Parecer
Autos nº. 0587986-86.2010.8.26.0000
Requerente: Prefeito Municipal de Marília
Objeto: Lei nº 6.090, de 05 de novembro 2004, do Município de Marília
Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal. Iniciativa parlamentar. Permissão para estabelecimento e funcionamento de empresas em residência de seus titulares. 2) Ofensa ao princípio da separação dos Poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa (art. 5º, 47, II e XIV, da Constituição Paulista). 3) Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Marília, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 6.090, de 05 de novembro de 2004, que “Dispõe sobre o estabelecimento e o funcionamento de empresas em residências e edificações multifamiliares e dá outras providências”.
Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal.
Não houve pedido de liminar.
O Presidente da Câmara Municipal deixou transcorrer "in albis" o prazo para informações (fls. 60).
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 53/55).
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
Em
que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se
transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente
incompatível com nossa sistemática constitucional.
Este é o teor do ato normativo impugnado, no que interessa:
“Art. 1º - Fica permitido, nos termos desta Lei, o estabelecimento e o funcionamento de empresas na residência de seus titulares.
§ 1º - Poderão beneficiar-se da permissão instituída por esta Lei as empresas que possuam até 3 (três) funcionários de presença regular na residência.
§ 2º - No caso de empresas situadas em edificações multifamiliares verticais de uso exclusivamente residencial, só se permitirá o exercício das atividades aos sócios moradores.
Art. 3º - Para a concessão da autorização de que trata o artigo anterior, serão observados os seguintes critérios:
I - localização da residência;
II - natureza da atividade;
III - tipo da edificação.
Art. 4º - Não será permitido, nos termos do art. 3º, I, o estabelecimento e o funcionamento de empresas em residências situadas nos seguintes locais:
I - nas áreas de preservação paisagística;
II - nas áreas de ou faixas no aedificandi.
Art. 5º - Só será permitido, nos termos do art. 3º, II, o estabelecimento e funcionamento de empresas cujas atividades se incluam entre as de:
(...)
art. 6º - Nas edificações do tipo multifamiliar destinadas a uso exclusivamente residencial, nos termos do art. 3º, III, o estabelecimento e o funcionamento de empresas serão restritos às prestações de serviços técnico-profissionais exercidos pelo sócios moradores.
(...)"
A lei, de
iniciativa parlamentar, cria obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas
pela Administração Pública, prevendo a obrigação de expedição de alvará para os
casos que se enquadrem nas previsões estatuídas (art. 2º).
Não há dúvida de que, como tal, a iniciativa
parlamentar, ainda que revestida de boas intenções, invadiu a esfera da gestão
administrativa, e como tal, é inconstitucional, por violar o disposto no art. 5º
e no art. 47, II e XIV, da Constituição Paulista.
É ponto pacífico na doutrina, bem como na
jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de
administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e
execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder
Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos
normativos revestidos de generalidade e abstração.
O legislador municipal, na hipótese analisada, criou
obrigações de cunho administrativo para a Administração Pública local.
Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a
tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional,
por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do
Município.
Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder
Executivo, e envolve o planejamento, a
direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à
prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes
Meirelles, anotando que
“a Prefeitura não pode legislar, como a
Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa:
a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa,
convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos,
individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos
segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e
independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao
governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação
de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir
prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou
retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio
da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31),
podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito
municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e
Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).
Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder
Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros
atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre
os poderes estatais.
Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a
inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que
interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da
separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:
“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).
E, mais
recentemente, assim se fez constar no despacho que deferiu a liminar na ADIn
990.10.073579-9:
"Impõe-se, à partida, a apreciação do pedido liminar, que fica deferido.
Evidente o fumus boni júris, pois já proclamada na ADIN nº 154.526-0/0 (Rel. EROS PICELI - J. 08.10.2008 - V.U.), ser inconstitucional lei de vereadora iniciativa que cria obrigação para o Poder Executivo de utilização de papel reciclado.
Digo o mesmo quanto ao periculum in mora, poquanto a obrigação imposta ao promovente de regulamentar a norma impugnada deveras implica, na prática, em sujeição, se não imediata, quase, a interferência, in casu descabida, o planejamento da administração no que tange a execução dos procedimentos licitatórios visando às aquisições de materiais de expedientes para o ano em exercício.
Ademais, não faz o menor sentido manter a eficácia e a vigência, ainda que potenciais, eis que minguante sua regulamentação, certamente, porém, capazes de gerar ao menos atritos entre Legislativo e Executivo locais, de norma que ostenta palpável vício de inconstitucionalidade formal." (ADIn 990.10.073579-9, rel. des. Palma Bisson, j. 1º.03.2010)
Não bastasse o acima exposto, verifica-se
que a Lei em questão também se refere ao uso e ocupação do solo urbano, cuja
tarefa, no plano físico, é privativa do Prefeito, que, no exercício dessa
atividade, de natureza tipicamente administrativa, não pode sofrer nenhum tipo
de interferência indevida do Legislativo local.
Bem a propósito, ao examinar essa questão, o Plenário
desse Egrégio Tribunal de Justiça, em antigo aresto relatado pelo eminente
jurista Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, concluiu que:
“...
constituem matéria legislativa as regras imperativas, gerais e abstratas que
diferenciam as construções de habitações das de comércio e indústria, e, ainda,
distinguem as habitações, as casas comerciais e industriais, em diversos tipos,
e, a final, prescrevem restrições ao direito de construir, conforme a zona
residencial, comercial ou industrial e de forma mais ou menos rígida, segundo critérios exclusivos ou
de predominância. E mais, constituem matéria legislativa as regras imperativas
gerais e abstratas que determinam recuos, estabelecem alturas de prédios,
normas sobre fachadas e gradis. Enfim, as que estabelecem as regras
imperativas gerais e abstratas de zoneamento. Já a especificação
de uma via pública, no seu todo ou em parte, se estrita ou prevalentemente
residencial é obra administrativa, atividade concreta e específica de caráter
casuístico, em função do desenvolvimento local, das exigências dos bairros, das
manifestações dos próprios logradouros públicos, em consonância com a
fisionomia que assume no seu evolver, suscetível de se modificar por exigências
urbanísticas do Município, interesse dos munícipes, só possível de ser bem
sentidos pelo Executivo, no
seu quotidiano contacto com a vida da cidade, atuando em matéria da sua alçada
administrativa, particularizando a lei” (TJSP, Pleno, RT 289/456). original sem grifos e saliências
No mesmo sentido é a lição de Hely:
“a lei estabelecerá as diretrizes, os critérios, os usos admissíveis, tolerados e vedados nas zonas previstas; o decreto individualizará as zonas e especificará os usos concretamente para cada local. O zoneamento, no seu aspecto programático e normativo, é objeto de lei, mas na sua fase executiva - em cumprimento da lei - é objeto de decreto” (Cf. ob. cit., pág. 553/554).
Resumindo o ponto até aqui analisado: o conteúdo da
lei impugnada é próprio de ato administrativo, de responsabilidade do Prefeito
e, portanto, de sua exclusiva iniciativa.
A atividade do Legislativo invade a seara a este reservada e incide em
inconstitucionalidade, por ofensa ao artigo 5º, “caput”, da Constituição do
Estado de São Paulo.
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 6.090, de 05 de novembro de 2004, do Município de Marília.
São Paulo, 18 de maio de 2011.
Sérgio Turra Sobrane
Subprocurador-Geral de Justiça
Jurídico
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