AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

Processo nº151.292-0/9-00

Autor: Município de Pirajuí

Objeto: Lei Municipal nº2.032, de 22 de junho de 2007, de Pirajuí (que deu nova redação ao art.1º da Lei Municipal nº1.730, de 26 de março de 2001)

 

 

 

 

Ementa: 1)Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal. Vedação à construção de estabelecimentos prisionais no Município. 2)Violação de princípio estabelecido. Repartição constitucional de competências. Matéria que extravasa a competência municipal (art.1º, 139, 143 e 144 da Constituição Estadual). 3)Violação da regra da separação de poderes. Medida que interfere na gestão administrativa (art.5º da Constituição Estadual). 4)Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

 

1)Relatório.

 

         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade que tem como alvo a Lei Municipal nº2.032, de 22 de junho de 2007 (que deu nova redação ao art.1º da Lei Municipal nº1.730, de 26 de março de 2001), de Pirajuí, sob o fundamento, em síntese, de que: (a) houve violação do princípio da repartição constitucional de competências; (b) houve violação da separação de poderes.

 

         Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado se manifestou, sustentando a inconstitucionalidade do ato normativo impugnado (fls.38/44).

 

         Esta Procuradoria-Geral ofertou parecer, opinando pela procedência da ação (fls.51/54).

 

         Foram juntadas informações prestadas pela Presidência da Câmara Municipal (fls.62/68).

 

         Tornam os autos a esta Procuradoria-Geral para manifestação sobre a preliminar apontada às fls.63 (impossibilidade de controle, no âmbito estadual, com parâmetro contido na Constituição Federal).

 

         Este é o breve relato do que consta dos autos.

 

2)Preliminar: alegação de indicação de parâmetros constitucionais federais e possibilidade de controle.

 

         Tornaram os autos a esta Procuradoria-Geral de Justiça para que seja apreciada a preliminar suscitada pela Câmara Municipal às fls.63, ou seja, de que os parâmetros de controle indicados na inicial encontram-se assentados na Constituição Federal.

 

         Todavia, a preliminar não merece acolhimento.

 

         Nada obstante a referência, na inicial, a dispositivos da Lei Maior, ficou claro que dois foram os argumentos centrais utilizados quando da propositura da ação, ou seja, a violação à repartição constitucional de competências, e a violação da regra da separação de poderes.

 

         A repartição constitucional de competências é princípio constitucional estabelecido, e, em função do art.144 da Carta Paulista, pode servir como parâmetro de controle.

 

         Tal entendimento tem sido aceito por esse. E. Tribunal de Justiça, valendo citar, como exemplo, o v. acórdão proferido quando do julgamento da ADI 130.227.0/0, rel. des. Renato Nalini, j. 24.10.2007, v.u.. É relevante extrair, desse julgado, trecho da declaração de voto vencedor do i. des. Walter de Almeida Guilherme, integralmente aplicável ao caso:

 

“(...) Exatamente por ser o Município ente federado é que ele é dotado de autonomia, e não se soberania, isto é, sua competência para se organizar, legislativa, administrativa e financeiramente é limitada. E quais são os limites? Princípios estabelecidos na Constituição Federal, na Constituição do respectivo Estado e preceitos expressamente enumerados, como disposto no art.29 da Constituição Federal. Esse dispositivo da CF é repetido, já se observou, quanto aos princípios a serem atendidos pelos municípios quando se organizam, pelo art.144 da Constituição do Estado de São Paulo.

Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’

Sendo a organização Federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de Estado a distribuição de competência legislativa entre entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência princípio estabelecido na Constituição Federal.

Assim, quando o referido art.144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência da União, não estão obedecendo ao princípio federativo e, pois, afrontando estão o art.144 da Constituição do Estado”.

 

         Ademais, ainda que não fosse possível reconhecer a inconstitucionalidade do ato normativo impugnado pela violação da repartição constitucional de competências remanesce o outro fundamento indicado, ou seja, a violação da regra da separação de poderes.

 

         Deste modo, com a devida vênia, a preliminar não merece acolhimento.

 

 

3)Preliminar: aditamento à inicial.

 

         Está claro que a iniciativa de propositura da ação direta partiu do Prefeito Municipal de Piraju, na medida em que, pela Constituição Paulista, o Chefe do Executivo é legitimado a tanto (art.90 II), e não a Municipalidade, pessoa jurídica de direito público.

 

         Entretanto, certamente por equívoco na redação da petição inicial, bem como no instrumento do mandato outorgado aos respectivos subscritores, constou o Município como autor.

 

         Apenas para evitar discussões ulteriores, bem como eventual risco de anulação do julgado, é oportuno determinar a intimação do autor para aditar a inicial e regularizar a representação, fazendo constar que o Prefeito é autor, não o Município.

 

4)Mérito.

 

         Eis o texto integral da Lei nº2.032/2007, de Pirajuí, fruto de iniciativa parlamentar, impugnada na presente ação:

 

“Art.1º. O art.1º da Lei nº1.730 de 26/03/2001, passa a vigorar com a seguinte redação:

‘Art.1º. Fica vedada a construção e adaptação de qualquer prédio, visando a implantação de instituições penitenciárias de caráter fechado, aberto e semi-aberto (IPA) inclusive ala de progressão penitenciária e instituições correicionais de menores (FEBEM), até o limite territorial do município, exceto aquelas de caráter municipal que visam atender a demanda do município e respectiva comarca’.

 

Art.2º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, retroagindo seus efeitos a 1º de janeiro de 2007, revogando-se as disposições em contrário.“

 

         Quanto ao mérito, embora compreensível a preocupação do legislador municipal quanto à possibilidade de implantação de novos estabelecimentos prisionais na urbe envolvida, a lei é verticalmente incompatível com a Constituição Estadual.

 

         Ficam, nesta oportunidade, expressamente reiterados os argumentos lançados na anterior manifestação desta Procuradoria-Geral de Justiça (fls.51/54), no sentido do reconhecimento da inconstitucionalidade da lei.

 

         Note-se ademais, com clareza, que houve violação da regra da separação de poderes.

 

         A lei impede providência cuja adoção ou não se encontra, estritamente, na esfera de deliberação – oportunidade e conveniência – do Poder Executivo. Definir se é necessária a construção de um estabelecimento penal, quando deverá ser construído, e onde isso ocorrerá, são questões concernentes à gestão administrativa, que envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

 

         Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

 

         Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

 

         Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir, aplicáveis ao caso mutatis mutandis:

 

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que "dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

 

         Houve também violação ao princípio da repartição constitucional de competências, pois, como já indicado na anterior manifestação desta Procuradoria-Geral, a matéria não é de interesse predominantemente local, cabendo ao Estado, e não ao Município (art.1º, 139 e 143 da Constituição Estadual).

 

         Há ainda, uma observação fundamental a fazer.

 

         Como se sabe, o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei produzirá o efeito repristinatório com relação à norma que vigorava anteriormente à impugnada na ação direta.

 

         Como anotou o Min. Celso de Mello, “A declaração de inconstitucionalidade "in abstracto", considerado o efeito repristinatório que lhe é inerente (RTJ 120/64 - RTJ 194/504-505 - ADI 2.867/ES, v.g.), importa em restauração das normas estatais revogadas pelo diploma objeto do processo de controle normativo abstrato. É que a lei declarada inconstitucional, por incidir em absoluta desvalia jurídica (RTJ 146/461-462), não pode gerar quaisquer efeitos no plano do direito, nem mesmo o de provocar a própria revogação dos diplomas normativos a ela anteriores. Lei inconstitucional, porque inválida (RTJ 102/671), sequer possui eficácia derrogatória. A decisão do Supremo Tribunal Federal que declara, em sede de fiscalização abstrata, a inconstitucionalidade de determinado diploma normativo tem o condão de provocar a repristinação dos atos estatais anteriores que foram revogados pela lei proclamada inconstitucional”. (ADI 3148/TO, rel. Min. Celso de Mello, j.13/12/2006, Tribunal Pleno, DJe-112, DIVULG 27-09-2007, PUBLIC 28-09-2007, DJ 28-09-2007PP-00026, EMENT VOL-02291-02 PP-00249).

 

         Ocorre que, no caso em exame, o dispositivo revogado pelo ato normativo ora impugnado padece do mesmo vício que este último.

 

         Eis a redação original da Lei nº1.730/2001, que “Veda a construção e implantação de instituições penitenciárias de caráter aberto e semi-aberto (IPA), inclusive ala de progressão penitenciária e instituições correicionais de menores (FEBEM), até o limite territorial do município, exceto aquelas que visam atender a demanda do município e respectiva comarca”:

 

“Art.1º. Fica vedada a construção e adaptação de qualquer prédio, visando a implantação de instituições penitenciárias de caráter aberto e semi-aberto (IPA) inclusive ala de progressão penitenciária e instituições correicionais de menores (FEBEM), até o limite territorial do município, exceto aquelas de caráter municipal que visam atender a demanda do município e respectiva comarca”.

 

         É necessária, desse modo, a declaração da inconstitucionalidade, por arrastamento, do ato normativo repristinado, sob pena de ineficácia e inutilidade da procedência desta ação direta.

 

         Tal solução é possível, sempre que (a) o reconhecimento da inconstitucionalidade de determinado dispositivo legal torna despidos de eficácia e utilidade concreta outros preceitos do mesmo diploma que não tenham sido impugnados, e (b) nos casos em que o efeito repristinatório restabelece dispositivos já revogados pela lei viciada que ostentem o mesmo vício.

 

         Para tanto desnecessário se mostra pedido expresso do autor. Nem há suposto limite relacionado à estabilização da demanda (art.264 do CPC). Raciocínio contrário importaria trazer para o processo objetivo regras procedimentais do processo individual, que àquele não se aplicam, pela absoluta diversidade quanto à sua natureza e função.

 

         Essa solução tem sido reconhecida pacificamente pelo E. STF (v.g.: ADI 1144/RS, rel. Min. EROS GRAU, j.16/08/2006, T. Pleno; DJ 08-09-2006 PP-00033, EMENT VOL-02246-01 PP-00057, LEXSTF v. 28, n. 334, 2006, p. 20-26; ADI 3255/PA, rel.Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, j.22/06/2006, T. Pleno, DJe-157  DIVULG 06-12-2007, DJ 07-12-2007 PP-00018,  EMENT VOL-02302-01,  PP-00127; ADI 3645/PR, rel.  Min. ELLEN GRACIE, j. 31/05/2006, T. Pleno, DJ 01-09-2006 PP-00016, EMENT VOL-02245-02 PP-00371, LEXSTF v. 28, n. 334, 2006, p. 75-91), não surgindo qualquer óbice em razão da não impugnação, na inicial, dos dispositivos repristinados.

 

         Note-se que a declaração da inconstitucionalidade de preceitos não mencionados expressamente pelo autor é viável em razão da natureza objetiva do processo de controle abstrato de normas, em que não se identificam réus ou partes contrárias, mas exclusivamente o interesse veiculado, pelo requerente, no sentido da preservação da segurança jurídica (cf. ADI-ED 2982/CE, rel. Min. GILMAR MENDES, j.02/08/2006, T. Pleno, DJ 22-09-2006 PP-00029, EMENT VOL-02248-01 PP-00171, LEXSTF v. 28, n. 335, 2006, p. 53-59).

 

5)Conclusão.

 

         Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da rejeição da preliminar apontada pela Presidência da Câmara, providenciando-se, entretanto, o aditamento, para retificação da inicial, quanto à indicação do autor.

 

         No mérito, opina-se pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº2.032/2007, de Piraju, e por arrastamento da Lei Municipal nº1.730/2001, pelos motivos expostos.

 

São Paulo, 13 de junho de 2008.

 

 

 

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça