AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

Processo nº. 154.179-0/5-00

Autor: Prefeito Municipal de Santa Isabel

Objeto: Lei n. 2.385, de 22 de fevereiro de 2007.

 

Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei ordinária de iniciativa de Vereador e que define o perímetro urbano do Município. 2) Planejamento urbanístico. Requisito constitucional na matéria. Providência atrelada ao Poder Executivo. Dispositivo, fruto da iniciativa parlamentar, que viola o disposto nos art.180 caput e inciso II, art.181 caput e §1º, ambos da Constituição Estadual; bem como, por força do art.144 da Constituição Estadual, o art.182 caput e §1º, e o art.30, inciso VIII da Constituição Federal. 3) Gestão administrativa. Atividade que engloba planejamento, direção, organização e execução. Invasão dessa esfera pelo Poder Legislativo, por meio da lei aprovada e vetada, com derrubada do veto pela Câmara Municipal. Violação da regra da separação de poderes. Violação dos art.5º, 47 II e XIV e 144 da Constituição Estadual. 4) Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

                                                         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Santa Isabel, tendo como alvo a Lei n. 2.385, de 22 de fevereiro de 2007, de Santa Isabel.

 

                                                         Alega o autor que foi surpreendido em meados de dezembro de 2006 com o Autógrafo de Lei nº. 65/2006, que alterou o perímetro urbano do Município de Santa Isabel, revogando as Leis Municipais nºs. 2.235, de 17 de dezembro de 2003 e 2.250, de 6 de maio de 2004. Tendo sido vetada a lei por vício de iniciativa, bem como por entendê-la contrária aos princípios orçamentários e sua regulamentação pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

 

                                                         Por força de despacho de fl. 280, emendou a inicial para fazer constar que há afronta aos artigos 47, incisos XI e XVII, 144 e 174 da Constituição Estadual.

 

                                                         Concedida a liminar (fls. 286/288), manifestou-se a Câmara Municipal de Santa Isabel (fls. 294/297), defendendo o ato inquinado. Diz ainda que a lei objeto desta ação foi revogada pela Lei Complementar nº. 106, de 9 de abril de 2007, “que dispõe sobre o Plano Diretor Estratégico do Município, já que esta, no parágrafo único do art. 154, manteve o mesmo perímetro urbano de 79,691 km², aguardando lei específica do Executivo, que estabeleça os novos traçados, conforme consignado no ‘caput’ desse artigo, em razão do que, ‘concessa vênia’, a presente ADIn se encontra prejudicada por falta de objeto.” (fl. 296). Informa ainda que se encontra em andamento a ADIn nº. 154.511.0/5-00 que contesta o parágrafo único do art. 154 da Lei Complementar nº. 106, de 9 de abril de 2007, sob o mesmo fundamento do vício de iniciativa.

 

                                                         A Municipalidade de Santa Isabel (fls. 397/398) requer o reconhecimento da conexão desta ação com a acima mencionada.

 

                                                         A Douta Procuradoria Geral do Estado não viu interesse do na defesa do ato (409/410) e

 

                                                         É a síntese do que destes autos consta.

 

2) Sobre as matérias preliminares

 

                                                         De fato impõe-se a decretação da carência de ação, pois a Lei Complementar nº. 106, de 9 de abril de 2007 revogou a Lei nº. 2.385, de 22 de fevereiro de 2007, nos termos de seu art. 155 (fl. 391).

 

                                                         Ressalte-se que mesmo não tendo ocorrido a revogação expressa, com menção do diploma anterior, entendemos que a lei inquinada nesta ação já não mais existia no ordenamento jurídico quando da protocolização da inicial, visto a identidade da matéria tratada no art. 1º da Lei n. 2.385/07 com aquele do parágrafo único da LC 106/07, operando-se a revogação tácita.

 

                                                         Caso assim não seja entendido, pensamos ser o caso de reunião das ações por conexão. Com efeito, é do Código de Processo Civil:

Art. 103. Reputam-se conexas duas ou mais ações, quando Ihes for comum o objeto ou a causa de pedir.

 

                                                         De fato, o objeto delas não é o mesmo (duas leis distintas), mas sim a causa de pedir – a inconstitucionalidade das leis pelos mesmos motivos – havendo ainda razões de ordem prática, pois os dispositivos impugnados são praticamente idênticos, por tudo recomendando o julgamento conjunto.

 

3) Mérito.

 

                                                         A questão objeto de análise nesta ação direta diz respeito à possibilidade de edil apresentar projeto de lei, na hipótese de iniciativa legislativa do Chefe do Executivo, para matérias como a tratada na Lei nº. 2.385/07. Em outras palavras, é necessário indagar se se tratando de matéria relativa ao planejamento urbanístico – ainda que na hipótese de fixação perímetro urbano – há reserva de iniciativa do Poder Executivo no encaminhamento do respectivo projeto de lei.

 

                                                         A Constituição do Estado de São Paulo prevê objetivamente a necessidade de planejamento em matéria urbanística.

 

                                                         O art.180 caput da Carta Bandeirante, ao tratar do tema, indica os critérios a serem observados, pelo Estado e pelos Municípios, no “estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano”. Entre eles, de conformidade com o inciso I do referido artigo, encontra-se a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução de problemas, “plano, programas e projetos que lhes sejam concernentes”.

 

                                                         O art.181 da Constituição Estadual, por sua vez, prescreve que a “lei municipal estabelecerá em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes”; enquanto o respectivo §1º estabelece que “os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão considerar a totalidade do território Municipal”.

 

                                                         Cumpre recordar que a exigência do plano diretor, como “instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”, está assentada no §1º do art.182 da Constituição Federal, cuja aplicabilidade à hipótese decorre da regra contida no art.144 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

                                                         Anote-se, finalmente, que o art.182 caput da CF disciplina que “a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

 

                                                         Recorde-se também que o inciso VIII do art.30 da Constituição Federal prevê a competência dos Municípios para “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.

 

                                                         É possível extrair dos dispositivos acima apontados que: (a) a adequada política de ocupação e uso do solo é valor que conta com assento constitucional; (b) a política de ocupação e uso adequado do solo se faz mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei; (c) as diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das peculiaridades de cada Município.

 

                                                         A sistemática constitucional, quanto à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso do solo, torna patente que o casuísmo não é admissível.

 

                                                         Qualquer modificação legislativa que envolva a ocupação e uso do solo deve ser realizada dentro de um contexto de planejamento, e de diretrizes gerais. Não se admite, nesse quadro, a ordenação individualizada e dissociada do contexto da utilização de todo o solo urbano.

 

                                                         Tratando da elaboração do plano diretor do ordenamento urbano, anota Hely Lopes Meirelles que:

”Toda cidade há que ser planejada: a cidade nova, para sua formação; a cidade implantada, para sua expansão; a cidade velha, para sua renovação”; acrescendo que “a elaboração do plano diretor é tarefa de especialistas nos diversificados setores de sua abrangência, devendo por isso mesmo ser confiada a órgão técnico da Prefeitura ou contratada com profissionais de notória especialização na matéria, sempre sob supervisão do Prefeito, que transmitirá as aspirações dos munícipes quanto ao desenvolvimento do Município e indicará as prioridades das obras e serviços de maior urgência e utilidade para a população”.[1]

 

                                                         Tratando especificamente do problema da ocupação e uso do solo, anota José Afonso da Silva que a respectiva ordenação é um dos aspectos fundamentais do planejamento urbanístico, salientando ainda, quanto às hipóteses de alteração de zoneamento, que:

recomenda-se, nessas alterações, muito critério, a fim de que não se façam modificações bruscas entre o zoneamento existente e o que vai resultar da revisão. É preciso ter em mente que o zoneamento constitui condicionamento geral à propriedade, não indenizável, de tal maneira que uma simples liberação inconseqüente ou um agravamento menos pensado podem valorizar demasiadamente alguns imóveis, ao mesmo tempo que desvalorizam outros, sem propósito. É conveniente que o zoneamento resultante da revisão ou da alteração constitua uma progressão harmônica do zoneamento revisado ou alterado, para não causar impactos, que, por sua vez, geram resistências que dificultam sua implantação e execução. É prudente avançar devagar, mas com firmeza, energia e justiça”[2]

 

                                                         Cumpre finalmente destacar a importância do planejamento urbanístico e da necessária razoabilidade de que se deve revestir a legislação elaborada nesta matéria, recordando Toshio Mukai, que “a ocupação e o desenvolvimento dos espaços habitáveis, sejam eles no campo ou na cidade, não podem ocorrer de forma meramente acidental, sob as forças dos interesses privados e da coletividade. Ao contrário, são necessários profundos estudos acerca da natureza da ocupação, sua finalidade, avaliação da geografia local, da capacidade de comportar essa utilização sem danos para o meio ambiente, de forma a permitir boas condições de vida para as pessoas, permitindo o desenvolvimento econômico-social, harmonizando os interesses particulares e os da coletividade” [3]

 

                                                         Deste modo, padece de inconstitucionalidade a lei cujo projeto é de autoria de parlamentar que, sem qualquer estudo prévio consistente, e de forma casuística, altera o perímetro urbano do Município, ferindo frontalmente o disposto nos art.180 caput e inciso II, art.181 caput e §1º, ambos da Constituição Estadual; bem como, por força do art.144 da Constituição Estadual, o art.182 caput e §1º, e o art.30, inciso VIII da Constituição Federal.

 

                                                         Em síntese, a iniciativa parlamentar, nessa hipótese, que resultou no Autógrafo de Lei nº. 65/2006, vetado integralmente pelo Prefeito Municipal de Santa Isabel, e posteriormente na Lei nº. 2.385, de 22 de fevereiro de 2007, ante a derrubada do veto, dissociada do contexto de planejamento inerente ao plano diretor, acaba por minar de modo medular a própria iniciativa governamental de planejar de modo amplo o Município.

 

                                                         Em outras palavras, qual utilidade teria a exigência constitucional de planejamento urbanístico se pudesse projeto de lei de autoria de parlamentar, ser apresentado e aprovado, tornando-se lei com a posterior derrubada do veto imposto pelo Prefeito?

 

                                                         Ademais, não só o requisito constitucional do planejamento urbanístico foi violado, mas também o princípio da separação de poderes, previsto no art.5º da Constituição do Estado de São Paulo.

 

                                                         É necessário observar que, no sistema de divisão de poderes, a gestão administrativa cabe ao poder Executivo, enquanto a função de edição de atos normativos gerais e abstratos cabe ao Legislativo. Acrescente-se, corretamente visualizada a questão, que o conceito de gestão administrativa envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo.

 

                                                         Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que:

a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário”.[4]

 

                                                         Deste modo, quando a pretexto de legislar o Poder Legislativo administra - o que envolve a realização de planejamento, inclusive em matéria urbanística -, viola a harmonia e independência que deve existir entre os Poderes. Essa é exatamente a hipótese verificada nos autos.

 

                                                         Daí a necessidade de reconhecimento da inconstitucionalidade do ato normativo impugnado, também por violação ao disposto no art.5º, 47 II e XIV, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

 

 

 

3) Conclusão.

 

                                                         Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do reconhecimento da carência de ação e, caso assim não seja, pela reunião desta ação com aquela cujo processo é o de nº. 154.411.0/5-00 e, quanto ao mérito, pela procedência do pedido desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n. 2.385, de 22 de fevereiro de 2007, de Santa Isabel.

 

São Paulo, 4 de abril de 2008.

 

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

Procurador de Justiça,

no exercício de função delegada pelo

Procurador-Geral de Justiça



[1] Direito Municipal Brasileiro, 6ªed., 3ª tir., atualizada por Izabel Camargo Lopes Monteiro e Yara Darcy Police Monteiro, São Paulo, Malheiros, 1993, p.393 e 395.

[2] Direito Urbanístico, 4ªed., São Paulo, Malheiros, 2006, p.251.          

[3] In Temas atuais de direito urbanístico e ambiental, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2004, p.29.

[4]Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712.