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AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

Processo nº 153. 427. 0/0-00

Requerente: Prefeito do Município de Dracena

Objeto: Lei nº 3.480, de 19 de julho de 2007

 

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente,

 

 

 

                                                           O Prefeito Municipal de Dracena formulou a presente ação visando a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 3.840, de 19 de julho de 2007, daquele Município, que dispõe sobre “a participação popular e a criação da Comissão de Acompanhamento das Licitações”.

 

                                                           Houve concessão da liminar, conforme decisão de fls. 47/50.

 

                                                           A Câmara Municipal prestou informações às fls. 60/63 e  argüiu em preliminar a impossibilidade jurídica do pedido, sob o argumento de que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo está impedido de fazer o controle de constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais e municipais em face da Constituição Federal. No mérito, a constitucionalidade da Lei Municipal impugnada.

 

 

                                                     Observo, no entanto, que o Procurador Geral do Estado não foi citado.

 

 

                                                           Para se evitar, eventual nulidade do processo, requeiro a citação do mesmo, após o que, protesto por nova vista, para apresentação do parecer final.

 

 

São Paulo, 18 de abril de 2008.

 

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

Procurador de Justiça no exercício de função delegada

 pelo Procurador-Geral de Justiça   

 

 

 

 

 

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Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo n. 153.427.0/0-00

Requerente:  Prefeito do Município de Dracena

Requerido  :   Presidente da Câmara Municipal de Dracena

 

 

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator:

 

 

 

 

            Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 3.480, de 19 de julho de 2007, de Dracena, que dispõe sobre a participação  popular e a criação da comissão de Acompanhamento das Licitações, sob o argumento, que a mesma afronta o princípio da independência e harmonia entre os Poderes, bem como o art. 47, XIX, “a”, da Carta Paulista.

 

            Deferida a liminar (fls. 47/50), o Procurador-Geral do Estado se pronunciou a fls. 78/80.

 

 

 

 

                          A Câmara Municipal prestou informações às fls. 60/63 e argüiu em preliminar a impossibilidade jurídica do pedido, sob o argumento de que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo está impedido de fazer o controle de constitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais e municipais em face da Constituição Federal. No mérito, defendeu a Constitucionalidade da Lei Municipal impugnada.

 

            É a síntese necessária.

           

            A preliminar argüida não merece ser acolhida, na medida em que o autor da ação, não se insurge apenas quanto à violação de dispositivos legais da Constituição Federal, mas também, quanto a dispositivos legais previstos pela Constituição Estadual ( art. 5º e 47, XIX, “a”, da Constituição Estadual).

 

            Sendo, assim, o Egrégio Tribunal de Justiça é competente para julgar a presente ação.

 

            No mérito, o pedido comporta acatamento.

 

            O texto da espécie normativa impugnada é o seguinte:

 

 

 

 

Art. 1º- Fica garantida a participação popular através da criação da Comissão de Acompanhamento das Licitações e Contratações da Administração Pública Municipal Direta ou Indireta, com o objetivo de examinar, acompanhar e fiscalizar as Licitações, na conformidade do previsto nesta Lei, bem como sua devida execução.

 

Art. 2º - A Comissão de Acompanhamento das Licitações será vinculada à Câmara Municipal de Dracena e terá como competência:

 

I- Examinar, acompanhar e fiscalizar, em todos os seus atos e etapas, o processamento das licitações municipais, bem como apreciar a regularidade da celebração de convênios e das contratações firmadas diretamente em razão da inexigibilidade ou dispensa de licitação;

 

II- Exigir  esclarecimentos de autoridades ou servidores municipais, relativamente às matérias referidas no inciso antecedente, a serem obrigatoriamente prestadas, sob pena de responsabilidade funcional, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas;

 

III- Comunicar ao chefe do Executivo, ao Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, ao Ministério Público Municipal e ao Plenário da Câmara Municipal a constatação de quaisquer irregularidades na prática de proc4edimentos licitatórios, convênios ou contratos firmados no âmbito da Administração Direta e Indireta do Município;

 

IV- Participar, com direito a voz, das reuniões da Comissão Municipal de Licitação, e suas

 

                                                    observações, apontamentos e denúncias devem constar obrigatoriamente na ata de seus trabalhos e, ainda, serem devidamente encaminhadas ao Prefeito.

 

Art. 3º - A Comissão de Acompanhamento das Licitações deliberará sobre matérias referidas no artigo antecedente, na forma do estabelecido no seu regimento interno.

 

Art. 4º - Integrarão a Comissão de Acompanhamento das Licitações, na qualidade de Conselheiros:

 

I- um Vereador indicado por cada Partido Político com representação na Câmara Municipal no momento em que, na forma regimental, deva ser feita a indicação;

 

II- um representante da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB;

 

III- um representante do Sindicato dos Servidores Públicos Municipais;

 

IV- um representante da ACE – Associação Comercial e Empresarial de Dracena;

 

V- um representante das Centrais Sindicais dos Trabalhadores;

 

VI- um representante da Sociedade dos Engenheiros;

 

VII- um representante do Ministério Público;

 

VIII- um representante das Associações de Bairros; e

 

IX- um representante de uma ONG do município.

 

§1º - Ficarão impedidos de exercer a Presidência da Comissão de Acompanhamento das Licitações os Vereadores que integrem ou tenham sido eleitos pelo partido a que se encontra filiado o Chefe do Executivo Municipal.

 

§ 2º - O mandato dos membros da Comissão de Acompanhamento das Licitações será de 02 (dois) anos.

 

§3º - O exercício das funções dos membros da Comissão de Acompanhamento das Licitações não será remunerado, mas considerado de grande relevância social.

 

§4º - As reuniões ordinárias e extraordinárias da Comissão de Acompanhamento das Licitações somente serão instaladas com a presença de, no mínimo, 1/3 (um terço0 dos seus membros).

 

Art. 5º - A nomeação dos membros da Comissão de Acompanhamento das Licitações  será formalizada pela Mesa diretora da Câmara Municipal de Dracena, respeitando o disposto nesta Lei.

 

Art. 6º - O regimento interno da Comissão de Acompanhamento das Licitações será aprovado e Modificado sempre que necessário, por votação de 2/3 (dois terços) dos membros.

 

Art. 7º - A Administração Municipal enviará no prazo de 48 (quarenta e oito) horas a documentação solicitada referente aos processos licitatórios, bem como a execução dos mesmos.

 

Art. 8º - Constitui infração político-administrativa a não observância dos prazos estabelecidos nesta lei, bem como qualquer tipo de negligência, interferência ou boicote das ações da referida Comissão.

 

Art. 9º - As despesas com a execução desta Lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias.

 

Art. 10 – A presente Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

 

 

 

            Entretanto, não obstante o elevado intuito do Vereador, a inovação democrática prevista na legislação do Município de Dracena contraria preceitos  da Constituição do Estado,  

em especial o art. 24, § 2º, II, o art. 37,  art. 47, II, art. 144 e  150.

 

            Conforme a formatação que lhe deu a lei, a Comissão de Acompanhamento das Licitações foi concebido como órgão de participação e controle popular para atuarem junto às Licitações e Contratações da Administração Pública. Dentre outras coisas, foram incumbidos de examinar e fiscalizar em todos os seus atos e etapas, o processamento das licitações municipais, bem como apreciar a regularidade da celebração de convênios e das contratações firmadas diretamente em razão de inexigibilidade ou dispensa de licitação.

 

                       É certo que “os Municípios possuem autonomia para estabelecer os órgãos de seus governos na forma que lhes parecer mais conveniente ao desempenho dos encargos que lhes cabem na partilha de competências federativas” (Hely Lopes Meirelles. ob.cit., p. 557). Contudo, a teor do artigo 61, § 1º, inciso II, “e”, da Constituição Federal, é incontroverso que, por simetria, cabe ao Prefeito a iniciativa de normas legais que disponham sobre a criação, estruturação e atribuições dos órgãos da administração pública (cf. art. 24, § 2º, II, da Constituição Estadual).

 

                       O Prefeito é o chefe da Administração local, integrando as suas atribuições, dentre outras, a função organizatória, que “se reveste de características essencialmente política, no sentido alto de aparelhamento dos meios necessários à consecução dos fins coletivos, sendo, por isso, em suas diretrizes básicas, de natureza executiva” (cf. José Afonso da Silva, em “O Prefeito e o Município”, Fundação Prefeito Faria Lima, 2º ed., pp 134/143).

 

                          Justamente por isso, dentre os projetos de competência privativa do Prefeito, estão aqueles alusivos à “criação, estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entidades da administração pública municipal”.

 

                           É de competência privativa do Chefe do Executivo a iniciativa legislativa para criação e disciplina dos Conselhos Municipais e outros órgãos de fiscalização. E não há dúvidas de que ao Município cabe observar os princípios do processo legislativo (art. 144, CE). Sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de declarar a inconstitucionalidade da Lei Paulista nº 9.170/95, que dispunha sobre a criação do Conselho de Transporte da Região Metropolitana de São Paulo:

 

E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - INSTAURAÇÃO DE PROCESSO LEGISLATIVO - PROJETO DE LEI VETADO - VETO GOVERNAMENTAL REJEITADO - CRIAÇÃO DO CONSELHO DE TRANSPORTE DA REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO - CLÁUSULA DE RESERVA - USURPAÇÃO DE INICIATIVA DO GOVERNADOR DO ESTADO - MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA E REFERENDADA PELO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. - A disciplina normativa pertinente ao processo de criação, estruturação e definição das atribuições dos órgãos e entidades integrantes da Administração Pública estadual traduz matéria que se insere, por efeito de sua natureza mesma, na esfera de exclusiva iniciativa do Chefe do Poder Executivo local, em face da cláusula de reserva inscrita no art. 61, § 1º, II, e, da Constituição da República, que consagra princípio fundamental inteiramente aplicável aos Estados-membros em tema de processo legislativo. Precedentes do STF. - O desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo de positivação do Direito, gerado pela usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz vício jurídico de gravidade inquestionável, cuja ocorrência reflete típica hipótese de inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria integridade do ato legislativo eventualmente editado. Precedentes do STF.

 

            Além desse vício formal, que invalida na integralidade a Lei nº 3 480, de 19 de julho de 2007 (que é fruto de projeto de vereador), a legislação é materialmente inconstitucional na medida em que interfere nos poderes próprios do Chefe do Executivo — a quem incumbe a direção superior da administração.

 

            Como se sabe, a República Federativa do Brasil constitui-se em “Estado Democrático de Direito”. Mas as formas do exercício democrático são exclusivamente aquelas previstas na Constituição. A Câmara dos Deputados (assim como as Assembléias Estaduais e as Câmaras de Vereadores) são compostas por “representantes do povo”, eleitos pelo sistema proporcional, para exercer o Poder Legislativo. Já o Presidente da República (e, simetricamente, os Governadores e Prefeitos) é eleito para exercer o Poder Executivo, sendo a ele que compete, privativamente, exercer a direção superior da administração (CF, art. 76, 77 e 84 II e CE, art. 37, 39 e 47, II). Essas regras — que dão a cadência do jogo democrático — marcam os limites de participação popular no aparato oficial do Estado. Por essa razão, o Supremo Tribunal Federal tem considerado contrárias à constituição as formas inovadoras de intervenção popular, até mesmo quando concebidas pelo legislador. Com esse argumento, foi declarada inconstitucional, por exemplo, uma norma que previa a participação popular na condução das polícias:

 

"Além das modalidades explícitas, mas espasmódicas, de democracia direta - o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular (art. 14) - a Constituição da República aventa oportunidades tópicas de participação popular na gestão da segurança pública. (...) A Constituição não abriu ensanchas, contudo, à interferência popular na gestão da segurança pública". 

(Adin 244/RJ, rel. Ministro Sepúlveda Pertence, julgamento em 11/09/2002)

(DOC. nº 03)

 

            Como se pode observar, a legislação impugnada criou um organismo de  fiscalização e controle das tarefas do Poder Executivo, e fez incluir, na composição desses órgãos, representante de partidos políticos com representação na Câmara Municipal (art. 4º, I, da Lei Municipal). Em outras palavras, a Câmara Municipal assegurou, pela maneira como disciplinou a composição da Comissão, a sua própria participação no órgão que criou. Mas também aqui a inconstitucionalidade está presente.

 

            Não se nega ao Legislativo o seu poder constitucional de fiscalizar. Realmente, o artigo 150 da Constituição do Estado é claro ao atribuir à Câmara Municipal o “controle externo” de toda a atividade contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Município, na forma da respectiva Lei Orgânica, com o auxílio do Tribunal de Contas competente (cf. art. 31, § 1º, CF), enquanto o artigo 13, § 2º da Carta Estadual condiciona a criação das comissões parlamentares de inquérito — admitidas por certo prazo e para apurar fato determinado — ao requerimento de um terço dos membros da Assembléia Legislativa. Mas esse controle não é irrestrito. Ao contrário, encontra  limites no perfil que lhe deu a Constituição Federal.

 

            No presente caso, a Câmara Municipal foi além do que dispõe a Constituição e criou um organismo híbrido (composto de cidadãos comuns, qualificados como representantes da população, e representante de partidos políticos) para fins de investigação e controle dos atos do executivo, o que caracteriza, conforme pacífica orientação do STF, afronta ao princípio da harmonia e independência entre os Poderes, consagrado no artigo 5º da Constituição do Estado de São Paulo.

 

 

.           Como tivemos oportunidade de observar em outra ocasião (Adin. 106.612.0/6), a matéria não é nova e esse Egrégio Tribunal Paulista já firmou entendimento segundo o qual não é possível instituir outro sistema de controle externo que não o previsto no texto fundamental (Cf. ADIn n.º 18.459.0/0-SP, rel., Djalma Lofrano; ADIn n.º 16.747-0/0-SP, rel. Bueno Magano; ADIn n.º 14.021.0/3-SP, rel. Francis Davis; ADIn n.º 14.466.0/3-SP, rel. Francis Davis).

 

            A ingerência do Legislativo no exercício dessa competência configuraria subordinação de um Poder ao outro, o que contraria a idéia da independência e harmonia entre os Poderes. Descabe ao Legislativo tomar a iniciativa de, por via de lei, interferir na administração ordinária do Município.

 

            A conclusão é inevitável em face do modelo adotado pela Constituição Federal para a relação entre os Poderes. Não há, nesse modelo, previsão de autorização legislativa para que o Executivo pratique seus atos bilaterais de administração ordinária, que estão submetidos apenas ao controle externo da prestação anual de contas. E essa regra se aplica tanto aos Estados-membros como aos Municípios, uma vez que ela se insere nos fundamentos do princípio da separação entre os Poderes, que são de observância obrigatória por todos os entes federados.

 

            Esse o entendimento sedimentado no Supremo Tribunal Federal:

 

 

 

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Constituição do Estado de Minas Gerais. Artigo 181, incisos I e II. Acordos e convênios celebrados entre Municípios e demais entes da Federação. Aprovação prévia da Câmara Municipal. Inconstitucionalidade. Art. 2º da Constituição Federal. Este Supremo Tribunal, por meio de reiteradas decisões, firmou o entendimento de que as normas que subordinam a celebração de convênios em geral, por órgãos do Executivo, à autorização prévia das Casas Legislativas Estaduais ou Municipais, ferem o princípio da independência dos Poderes, além de transgredir os limites do controle externo previsto na Constituição Federal. Precedentes: ADI 676/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso e ADI nº 165/MG, Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Ação direta que se julga procedente.” (ADI 770/MG, Rel. Min. Ellen Gracie)

(DOC. nº 4)

 

            Em resumo, a legislação impugnada contraria os artigos 24, § 2º, II, 37,  47, II, 144, e 150, todos da Constituição do Estado de São Paulo, razão pela qual deve ser declarada inconstitucional.

 

 

São Paulo, 15 de julho de 2008.

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça