AÇÃO   DIRETA  DE  INCONSTITUCIONALIDADE  N.º  151.569-0/3-00

Requerente   :    Prefeito do Município de Dracena

Requerida     :    Câmara Municipal de Dracena

Objeto           :    Lei n.º  3.461, de 18 de maio de 2007

 

 

 

Ementa: Lei municipal de iniciativa parlamentar que autoriza o Prefeito Municipal a instituir o programa “O Lixo é um Luxo”. Imposição de atribuições específicas. Criação de despesas sem indicar a fonte dos recursos. Matéria afeta à administração dos serviços públicos. Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

 

                                                         O Prefeito Municipal de Dracena propôs a presente ação direta objetivando a declaração de inconstitucionalidade da Lei n.º 3.461, de 18 de maio de 2007, que ''autoriza o Poder Executivo Municipal a instituir o programa ‘O Lixo é um Luxo’”. A Câmara Municipal forneceu suas informações (fls. 46/50) e a D. Procuradoria-Geral do Estado não se manifestou sobre o mérito (fls. 58/59). Há que se acrescentar que o projeto de lei foi vetado pelo Executivo, tendo sido rejeitado o veto aposto. Houve o deferimento liminar do pedido (fl. 39).

 

                                                         Sobre a preliminar sustentada pela Câmara Municipal entendemos deva ser rejeitada. É que cabe ao requerente narrar os fatos, a causa de pedir e o pedido. Ao Judiciário cabe aplicar o Direito ao caso concreto, sendo certo que a Constituição Estadual foi violada, inclusive merecendo procedência o pedido. Daí não poder se falar em carência de ação, ainda que a exordial realmente não indique a norma constitucional estadual que alicerça o pedido.

 

                                                         Relativamente ao mérito, entendemos que a ação deva ser julgada procedente, sendo inconstitucional a Lei n.º 3.461, de 18 de maio de 2007, do Município de Dracena, que ''autoriza o Poder Executivo Municipal a instituir o programa ‘O Lixo é um Luxo’”.

 

                                                                                               

                                                         Há que se aduzir que a Lei em questão é de iniciativa de vereador, tendo sido vetada pelo Executivo, mas tal veto foi rejeitado pela Edilidade.  Aduz o Alcaide que referido dispositivo é inconstitucional por contrariar a Constituição Federal, todavia vislumbramos afronta aos artigos 5.º, 25, 47 e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.  A dicção de tais dispositivos é a seguinte:

"Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 25 - Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

I - representar o Estado nas suas relações jurídicas, políticas e administrativas;

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição."

 

                                                         A administração da cidade incumbe ao que, modernamente, chama-se de 'Governo', e que tem na lei seu mais relevante instrumento,[1] participando sempre o Poder Legislativo na função de aprovar-desaprovar os atos[2].  Na hipótese de administração ordinária, cabe ao Legislativo o estabelecimento de normas gerais, diretrizes globais, jamais atos pontuais e específicos.

 

                                                         Nada impedirá, assim, no quadro normativo constitucional, que o Legislativo elabore lei criando programa que visa fomentar os serviços referentes à coleta de lixo e seu tratamento, ficando vinculado o Executivo a inserir as respectivas dotações orçamentárias, sujeitas à reserva do financeiramente possível, nos próximos orçamentos, bem assim, antes, na elaboração da própria Lei de Diretrizes Orçamentárias, desde que não invada ou crie atribuições a órgãos públicos ou determine como devem ser executados tais programas. Note-se que os artigos 3º e 6º, a título exemplificativo, impõe ao Executivo atribuições que redundariam em despesas.

 

                                                         Hely Lopes Meirelles disserta sobre o assunto, no sentido por nós defendido:

“...a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça”[3]

 

                                                         Por outro lado, a função dos parlamentos, hoje, certamente, é diversa daquela imaginada pelos iluministas; é a lição dos nossos mais renomados autores:

“No presidencialismo, a separação entre presidente e Congresso permite que ocorra pertencer aquele a um partido, a maioria deste a outro, como tantas vezes já sucedeu nos Estados Unidos. Mas nor­malmente presidência e maioria parlamentar têm a mesma cor política, o que estabelece igual vinculação. Na hipótese primeira, ainda cumpre observar, a subordinação de certo modo ainda existe, criada pelos meios de ação que tem politicamente o governo sobre o Con­gresso, e, especialmente, pelas regras constitucionais restritivas da iniciativa parlamentar, por exemplo, em matéria financeira. Na verdade, a tendência contemporânea é a de restringir o Par­lamento a uma função de controle, fazendo dele o fiscal do governo. Volta ele assim para o ponto de partida, já que, na Idade Média, sur­giu como órgão de expressão dos desejos e particularmente dos re­clamos dos governados relativamente ao proceder do governo. De fato, essa tendência foi assinalada por vários autores, como Loewenstein, Meynaud etc., e em vários Estados diferentes. As­sim, por exemplo, a prática inglesa mostra o Parlamento reduzido a uma função de controle da atividade governamental, simplesmente ratificando decisões tomadas pelo Gabinete, ao mesmo tempo cúpu­la do partido majoritário, especialmente no campo normativo."[4]

 

                                                         Na presente ação direta, entendo que o Legislativo somente poderá criar programas se com isso não fixar atribuições específicas, como no caso dos autos, eis que o programa poderia, inclusive, ser terceirizado pelo Administrador, v.g., programa que dependerá das disposições orçamentárias, fixadas pelo Executivo segundo suas possibilidades[5].

 

                                                         Realmente, dentre as funções de governo do Prefeito estão as funções executivas que, no sentido estrito da expressão, compreendem o planejamento, a organização, a direção, o comando, a coordenação e o controle dos serviços públicos (cf. José Afonso da Silva, “O Prefeito e o Município”, 1977, págs. 134/143). A questão dos recursos a serem destinados ao programa municipal em questão diz respeito ao orçamento em cuja elaboração deverá ser objeto de dotação específica.

 

                                                         A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal está no sentido do que defendemos, verificada por ocasião da análise da inconstitucionalidade da Lei n.º 11.529/2000, do Estado do Rio Grande do Sul:

 

“Concluído o julgamento de medida liminar em  ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Governador do Estado do Rio Grande do Sul contra a Lei 11.529/2000, do mesmo Estado, que determina a unificação, através do número 190, da central de atendimento telefônico para emergências do Estado. O Tribunal, por maioria, deferiu a suspensão cautelar da norma impugnada por aparente ofensa ao art. 61, § 1º, II, e, da CF, que confere ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa privativa das leis que disponham sobre a criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da administração pública.” ADInMC 2.443-RS, rel. Min. Maurício Corrêa, 7.6.2001.(ADI-2443)

 

 

                                                            Em outro julgado, a mesma tese prevaleceu:

 

 

“AÇAO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.719-1                                     

PROCED.   : ESPÍRITO SANTO.

RELATOR : MIN. CARLOS VELLOSO

REQTE.   :    GOVERNADOR DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

ADVDOS.: PGE-ES-FLAVIO AUGUSTO CRUZ NOGUEIRA E OUTRO

REQDA.: ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, julgou procedente  a ação para declarar a inconstitucionalidade da Lei n° 7.157, de 30 de abril de 2002, do Estado do Espírito Santo. Votou o Presidente. Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros Marco Aurélio, Presidente, e Moreira Alves, e, neste julgamento, o Senhor Ministro Nelson Jobim. Presidência do Senhor Ministro limar Galvão, VicePresidente. Plenário, 20.03.2003.

 

 

 

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II  e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. - Precedentes do STF.

IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.”

 

 

                                                         Assim sendo, e por entender que ao Legislativo não é dado prover sobre todos os assuntos por meio de lei[6], e somente poderá estabelecer programas gerais objetivando os valores maiores da Constituição se não criar atribuições para órgãos públicos ou determinar o seu modo de execução, o parecer é pela procedência da ação, para que seja declarada inconstitucional a Lei n.º 3.461, de 18 de maio de 2007, do Município de Dracena.

São Paulo, 20 de abril de 2008.

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA,

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça



[1] Christian Starck.  'El Concepto de ley en la constitucion alemana', Madrid: CEC, 1979, pág.73.

[2] "...O poder governante é que goza, de fato (e talvez de direito) de uma estabilidade garantida, necessária para a tradução em atos de um 'indirizzo'. É, em geral, delegatária, também, de importantes porções da função legislativa. Ao legislativo, sua função torna-se aquela convalidar-confirmar solenemente o 'indiriz­zo politico' decidido pelo Poder Governante revestindo as medidas sob a forma de lei. O bloqueio - com voto negativo – ao 'indirizzo' do Po­der governante, ou a remoção formal deste ultimo - quando o regime o admite - deve ficar, pelas exigências do modelo, eventos absolutamente excepcionais. O Legislativo controla o Poder governante também com outros meios (investigações, comissões parlamentares etc). Provê as leis para a integração normativa das escolhas feitas no 'indirizzo governativo'." Giovanni Bognetti, 'In' 'Digesto Delle Discipline Pubblicistiche', p. 376, XI, UTET.

[3] MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 7.º ed., São Paulo: Malheiros, 1990, págs. 544/545.

[4] Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Do Processo Legislativo. São Paulo: Saraiva, 2001, pág. 271.

[5]  Veja-se parecer do Ministério Público Federal emitido na ADin n.º 737-DF, pelo então Procurador da República, Dr. Gilmar Ferreira Mendes: 'A submissão dessas posições a regras jurídicas opera um fenômeno de transmutação, convertendo situações tradicionalmente consideradas de natureza política em situações jurídicas. Tem-se, pois, a juridicização do processo decisório, acentuando-se a tensão entre direito e política (Cf. Krebs, Walter, Freiheitsschutz durch Grundrechte, JURA, 1988, p. 617 (625). Observe-se que, embora tais decisões estejam vinculadas juridicamente, é certo que a sua efetivação está submetida, dentre outras condicionantes, à 'reserva do financeiramente possível' ("Vorbehalt des finanziell Möglichen"). Nesse sentido, reconheceu a Corte Constitucional alemã, na famosa decisão sobre "numerus clausus" de vagas nas universidades ("numerus-clausus Entscheidung"), que pretensões destinadas a criar os pressupostos fáticos necessários para o exercício de determinado direito estão submetidas à "reserva do possível" ("Vorbehalt des Möglichen") (BVerfGE 33, 303 (333).

[6] Veja-se a redação do art. 84 da Constituição da República, na redação dada pela EC/32: "Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: I - nomear e exonerar os Ministros de Estado; II - exercer, com o auxilio dos Ministros de Estado, a direção superior da Administração federal; III - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Cons­tituição; V - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; VI- vetar projetos de lei, total ou parcialmente; VII - dispor, mediante decreto, sobre: a) a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos (...)"