Parecer
Processo
n.º
0583067-54.2010.8.26.0000
Autor: Prefeito
Municipal de Marília
Objeto
de impugnação:
Leis Municipais n.ºs 5.480, de 2/9/2003, e 6.342, de 4/10/2005, de Marília.
Ementa:
Ação direta de inconstitucionalidade - Leis Municipais n.ºs 5.480/2003 e 6.342/2005, de origem parlamentar,
que definiu atribuições a agentes públicos municipais – Vício de iniciativa –
As leis que fixam atribuições a agentes e órgãos públicos municipais são de
iniciativa reservada ao Executivo – A regra da iniciativa reservada tem
implicação direta com o princípio da independência e harmonia entre os Poderes
– Precedentes do TJSP e STF – Caracterizada a afronta aos arts. 5.º, 24, § 2.º,
2, e 144, da Constituição do Estado de São Paulo – Ação procedente.
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,
Colendo Órgão Especial:
Trata-se de ação – movida pelo Prefeito
Municipal de Marília – na qual se pretende ver declarada a
inconstitucionalidade formal das leis em epígrafe, de origem parlamentar, as
quais se apresentam assim redigidas:
Segundo
consta na inicial, as leis em epígrafe – de origem parlamentar – padecem de
vício formal de iniciativa, pois cabe ao Prefeito promover a organização
administrativa em nível municipal, inclusive fixar atribuições a órgãos e
agentes públicos municipais, encontrando-se, assim, caracterizada na espécie a
usurpação pelo Legislativo de prerrogativa que é própria da função executiva,
com implicação direta na independência e harmonia entre os Poderes. No final é
indicada a violação dos arts. 5.º, 24, § 2.o, 2, 47, XIX, a,
e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.
Não houve concessão de liminar (fl. 72).
Como essa lei versa sobre matéria exclusivamente local, inexistindo
interesse estadual na sua preservação, o Procurador Geral do Estado optou por
não defendê-la (fls. 89/91).
Notificada, a Câmara de Vereadores de Marília prestou
informações no prazo regimental, discorrendo, inicialmente, sobre a cronologia
de votação do projeto de lei naquela Casa.
No mais, aduz que a matéria tratada nas leis em epígrafe é de
competência municipal e sua iniciativa não é reservada, mas sim geral ou
concorrente.
Em
resumo, é o que consta nos autos.
“Data venia”, a ação deverá ser julgada
procedente.
Como se sabe, a função primordial da Câmara é a normativa, isto é, a edição de
normas gerais, abstratas e obrigatórias de conduta, enquanto que o Poder
constitucionalmente encarregado de administrar é o Executivo, que deve se ater,
porém, no desempenho dessa grave missão, aos parâmetros legalmente previstos,
por força do princípio da legalidade, que rege toda atividade administrativa,
consoante o art. 111 da Carta Estadual.
Em princípio, a Câmara pode legislar sobre todos os assuntos
de interesse local (CF, art. 30, I), inclusive suplementar a legislação federal
e estadual no que couber (CF, art. 30, II), mas há certos temas cuja disciplina
normativa foi confiada com exclusividade ao Executivo, no que tange à prerrogativa
de deflagrar o processo legislativo, entre os quais a “criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública;
criação e extinção de cargos,
funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a
fixação da respectiva remuneração; servidores
públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e
aposentadoria”. Acerca desses temas, a Câmara não
poderá dispor sem a prévia provocação do Prefeito, a quem compete – no
exercício de um juízo tipicamente discricionário – avaliar a conveniência e
oportunidade da medida.
A regra da reserva de iniciativa, vale ressaltar, deriva do
processo legislativo federal e, devido à estreita vinculação com o princípio da
independência e harmonia entre os Poderes, sua observância é obrigatória pelos
Estados e Municípios, consoante a jurisprudência assente no STF, “verbis”:
“Processo
legislativo dos Estados-membros: absorção compulsória das linhas básicas do
modelo constitucional federal entre elas, as decorrentes das normas de reserva
de iniciativa das leis, dada a implicação com o princípio fundamental da
separação e independência dos Poderes: jurisprudência consolidada do Supremo
Tribunal.” (ADI 637, Rel. Min. SEPULVEDA PERTENCE, julgamento em 25-8-04, DJ de
1.º-10-04.)
No caso sob exame, malgrado as restrições previstas na
própria Constituição, verifica-se que a Câmara de Vereadores de Marília editou
leis de iniciativa parlamentar as quais fixaram atribuições a agentes públicos
municipais, sem, no entanto, atentar para a reserva de iniciativa existente
sobre essa matéria em favor do chefe do Poder Executivo (CE, art. 24, § 2.º, 1,
2 e 4).
Ainda que louvável a iniciativa, máxime à vista do disposto
no art. 230, § 1.o, da CF, segundo o qual “os programas de
amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares”, a Câmara
não poderia fixar atribuições a servidores públicos municipais, tampouco tornar
obrigatório o atendimento médico domiciliar, quando a própria Constituição
utiliza o advérbio preferencialmente, atribuindo, assim, certa margem de
discricionariedade ao administrador público, que, na espécie, teve subtraída a
prerrogativa de desenvolver programas de amparo aos idosos.
No âmbito desse Egrégio Tribunal de Justiça, a questão objeto
da controvérsia já foi enfrentada em várias oportunidades, conforme se pode
observar dos precedentes abaixo reproduzidos:
“AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADEDE LEI - Município de Mogi Guaçu – Lei Municipal
n" 4.579/2009 - Dispõe sobre a criação do Museu dos Esportes no Município-
Vicio de iniciativa - Violação ao princípio da separação dos poderes - Ato que
gera obrigação e deveres para os órgãos executivos do Município - Criação de despesas
sem indicação da respectiva fonte- Afronta aos arts. 5°, 25, e 47, II da CE -Inconstitucionalidade decretada.”
(ADI 0333411-15.2010, Rel. Des. SAMUEL JÚNIOR, v.u., julgamento em 6/7/2011)
“AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE -Município de Ubatuba - Lei Municipal nº 3.295/2010
que autoriza o Executivo Municipal a criar o Conselho Municipal de Desenvolvimento
e Participação da Comunidade Negra de Ubatuba –Liminar concedida - Ato
de gestão, competência privativa do Poder Executivo - Vicio de iniciativa -
Princípio de separação dospoderes - Violação aos 5o, 25, 47, II,
todos da Constituição” (ADI 990.10.157579-5, Rel. Des. SAMUEL JÚNIOR,
v.u., julgamento em 9/2/2011).
Igualmente, no STF, acerca do tema em
discussão, já se decidiu que:
“Lei do Estado do Rio Grande do Sul. Instituição do
Pólo Estadual da Música Erudita. Estrutura e atribuições de órgãos e secretarias
da administração pública. Matéria de iniciativa privativa do chefe do Poder
Executivo. Precedentes. Exigência de consignação de dotação orçamentária para
execução da lei. Matéria de iniciativa do Poder Executivo. Ação julgada
procedente.”(ADI 2.808,
Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 24-8-2006, Plenário, DJ
de 17-11-2006.)
“Processo legislativo: reserva de iniciativa ao
Poder Executivo (CF, art. 61, § 1º, e): regra de absorção compulsória
pelos Estados-membros, violada por lei local de iniciativa parlamentar que
criou órgão da administração pública (Conselho de Transporte da Região
Metropolitana de São Paulo - CTM): inconstitucionalidade.” (ADI 1.391, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em
9-5-2002, Plenário, DJ de 7-6-2002.)
Demais, há nos autos cópia de manifestação da Secretaria
Municipal de Higiene e Saúde na qual constou que: “não temos no quadro de
Recursos Humanos da Secretaria Municipal de Higiene e Saúde nenhum profissional
contratado com especialização em Geriatria e não existe no mercado
disponibilidade atual de profissionais para contratação em número suficiente
para atender a demanda a ser gerada com a aprovação do presente Projeto de Lei”,
donde se conclui que as leis ora impugnadas produziram o aumento da despesa
pública em matéria de iniciativa reservada.
Por fim, conquanto indiferente ao desate da presente ação,
cumpre registrar que – segundo também informou a Secretaria Municipal de
Higiene e Saúde de Marília – existe no referido município um programa de
atendimento domiciliar, com prioridade para idosos, os quais nenhum prejuízo terão
com a erradicação dessas leis do ordenamento jurídico em vigor.
Conclui-se, assim, que a Câmara de Vereadores de Marília
usurpou prerrogativa que é própria da função executiva, no campo da iniciativa
reservada de lei, ao dispor sobre matéria que, nos termos da vigente
Constituição (arts. 24, § 2.º, 2), só poderia advir de projeto de lei de
iniciativa exclusiva do chefe do Executivo: a fixação de atribuições de agentes
públicos municipais, com grave reflexo na independência e harmonia entre os
Poderes (CE, art. 2.º).
Em tais circunstâncias, opina-se pela integral procedência desta
ação direta.
São Paulo, 27
de julho de 2011.
Sérgio
Turra Sobrane
Subprocurador-Geral
de Justiça
Jurídico
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