Autos n. 153.060.0/5-00
Autor: Prefeito Municipal de Guaíra
Objeto de
impugnação: Art. 74,
incisos I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, XII, 1, 2, 3, 4, 5,
parágrafo único e art. 77, I e II, §§ 1º , 2º e 3º, todos da Lei Orgânica do
município de Guaíra
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator
Colendo
Órgão Especial
O Prefeito Municipal de Guaíra ajuizou a presente ação
direta para sindicar diversos dispositivos legais da Lei Orgânica do município:
art. 74, incisos I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, XII, 1, 2, 3, 4,
5, parágrafo único e art. 77, I e II, §§ 1º , 2º e 3º, todos da Lei Orgânica do
município.
Oportuna
a transcrição dos dispositivos legais impugnados, que se encontram na Seção III
da Lei Orgânica, que define a Responsabilidade
do Prefeito:
Artigo 74 - São infrações
político/administrativas do Prefeito, sujeitas ao julgamento pela Câmara dos
Vereadores e sancionadas com a cassação do mandato:
I – impedir o funcionamento regular da
Câmara, bem como retardar os recursos financeiros relativos às dotações
orçamentárias que devam ser colocadas à sua disposição;
II – impedir o exame de livros, folhas de
pagamento e demais documentos que devam constar dos arquivos da Prefeitura, bem
como a verificação de obras e serviços municipais, por Comissão de Investigação
da Câmara ou Auditoria, regularmente instituída;
III – desatender, sem motivo justo às
convocações e/ou pedidos de informação da Câmara, quando feitos a tempo e em
forma regular;
IV – retardar a publicação ou deixar de
publicar as leis e atos sujeitos a essa formalidade;
V – deixar de apresentar à Câmara, no devido
tempo e forma regulamentar, a proposta de LDO- Lei de Diretrizes Orçamentária e
o Orçamento anual;
VI – descumprir o orçamento aprovado para o
exercício financeiro;
VII – praticar, contra expressa disposição de
lei, ato de sua competência, ou omitir-se na sua prática;
VIII – omitir-se ou negligenciar na defesa de
bens, rendas, direitos ou interesses do Município, sujeitos à administração da
Prefeitura;
IX – fixar residência ou domicílio fora do
Município;
X – ausentar-se do Município, por tempo
superior a 15 (quinze) dias úteis, ou afastar-se da Prefeitura pelo mesmo
prazo, sem autorização da Câmara;
XI – proceder de modo incompatível com a
dignidade e o decoro do cargo, ou atentatório das instituições vigentes;
XII – atentar contra;
1 – a autonomia do município;
2 – o livre exercício do Poder Legislativo;
3 – o exercício dos direitos políticos,
individuais e sociais;
4 – a probidade na administração;
5 – o cumprimento das leis e das decisões
judiciais.
Parágrafo Único – A cassação do mandato será
julgada pela Câmara, de acordo com o estabelecido no Regimento Interno do
Legislativo Municipal.
Artigo 77 - O Prefeito ficará suspenso de
suas funções:
I - nas infrações penais comuns, se recebida
a denúncia ou queixa-crime pelo Tribunal de Justiça do Estado;
II – após instauração de Comissão Processante
pela Câmara Municipal;
§ 1º - Se, decorrido o prazo de 180 (cento e
oitenta) dias e o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do
Prefeito, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo.
§ 2º - Enquanto não sobrevier sentença
condenatória nas infrações comuns, o Prefeito não estará sujeito à prisão.
§ 3º - O Prefeito, na vigência de seu
mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas
funções.
Por força de decisão interlocutória, o Nobre
Desembargador Relator, Dr. JARBAS MAZZONI, a fls. 73/76, deferiu a liminar
pleiteada pelo autor, determinando a suspensão da eficácia dos questionados
dispositivos legais.
Notificada, a Câmara Municipal prestou informações
nos termos regimentais (fls. 92/103), defendendo a constitucionalidade do ato
normativo.
Citado
para os fins do § 2.º do art. 90 da Constituição Paulista, o Procurador Geral
do Estado defendeu a exegese que condiciona a sua intervenção nos processos de
fiscalização abstrata à existência de interesse estadual na preservação do
texto normativo impugnado, ausente neste caso (fls. 113/115).
É
o breve relato.
A
presente ação direta é procedente.
Segundo a inicial, “a tipificação das infrações
político-administrativas não é da competência do Município e, destarte, lícito
não é à Câmara Municipal a seu respeito legislar”. Acrescenta que o legislador
municipal, ao prever hipóteses de afastamento do Prefeito Municipal, também
extrapolou os limites constitucionais.
De
fato, os dispositivos legais questionados, ao disporem sobre infração
político-administrativa, são inconstitucionais, sobretudo porque tipificam
infrações político-administrativas, com possibilidade de afastamento do
Prefeito.
Assim
sendo, data venia, fica claro que os
Municípios não dispõem de competência para legislar sobre essa matéria,
infrações político-administrativas, que é privativa da União (CF, artigos 15,
“caput”, 22, I e XIII, e 24, XI), incumbindo-lhe tão-somente observar as
prescrições emanadas no Decreto-lei n. 201/67, o qual foi recepcionado pela
nova ordem constitucional, como, aliás, o Egrégio Supremo Tribunal Federal já
deixou assentado em mais de uma passagem (HC n.º 69.850-6/RS, DJ 27.5.94, HC .º
70.671-PI, j. em 13.4.1994, DJU de 19.5.1994, p. 13.993, “apud” Tito Costa, in
‘Responsabilidade de Prefeitos e Vereadores’, RT, São Paulo, 1998, 3.ª edição,
p. 30).
Nessa
mesma linha, José Nilo de Castro preleciona que “os crimes de responsabilidade
dos Prefeitos, que não são ilícitos penais, mas infrações
político-administrativas - e não apenas administrativas - não podem ser
tratados na revelação primária - nem secundária - pelas Câmaras Municipais, nem
pelas Assembléias Legislativas, como o não são, tratando-se da
responsabilização de Governadores, e, sim, pela União, porque se cogita de
sanção, de punição, de pena que é política, que se adstringe e tem a ver com a
cidadania, e não sanção administrativa atípica, que tem a ver com os servidores
públicos, sua atividade própria, de que trata o Direito Administrativo. De
direito político (aquisição, suspensão, perda, seu exercício), como da cidadania,
é que a questão aqui cogita e sobre esta matéria só a União pode legislar
(arts. 15, caput, e 22, I, XIII, CR). Falece, conseqüentemente, ao Município
poder constitucional decorrente, diversamente do que se verifica com os Estados
federados. A autonomia do Município, como se proclamou, é limitada, ante a
supremacia tanto do Estado quanto e sobretudo da União”[1].
Na
verdade, crime comum e crime de responsabilidade são figuras jurídicas que
exprimem conceitos inconfundíveis. O crime comum é um aspecto da ilicitude
penal. O crime de responsabilidade refere-se à ilicitude
político-administrativa. O legislador constituinte utilizou a expressão crime
comum, significando ilícito penal, em oposição a crime de responsabilidade,
significando infração político-administrativa (Cf. José Celso de Mello Filho,
“Constituição Federal Anotada”, Editora Saraiva, São Paulo, 1986, 2.ª ed., p.
270).
Os
delitos tipificados no art. 1.º do Decreto-lei Federal n.º 201/67, a despeito
da terminologia empregada pelo legislador, são crimes ou infrações penais
comuns, cuja competência para processo e julgamento é do Tribunal de Justiça.
E, por outro lado, as infrações político-administrativas definidas no art. 4.º
do referido decreto-lei é que
correspondem aos crimes de responsabilidade,
cujo julgamento é de competência da Câmara
Municipal.
A
Constituição Federal, nos seus arts. 85 e 86, define crimes de responsabilidade
do Presidente da República e estabelece algumas regras procedimentais, como por
exemplo a que prevê o 'quorum' qualificado de 2/3 (dois terços) para o
recebimento da acusação e a suspensão da referida autoridade do exercício de
suas funções.
Na
Constituição do Estado de São Paulo, essa matéria vem disciplinada nos arts.
Nessa
decisão, como se disse, a Suprema Corte considerou que os ilícitos
político-administrativos (ou crimes de responsabilidade) apresentam a mesma
natureza das infrações penais comuns e, bem por isso, afastou a competência
estadual para dispor sobre essa matéria. Em conseqüência, se nem mesmo os
Estados dispõem de competência para definir crimes de responsabilidade (ou
infrações político-administrativas) dos seus governantes, e estabelecer regras
para o seu processo e julgamento, muito menos ainda os Municípios em relação
aos prefeitos.
Em
decorrência, não pode lei municipal disciplinar, como no caso dos autos,
hipótese de crimes de responsabilidade, seu respectivo processo, hipótese de
afastamento do Prefeito Municipal etc; a matéria é inteiramente regulada em lei
federal, que já existe, como se disse.
Como
se vê, os dispositivos legais disciplinaram assunto que se insere na
competência legislativa privativa da União, desrespeitando os artigos 1.º,
24, 111 e 144 da Constituição do Estado,
este último a repetir - de modo sintético – o conteúdo dos artigos 21, e
22 da Constituição da República,
expressão do princípio federativo. De fato, assim dispõem as referidas normas
constitucionais:
“Art.
1º - O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil,
exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal.
Art.
144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e
financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e
nesta Constituição.”
Posto isso,
aguarda-se seja a presente ADIn julgada procedente, declarando-se a
inconstitucionalidade dos seguintes dispositivos legais: art. 74, incisos I,
II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI, XII, 1, 2, 3, 4, 5, parágrafo único e
art. 77, I e II, §§ 1º , 2º e 3º, todos
da Lei Orgânica do município de Guaíra.
São Paulo, 19 de setembro de 2008.
MAURÍCIO
AUGUSTO GOMES
PROCURADOR
DE JUSTIÇA,
no exercício
de função delegada
pelo
Procurador-Geral de Justiça