dos Estados (art. 24, XIV da CF), excluídos os Municípios, que vem regulamentada na Lei Federal n. 11.126, de 27 de junho de 2005 e no Decreto n.º 5.904, de 21 de setembro de 2006. (arts. 5.º e 7.º). O fato da legislação impugnada apresentar conteúdo análogo ao da legislação federal de regência da matéria  não justifica sua preservação. Normas editadas por entes federativos sem competência não podem subsistir, ainda que similares às normas editadas pelo ente federativo com competência para tanto, porquanto o vício é de forma (inconstitucionalidade formal: orgânica) e não de conteúdo. Possibilidade de adoção de normas remissivas como parâmetros de controle de constitucionalidade no âmbito estadual. Precedentes do STF .

4) Ademais, trata-se de ato normativo que cria ônus para a Administração decorrente do dever de fiscalizar. Violação ao princípio da separação dos poderes. Criação de despesas, sem indicação dos recursos disponíveis.

5) Ofensa aos artigos 5º, 47, II, e 144 da Constituição do Estado.

6) Parecer pela declaração da inconstitucionalidade da Lei n. 7.335, de 10 de setembro de 2009, do Município de Jundiaí.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Jundiaí, tendo como alvo o art. 2º, caput e seus parágrafos da Lei Municipal n. 7.335, de 10 de setembro de 2009, de Jundiaí, de iniciativa parlamentar, que “assegura acesso de cães-guia aos locais que especifica”.

Sustenta o requerente a inconstitucionalidade do referido dispositivo legal afirmando que o mesmo afronta os arts. 5º, 25, 111 e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.

Foi concedida liminar para a suspensão do ato normativo impugnado (fls. 32/34).

Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de oferecer defesa em relação ao ato normativo (fls. 45/47).

A Câmara Municipal prestou informações defendendo a constitucionalidade do dispositivo legal impugnado (fls. 49/58).

É o relato do essencial.

 A ação procede.

É necessário observar, inicialmente, que a inicial da ação direta aponta para a inconstitucionalidade apenas quanto ao art. 2º, caput e seus parágrafos da Lei Municipal n. 7.335, de 10 de setembro de 2009, de Jundiaí.

Nada impede, entretanto, em função da abertura da causa de pedir na ação direta, que a inconstitucionalidade da lei seja reconhecida por fundamentos distintos daqueles que foram alegados na inicial.

A ação direta estadual é processo objetivo de verificação da incompatibilidade entre a lei e a Constituição do Estado. Por essa razão é possível aferir-se a ilegitimidade constitucional do ato normativo impugnado à luz de preceitos e fundamentos constitucionais estaduais não mencionados na petição inicial.

Adota-se, nesse passo, a denominada “abertura da causa de pedir” no controle concentrado de constitucionalidade.

A propósito, anota Juliano Taveira Bernardes que no processo objetivo, “Segundo o STF, o âmbito de cognoscibilidade da questão constitucional não se adstringe aos fundamentos constitucionais invocados pelo requerente, pois abarca todas as normas que compõe a Constituição Federal. Daí, a fundamentação dada pelo requerente pode ser desconsiderada e suprida por outra encontrada pela Corte” (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 436).

Assim vem decidindo o Col. STF:

“(...)

Ementa: constitucional. (...). 'Causa petendi' aberta, que permite examinar a questão por fundamento diverso daquele alegado pelo requerente. (...) (ADI 1749/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, Rel. p. acórdão Min. NELSON JOBIM, j. 25/11/1999, Tribunal Pleno , DJ 15-04-2005, PP-00005, EMENT VOL-02187-01, PP-00094, g.n.).

(...)”

Confira-se ainda, nesse mesmo sentido: ADI 3576/RS, Rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 22/11/2006, Tribunal Pleno, DJ 02-02-2007, PP-00071, EMENT VOL-02262-02, PP-00376.

O art. 2º, caput e seus parágrafos, da Lei n. 7.335, de 10 de setembro de 2009, do Município de Jundiaí, apresenta a seguinte redação:

“Art. 2º - O descumprimento desta lei, além das sanções penais e/ou cíveis cabíveis, implicará multa no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), dobrada na reincidência.

§1º - O valor da multa será atualizado anualmente, em 1º de janeiro, pela variação positiva do índice Nacional de Preços ao Consumidor-INPC, apurado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE ou outro que venha a substituí-lo.

§2º - O estabelecimento que persistir na infração sofrerá interdição temporária até que cesse a irregularidade”.

 

O dispositivo legal em questão prevê a imposição de multas e de interdição temporária do estabelecimento para o caso de descumprimento.

Em que pese inspirada em nobre propósito, não só o dispositivo legal inicialmente questionado como toda a Lei n. 7.335/2009 são inconstitucionais.

 

 

Com efeito, a Lei n. 7.335, de 10 de setembro de 2009, de Jundiaí, assegura acesso de cães-guia aos locais que especifica.

Ocorre, porém, que a matéria sobre a qual a Câmara legislou (acesso de cães-guias aos locais que especifica) vem disciplinada na Lei Federal n. 11.126, de 27 de junho de 2005 e pelo Decreto n. 5.904, de 21 de setembro de 2006, que a regulamentou.

A circunstância de a Câmara haver reproduzido parcialmente os preceitos do Decreto n.º 5.904, de 21 de setembro de 2006, não é suficiente para validar, em parte, as normas que foram simplesmente repetidas, pois a discussão sobre a constitucionalidade ou não de tais disposições não tem a ver propriamente com o seu conteúdo, mas sim com a sua forma, visto que, se as disposições contrastadas apresentam conteúdo análogo, torna-se relativamente fácil a tarefa de identificar que o Município de Jundiaí legislou sobre matéria de competência concorrente da União e dos Estados (CF, art. 24, XIV).

Assim, se os Municípios dispusessem de competência concorrente com a União para legislar sobre regras de repartição de competências, o que se admite somente para argumentar, a eventual omissão desta resultaria na competência legislativa plena daqueles. Mas, na espécie, como se trata de competência concorrente da União e dos Estados, é defeso aos Municípios legislar sobre esse tema e a consequência, em caso de inobservância desse preceito, é a invalidade da norma.             

 

 

Portanto, ainda que o conteúdo da Lei n. 7.335/2009 se assemelhe ao do Decreto n.º 5.904/2006, deve ser declarada formalmente inconstitucional, não podendo ser mantida, até mesmo sob pena de gerar grave insegurança jurídica, visto que, se o acesso de cães-guias a locais que especificam  as regras locais, em detrimento das disposições do Decreto n.º 5.904/2006, haverá sempre a possibilidade de questionamento judicial da regularidade desse procedimento.

Na verdade, sob a perspectiva eminentemente jurídica, é inviável a coexistência da legislação impugnada com o Decreto                         n.º 5.904/2006, pois as regras de repartição de competências da Constituição Federal sinalizam que à União e aos Estados compete de modo concorrente a função de legislar sobre proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência (art. 24, XIV, CE), de tal modo que qualquer norma editada por municípios, relativamente a essa matéria, não tem como subsistir na ordem jurídico-constitucional vigente.

Volta-se a insistir: a inconstitucionalidade neste tópico identificada é a formal, ou seja, a entidade que editou a regra não dispõe de competência para tanto, e não a material, o que torna indiferente à resolução da controvérsia a circunstância de as disposições ora impugnadas apresentarem conteúdo análogo ao da legislação federal de regência da matéria (Decreto n.º 5.904/2006).

Por outro lado, é necessário definir se a norma remissiva do art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo, que manda os municípios atenderem aos princípios estabelecidos da Constituição Federal, pode ser utilizada isoladamente como parâmetro de controle de constitucionalidade na presente ação direta.

Essa questão foi enfrentada pelo STF, no julgamento da Rcl. n.º 3906/SP (rel. Min. GILMAR MENDES), no qual se admitiu adoção de normas remissivas como parâmetros válidos de controle de constitucionalidade nas ações processadas perante os Tribunais Estaduais, ‘verbis’:  

                       ‘Sobre a problemática da aptidão das normas remissivas para compor o parâmetro de controle em abstrato de constitucionalidade no âmbito do Estado-membro, cito novamente as lições de Leo Leoncy (Controle de constitucionalidade estadual. São Paulo: Saraiva, 2006, no prelo): “A elevação da Constituição do Estado-membro a parâmetro único e exclusivo do controle abstrato de normas estaduais torna oportuna a discussão acerca das normas constitucionais estaduais que podem ser consideradas idôneas para efeito de se realizar esse controle. O que se quer saber é se tal controle pode ser realizado em face de todas as normas da Constituição Estadual ou se, ao contrário, haveria algum tipo de norma que, em razão da sua natureza, não pudesse servir de parâmetro normativo idôneo. Nesse sentido, assume especial relevo a discussão acerca das chamadas normas jurídicas remissivas presentes nas diversas Constituições Estaduais. Em sua grande maioria, as normas jurídicas trazem elas próprias a regulamentação imediata da matéria a que concernem, merecendo, por isso, a denominação de normas de regulamentação direta ou, em fórmula mais sintética, normas materiais. Por outro lado, em contraposição a estas normas, há outras em que a técnica utilizada para a atribuição de efeitos jurídicos a determinado fato contido na hipótese normativa é indireta, “consistindo numa remissão para outras normas materiais que ao caso se consideram, por esta via, aplicáveis”. Tais normas podem designar-se normas de regulamentação indireta ou normas per relationem, sendo mais apropriado, entretanto, denominá-las normas remissivas. Essa classificação das normas jurídicas em geral aplica-se também às normas constitucionais em particular, sendo possível, portanto, proceder à distinção entre normas constitucionais materiais e normas constitucionais remissivas, “consoante encerram em si a regulamentação ou a devolvem para a regulamentação constante de outras normas”. Como não poderia deixar de ser, fenômeno semelhante ocorre com as normas contidas nas diversas Constituições Estaduais. É comum o poder constituinte decorrente fazer constar das Constituições Estaduais um significativo número de proposições jurídicas remissivas à Constituição Federal. O uso de tais fórmulas acaba por revelar muitas vezes a intenção daquele constituinte de transpor para o plano constitucional estadual a mesma disciplina normativa existente para uma determinada matéria no plano constitucional federal. Diante dessa constatação, coloca-se o problema de saber se tais proposições jurídicas remissivas constantes das Constituições Estaduais configuram parâmetro normativo idôneo para o efeito de se proceder, em face delas, ao controle da legitimidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais perante os Tribunais de Justiça dos Estados. Uma das dificuldades encontradas radica no fato de que, para se revelar o conteúdo normativo da norma estadual de remissão, em face da qual se impugna a lei ou ato normativo local, seria necessário valer-se antes do(s) dispositivo(s) da Constituição Federal mencionado(s) ou remetido(s). Nesses termos, a norma constitucional estadual não possuiria conteúdo próprio, por não revelar sentido normativo autônomo. (...) Nesta hipótese, a questão que se coloca pode ser assim formulada: seria possível impugnar por meio de ação direta, perante Tribunal de Justiça, lei ou ato normativo local por violação ao princípio da isonomia previsto na Constituição Federal e ao qual, segundo aquela proposição remissiva genérica, a Constituição do Estado-membro faz referência? O Supremo Tribunal Federal enfrentou essa questão no julgamento do RE n° 213.120/BA, Re. Min. Maurício Corrêa, DJ 2.6.2000, diante de norma remissiva constante da Constituição do Estado da Bahia (art. 149), que possui o seguinte teor: “O sistema tributário estadual obedecerá ao disposto na Constituição Federal, em leis complementares federais, em resoluções do Senado Federal, nesta Constituição e em leis ordinárias”. Na ocasião, o Tribunal entendeu que tal norma não poderia figurar como parâmetro de controle de constitucionalidade perante o Tribunal de Justiça estadual. O julgado está assim ementado: “EMENTA: CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE LEI MUNICIPAL. PRESSUPOSTOS. HIPÓTESE DE NORMAS QUE FAZEM MERA REMISSÃO FORMAL AOS PRINCÍPIOS TRIBUTÁRIOS CONSTITUCIONAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A simples referência aos princípios estabelecidos na Constituição Federal não autoriza o exercício do controle abstrato da constitucionalidade de lei municipal por este Tribunal. 2. O ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante esta Corte só é permitido se a causa de pedir consubstanciar norma da Constituição Estadual que reproduza princípios ou dispositivos da Carta da República. 3. A hipótese não se identifica com a jurisprudência desta Corte que admite o controle abstrato de constitucionalidade de ato normativo municipal quando a Constituição Estadual reproduz literalmente os preceitos da Carta Federal. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido para declarar o autor carecedor do direito de ação.” Porém, esse posicionamento foi superado no julgamento da RCL n° 733/BA, na qual o Tribunal, por unanimidade de votos, seguiu o voto do Ministro Ilmar Galvão, relator, no sentido de que as normas pertencentes à Constituição estadual, que remetem à disciplina de determinada matéria na Constituição Federal, podem servir de parâmetro de controle abstrato de constitucionalidade no âmbito estadual. No caso, tratava-se do art. 5º, caput, da Constituição do Estado do Piauí, que possui o seguinte teor: “O Estado assegura, no seu território e nos limites de sua competência, a inviolabilidade dos direitos e garantias fundamentais que a Constituição Federal confere aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país”. Sobre o acerto desse novo posicionamento do Tribunal, Leo Leoncy tece os seguintes comentários, em análise crítica da decisão proferida anteriormente no RE n° 213.120: “Em face de tal decisão (proferida no RE n° 213.120), convém perguntar se o uso de normas remissivas pelo constituinte estadual, para disciplinar determinada matéria que em outras normas elaboradas pelo constituinte federal já teve sua disciplina amplamente formulada, inviabiliza a defesa processual daquelas, em controle abstrato, perante o Tribunal de Justiça. Para resolver essa questão, é preciso desenvolver um pouco mais a noção de norma jurídica remissiva, para, ao final, tecerem-se algumas conclusões a respeito. Para isso, far-se-á uso dos conhecimentos disponíveis em teoria geral do direito. A remissão por meio de proposições jurídicas é um recurso técnico-legislativo de que o legislador se vale para evitar repetições incômodas. Proposições jurídicas dessa natureza “remetem, tendo em vista um elemento da previsão normativa ou a conseqüência jurídica, para outra proposição jurídica”. Daí porque tais proposições serem consideradas como proposições jurídicas incompletas. Consideradas isoladamente, tais proposições carecem de maior significado, apenas o adquirindo em união com outras proposições jurídicas. Daí se afirmar que as proposições jurídicas incompletas são apenas partes de outras proposições normativas. Para Larenz, “[t]odas as proposições deste género são frases gramaticalmente completas, mas são, enquanto proposições jurídicas, incompletas”. Não obstante, tais normas são válidas, são tidas como direito vigente, recebendo sua força constitutiva, fundamentadora de conseqüências jurídicas, quando em conexão com outras proposições jurídico-normativas. Esse caráter incompleto das proposições jurídicas remissivas remete ainda a uma outra classificação doutrinária. Nesse sentido, outra dicotomia que merece atenção é a relativa às normas autônomas e às normas não autônomas ou dependentes, “consoante valem por si, contêm todos os elementos de uma norma jurídica, ou somente valem integradas ou conjugadas com outras”. Desse modo, normas autônomas “são as que têm por si um sentido [normativo] completo” e não autônomas ou dependentes as que “exigem a combinação com outras”. Uma proposição autônoma “basta-se a si própria, tem nos seus termos todos os elementos necessários para a definição do seu alcance normativo”. Por outro lado, uma proposição não autônoma “não contém todos esses elementos”, devendo ser conexionada com outra proposição jurídica “para que o comando que nela se contém fique completo”. Imbricando uma e outra classificação, é possível afirmar que apenas as normas materiais seriam normas autônomas, porquanto as normas remissivas, por carecerem dos elementos de uma outra norma jurídica com a qual ganhariam sentido se e quando conjugadas, constituem-se, em última análise, em normas não autônomas ou dependentes. A norma constitucional estadual de remissão, na condição de norma dependente, toma de empréstimo, portanto, um determinado elemento da norma constitucional federal remetida, não se fazendo completa senão em combinação com este componente normativo externo ao texto da Constituição Estadual. Essa circunstância, todavia, não retira a força normativa das normas constitucionais estaduais de remissão, que, uma vez conjugadas com as normas às quais se referem, gozam de todos os atributos de uma norma jurídica. É o que se extrai da seguinte passagem de Karl Larenz: “O serem proposições jurídicas, se bem que incompletas, significa que comungam do sentido de validade da lei, que não são proposições enunciativas, mas partes de ordenações de vigência. Todavia, a sua força constitutiva, fundamentadora de conseqüências jurídicas, recebem-na só em conexão com outras proposições jurídicas”. Com isso, se uma norma estadual ou municipal viola ou não uma proposição constitucional estadual remissiva, é circunstância que apenas se saberá após a combinação entre norma remissiva e norma remetida, que é o que vai determinar o alcance normativo do parâmetro de controle a ser adotado. Entretanto, uma vez determinado esse alcance, a anulação da norma estadual ou municipal por violação a tal parâmetro nada mais é do que uma conseqüência da supremacia da Constituição Estadual no âmbito do Estado-membro. Em outras palavras, as conseqüências jurídicas decorrentes de eventual violação à proposição remissiva constante da Constituição Estadual derivam da própria posição hierárquico-normativa superior desta no âmbito do ordenamento jurídico do Estado-membro, e não da norma da Constituição Federal a que se faz referência. Assim, se as proposições remissivas constantes das diversas Constituições Estaduais, apesar de seu caráter dependente e incompleto, mantêm sua condição de proposições jurídicas, não haveria razão para se lhes negar a condição de parâmetro normativo idôneo para se proceder, em face delas, ao controle abstrato de normas perante os Tribunais de Justiça. Essa parece ser a tese subjacente ao entendimento adotado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, que, no julgamento da RCL 733, por unanimidade de votos, seguiu a orientação do Min. Ilmar Galvão, no sentido de que as normas constitucionais estaduais remissivas à disciplina de determinada matéria prevista na Constituição Federal constituem parâmetro idôneo de controle no âmbito local.(...) Portanto, tal qual o entendimento adotado na RCL n° 383 para as hipóteses de normas constitucionais estaduais que reproduzem dispositivos da Constituição Federal, também as normas constitucionais estaduais de caráter remissivo podem compor o parâmetro de controle das ações diretas de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça estadual. Dessa forma, também aqui não é possível vislumbrar qualquer usurpação da competência do STF.
 
            A análise desse excerto revela que, no âmbito do Colendo Supremo Tribunal Federal, encontra-se definitivamente superada a jurisprudência que inadmitia o uso de norma remissiva como parâmetro idôneo do controle normativo abstrato que se desenvolve no plano estadual, revelando-se, assim, viável o processamento da presente ação direta de inconstitucionalidade na qual se aponta exclusivamente a violação do art. 144 da Carta Paulista.
            Nessa ordem de ideias, cumpre acrescentar que o referido art. 144 manda os municípios atenderem os princípios estabelecidos na Constituição Federal. Acerca de tais princípios, RAUL MACHADO HORTA (Cf. ‘Direito Constitucional’, Del Rey, 5.ª edição, 2010, p. 42) registrou que:
 
                       outro grupo de normas centrais é o constituído pelos princípios estabelecidos na Constituição Federal, que, a partir da Constituição Federal de 1946 (art. 18, passaram a limitar a autonomia constitucional do Estado-Membro, quer no exercício excepcional do poder constituinte auto-organizador, quer no exercício constante dos poderes reservados, obedecendo à regra de que aos Estados se reservam todos os poderes que implícita ou explicitamente, não lhes sejam vedados pela Constituição Federal.
                       A identificação dos princípios estabelecidos reclama a interpretação do texto da Constituição Federal o seu conjunto, para reunir as regras dispersas que definam a origem, a causa, o começo, o germe, o elemento predominante da Constituição Federal. Os princípios estabelecidos se alojam nas normas constitucionais federais sobre repartição de competências (g.n.), o sistema tributário, a organização dos Poderes, os direitos políticos, nacionalidade, os direitos e as garantias individuais, os direitos sociais, ordem econômica, a educação, a família e a cultura, afinal, na matéria dispersa no texto constitucional federal. A Constituição expansiva amplia e dilata o campo dessa pesquisa dos princípios estabelecidos, enquanto a Constituição não expansiva e breve contrai e reduz o campo dos princípios estabelecidos.

         Como os princípios estabelecidos se alojam nas normas constitucionais federais sobre repartição de competências, a par de outras, a violação do art. 144 da Carta Política Estadual parece bem caracterizada, tendo em vista que a Câmara de Vereadores de Jundiaí usurpou competência da União e dos Estados ao legislar sobre a hipótese de acesso de cães-guia a qualquer local público, meio de transporte, ou estabelecimento comercial, industrial, de serviços, de educação ou de promoção, proteção e recuperação à saúde, bem como condôminos residenciais horizontais ou verticais.

De resto,  a legislação em questão é inconstitucional, também, por vício de iniciativa. É que somente ao Chefe do Poder Executivo assiste a iniciativa de leis que criem – como é o caso – obrigações e deveres para órgãos municipais (art. 47, inc. II, da Constituição Estadual, de aplicação extensível aos municípios por força do art. 144 da mesma Carta).

Como a lei foi concebida no Poder Legislativo, a iniciativa acabou invadindo a seara da administração pública, da alçada exclusiva do Prefeito, violando sua prerrogativa de analisar a conveniência e oportunidade das providências que a lei quis determinar.

Bem por isso, a matéria somente poderia ser objeto de tramitação legislativa por proposta do próprio Chefe do Poder Executivo.

Ofendeu-se, igualmente, o princípio basilar da separação de poderes, pois, na dicção desse Sodalício:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (ADIN n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

 

Diante do exposto, aguardo a procedência desta ação direta, para se declarar a inconstitucionalidade da Lei n.º 7.335, de 10 de setembro de 2009, do Município de Jundiaí, “que assegura acesso de cães-guias aos locais que especifica”.

São Paulo, 04 de maio de 2011.

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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