AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE  N.º 154.413-0/4-00

Requerente   :                 Prefeito do Município de Bauru

Requerida     :                 Câmara Municipal de Bauru

Objeto        :            § 4º do art. 1º da Lei n.º 5.424, de 12 de fevereiro de 2007, do Município de Bauru

 

 

 

Ementa. Lei de iniciativa do Prefeito, mas emendada por vereador, que se insinua no regime jurídico de servidores públicos municipais aposentados e pensionistas. Falta de competência constitucional, entretanto. Inconstitucionalidade reconhecida. Ação procedente.

 

 

 

                                                                                                O Prefeito do Município de Bauru formulou esta ação direta objetivando a declaração de inconstitucionalidade do § 4º do art. 1º da Lei n.º 5.424, de 12 de fevereiro de 2007, do Município de Bauru, que estipulou regra referente ao retorno da obrigação de efetuar os pagamentos de aposentadorias e pensões, caso a Prefeitura Municipal deixe de pagar mais de três parcelas consecutivas devidas em razão de acordo com fundação de previdência do Município, alterando regras de percepção de proventos por parte de servidores públicos municipais aposentados ou pensionistas, no que diz respeito à responsabilidade pelo pagamento. Diz que embora o projeto de lei seja de sua autoria, o parágrafo 4º foi introduzido por emenda de vereador, desrespeitando os arts. 24, § 2º, item 4 e 144, da Carta Estadual. A Câmara Municipal prestou informações (fls. 37/38) e foi citada a D.Procuradoria-Geral do Estado, deixando de se manifestar sobre o mérito (fls. 130/132).  Houve o deferimento liminar da medida postulada, pelo E. Desembargador Relator, ROBERTO STUCCHI (fls. 31/33).

 

                                                         A ação deve ser julgada procedente, para que seja declarado inconstitucional o § 4º do art. 1º da Lei n.º 5.424, de 12 de fevereiro de 2007, do Município de Bauru, que altera regras de percepção de proventos por parte de servidores públicos municipais aposentados ou pensionistas. O texto legal, de iniciativa de vereador, imiscui-se no regime geral de percepção de vantagens funcionais, ainda que no que diz respeito ao Órgão governamental responsável pela satisfação da obrigação.

 

                                                         No caso, houve afronta aos artigos 5.º, 24, 47 e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. De fato, assim dispõem as referidas normas constitucionais:

“'Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

 

Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

(...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

2 - criação das Secretarias de Estado;

3 - organização da Procuradoria Geral do Estado e da Defensoria Pública do Estado, observadas as normas gerais da União;

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, reforma e transferência de militares para a inatividade: (...)

 

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

                                                                              

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

 

                                                         Ao Poder Legislativo, como se sabe, é vedada a administração da cidade, tarefa que incumbe, no Município, ao Prefeito, ou ao que, modernamente, chama-se de 'Governo', que tem na lei[1] um dos seus mais relevantes instrumentos. O poder de iniciativa neste campo -- administração da Cidade -- é do Executivo (melhor, do 'Governo'), participando o Poder Legislativo, quando assim determinar a Constituição, apenas a qualidade de aprovar-desaprovar os atos[2].  A hipótese é de administração ordinária, cabendo ao Legislativo apenas o estabelecimento de normas gerais, diretrizes globais, jamais atos pontuais e específicos.

 

 

                                                         Para Hely Lopes Meirelles, após dizer que 'todo o patrimônio municipal fica sob a administração do prefeito':

"A atribuição típica e predominante da Câmara é a normativa, isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e servi­ços públicos; dispõe, unicamente, sobre sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão-somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no prefeito.

Eis aí a distinção marcante entre a missão normativa da Câmara e a função executiva do prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamen­tos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração.

Essa divisão de funções já era reclamada por Cortines Laxes, nos idos do Império, "como uma das mais palpitantes necessidades do siste­ma municipal". E continua a sê-lo na atualidade, para que os dois Pode­res do governo local - independentes e harmônicos entre si - possam atuar desembaraçadamente no campo reservado às suas atribuições específicas. A interferência de um Poder no outro é ilegítima, por atentatória da sepa­ração institucional de suas funções (CF, art. 2°).

Por idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar fun­ções ao prefeito, nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis, estanques, intransferíveis (CF, art. 2°). Assim como não cabe à Edilidade praticar atos do Executivo, não cabe a este substi­tuí-la nas atividades que lhe são próprias. Em sua função normal e predominante sobre as demais, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é sua função específica, bem diferenciada da do Executivo, que é a de praticar atos concretos de administração. Já dissemos - e convém se repita - que o Legislativo provê in genere, o Executivo in specie; a Câ­mara edita normas gerais, o prefeito as aplica aos casos particulares ocor­rentes. Daí não ser permitido à Câmara intervir direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem provisões administra­tivas especiais manifestadas em ordens, proibições, concessões, permis­sões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução governamental".[3]­

 

                                                    Ou seja, deve a  iniciativa de qualquer projeto acerca do regime jurídico dos servidores (da ativa ou aposentados) provir do  Executivo.

 

                                                    Ante o exposto, aguarda a Procuradoria-Geral de Justiça seja declarada a inconstitucionalidade do § 4º do art. 1º da Lei n.º 5.424, de 12 de fevereiro de 2007, do Município de Bauru, com comunicações de praxe para a expulsão do ato normativo do ordenamento jurídico.

São Paulo, 02 de maio de 2008.

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA,

no exercício de função delegada pelo

Procurador-Geral de Justiça



[1] Conf. 'El Concepto de ley en la constitucion alemana'. Christian Starck,  p. 73, CEC, Madrid,  1979.

[2]  "...II Potere governante è organo che gode di fatto (e talvolta di diritto) di una stabilità garantita, necessaria per la traduzione in atto di un indirizzo. È in genere anche delegatario di rilevanti porzioni di funzione normativa. Il Legislativo. La sua funzione è divenuta quella del convalidare-confermare solenemente l'indiriz­zo politico deciso dal Potere Governante, rivesten­done le misure principali della forma della legge. Il blocco - con voto negativo - dell'indirizzo del Po­tere governante, o la rimozione formale di quest'ul­timo - quando il regime lo ammette - devono restare, per le esigenze del modello, eventi assoluta­mente eccezionali; e tali di regola sono. II Legislativo controlla il Potere governante anche con altri mezzi (interrogazioni, inchieste, ecc.). Provede con leggi di sua scelta a integrare normativamente le scelte fatte dall'indirizzo governativo." Giovanni Bognetti, 'In' 'Digesto Delle Discipline Pubblicistiche', p. 376, XI, UTET.

[3]  Direito Municipal Brasileiro, Malheiros, 12.ª ed., São Paulo, p. 576.