AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

 

Autos n. 152.868-0/5-00

Autor: PREFEITO MUNICIPAL DE LENÇÓIS PAULISTA

Objeto: Lei Municipal n. 3.742, de 15 de agosto de 2007

 

 

 

 

 

         Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

         Colendo Órgão Especial

 

 

 

         Trata-se de Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pelo Excelentíssimo Senhor Prefeito Municipal de Lençóis Paulista, tendo como alvo a Lei Municipal n. 3.742, de 15 de agosto de 2007.

 

         Alega o requerente, em síntese, que: (a) a lei impugnada, de iniciativa parlamentar, violou o princípio da separação dos Poderes e a reserva de iniciativa do Chefe do Executivo; (b) criou despesas sem indicação dos recursos disponíveis. Aponta como fundamentos para a declaração da inconstitucionalidade os arts. 5º, 47 incisos II e XIV e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

     Foi deferida a liminar (fls. 29/29v.).

 

         A Presidência da Câmara Municipal prestou informações (fls. 35/38).

 

         O Procurador-Geral do Estado, por sua vez, defendeu a exegese segundo a qual a sua intervenção nos feitos desta natureza não é obrigatória, mas sim condicionada à verificação prévia da existência de interesse estadual na preservação da norma impugnada (fls. 45/46).

 

         É o breve relato.

 

         O parecer é pela improcedência da demanda.

 

         A Lei Municipal n. 3.742, de 15 de agosto de 2007, dispõe sobre a obrigatoriedade de grades de proteção em canaletas de escoamento de água nos postos de abastecimento de combustíveis. Prevê multa e estabelece que a fiscalização deverá ser realizada pela Diretoria de Obras e Engenharia do Município.

 

         O primeiro aspecto que merece análise diz respeito ao vício de iniciativa, bem como ao princípio da separação dos Poderes, que decorrem do disposto nos arts. 5º, 37 e 47, II e XIV, todos da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da referida Carta.

 

         É ponto pacífico na doutrina bem como na jurisprudência que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

 

         De outra sorte, decorre da sistemática da separação de Poderes que há certas matérias cuja iniciativa legislativa é reservada ao Poder Executivo.

 

         A propósito, a Constituição do Estado prescreve iniciativa privativa do Chefe do Executivo para leis que versem, em síntese, sobre: cargos, funções e empregos públicos na administração direta e indireta e sua remuneração; criação e extinção de órgãos na administração pública; regime jurídico dos servidores públicos (cf. art.24, §2º, n. 1 a 6 da Constituição Estadual). Reitera a Carta Paulista, em linhas gerais, as limitações contidas no art.61 §1º inciso II da Constituição Federal.

 

         De outro lado, a Constituição do Estado de São Paulo também determina que cabe ao Executivo exercer a direção superior da Administração Estadual, bem como a prática de atos de administração (art.47, incisos II e XIV).

 

         Contudo, a lei municipal questionada na presente ação direta dirige-se aos postos de abastecimento de combustíveis e, em nada interfere na administração municipal.

 

         O princípio da independência e harmonia entre os Poderes, adotado expressamente no ordenamento constitucional brasileiro, não coloca o Executivo em posição de preeminência, e o Legislativo em situação de mera coadjuvação. É indispensável vislumbrar na proporcionalidade de forças na formulação das opções políticas do Estado, decorrente do sistema de separação associado aos freios e contrapesos (checks and balances), que Executivo e Legislativo, atuando em suas respectivas esferas de atribuição, possuem a mesma relevância política.

 

         Assim como o Executivo não deve sofrer indevida interferência em sua primacial função de administrar (planejamento, direção, organização e execução das atividades da Administração), o Legislativo não deve ver minimizada sua atividade de legislar. Afinal, em última análise, nosso regime democrático é representativo, e o Poder Legislativo, em sede de elaboração legislativa, reflete a própria voz da vontade popular.

 

         Entendimento diverso significa admitir, como perfil do Estado Democrático brasileiro, numa imagem representativa, uma balança deslocada para um lado de maior importância e prestígio: o lado do Poder Executivo. Um Executivo hipertrofiado em suas atribuições e poderes, ladeado por um Legislativo que se limitará a chancelar iniciativas daquele.

 

         Não parece ter sido esta a opção do Constituinte.

 

         Note-se, de início, que a essência da separação de Poderes, como ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho, é a “proteção da independência de determinado Poder, como ocorre com a de iniciativa em favor do Judiciário, que aliás, procede da inspiração que em Montesquieu sugeria a atribuição de veto ao Executivo, ou a redução das despesas públicas”(Do processo legislativo, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p.147).

 

         Como anota José Afonso da Silva, nos casos de iniciativa reservada aos Chefes do Executivo só estes “estão em condições de saberem quais são esses interesses e como fazerem para resguardá-los” (Processo constitucional de formação das leis, 2ªed., São Paulo, Malheiros, 2006, p.179).

 

         Deve-se notar, entretanto, que a regra em nosso regime constitucional é a livre iniciativa legislativa, que decorre do art.61 caput da CF, ao passo que as hipóteses de iniciativa reservada são excepcionais. Como tal é curial que regras de exceção sejam interpretadas restritivamente, sem a possibilidade de extensão por integração ou interpretação analógica.

 

         Lembrando o brocardo latino segundo o qual “exceptiones sunt strictissimae interpretanionis”, há muito Carlos Maximiliano anotava que “as disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas ou contra o direito comum, por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente” (Hermenêutica e aplicação do direito, 18ªed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1999, p.227).

 

         O Pretório Excelso já assentou que as hipóteses indicadas pelo texto constitucional como casos de iniciativa legislativa privativa do Executivo, assumindo o caráter de direito excepcional, na expressão de Carlos Maximiliano, devem ser interpretadas de forma restritiva. Confira-se:

 

         "O respeito às atribuições resultantes da divisão funcional do Poder constitui pressuposto de legitimação material das resoluções estatais, notadamente das leis. Prevalece, em nosso sistema jurídico, o princípio geral da legitimação concorrente para instauração do processo legislativo. Não se presume, em conseqüência, a reserva de iniciativa, que deve resultar — em face do seu caráter excepcional — de expressa previsão inscrita no próprio texto da Constituição, que define, de modo taxativo, em numerus clausus, as hipóteses em que essa cláusula de privatividade regerá a instauração do processo de formação das leis. O desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo legislativo, quando resultante da usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz hipótese de inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria integridade do diploma legislativo assim editado, que não se convalida, juridicamente, nem mesmo com a sanção manifestada pelo Chefe do Poder Executivo (...).”(ADI 776-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-10-92, DJ de 15-12-06).

  

         "A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição — e nele somente —, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima — considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa — se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa." (MS 22.690, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-06).

 

         Ao editar lei prevendo a obrigatoriedade dos postos de abastecimento de combustíveis proteger com grade as canaletas existentes para captação e escoamento de água, em nada a Câmara Municipal está interferindo na autonomia municipal, sobretudo porque não veicula qualquer ato de administração, de sorte a malferir a separação dos Poderes.

 

         Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura as executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

 

         Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis de efeitos concretos, que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os Poderes. Mas não é essa a hipótese dos autos.

 

         A questionada lei municipal criou regra genérica, assim como abstrata e impessoal.

 

         Por outro lado, ao simplesmente prever que a fiscalização será realizada pela Diretoria de Obras e Engenharia do Município, também não se pode afirmar que implique a criação ou o aumento de despesa pública.

 

         Portanto, também, com a devida vênia, não merece acolhimento a pretensão do autor por esse argumento.

 

         O órgão já existe e, como se sabe, tem atribuições fiscalizatórias. Em nada inovou a lei municipal.

 

         Posto isso, requer-se a improcedência da presente Ação Direta, mantendo-se a higidez da Lei Municipal n. 3.742, de 15 de agosto de 2007, do Município de Lençóis Paulista, revogando-se a liminar anteriormente concedida.

 

São Paulo, 24 de abril de 2008.

 

 

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA,

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça