AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE N.º 154.526-0/0-00
Requerente :
Prefeito do Município de Santa Isabel
Requerida :
Câmara Municipal de Santa Isabel
Objeto :
Lei n.º 2.436, de 27 de agosto de
2007
Ementa: Lei municipal de iniciativa parlamentar que dispõe
sobre obrigatoriedade do Executivo utilizar somente papel reciclado na confecção
de seus impressos. Imposição de obrigação à Administração Pública. Criação de
despesas sem indicar a fonte dos recursos. Matéria afeta à administração pública.
Exclusividade de iniciativa do Prefeito Municipal. Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo
Órgão Especial
Senhor
Desembargador Relator
O
Prefeito Municipal de Santa Isabel propôs
esta ação direta objetivando a
declaração de inconstitucionalidade da Lei n.º 2.436, de 27 de agosto de 2007,
que “Dispõe sobre a obrigatoriedade de a
administração pública de Santa Isabel utilizar papel reciclado na confecção de
seus impressos e dá outras providências”. A Câmara Municipal forneceu suas
informações (fls. 75/76) e a D. Procuradoria-Geral do Estado não se manifestou
sobre o mérito (fls. 40/41). Não foi deferida a liminar (fl. 23) e o Requerente
agravou (fls. 28/38), tendo obtido êxito (fls. 61/70).
Entendemos
que a ação deva ser julgada procedente.
Há
que se aduzir desde logo que a Lei em questão é de iniciativa de vereador, tendo sido vetada pelo Executivo, mas derrubado posteriormente. Vislumbramos
afronta aos artigos 5.º, 25, 47, incs. I e II, e 144, da Constituição do Estado
de São Paulo a saber:
"Art. 5º - São Poderes do Estado,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
(...)
Art. 25 - Nenhum projeto de lei que implique a
criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios
para atender aos novos encargos.
Art. 47 - Compete privativamente ao Governador,
além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
I - representar o Estado nas suas relações
jurídicas, políticas e administrativas;
II - exercer, com o auxílio dos Secretários de
Estado, a direção superior da
administração estadual;
Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e
financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição."(g.n.)
A
administração da cidade incumbe ao que, modernamente, chama-se de 'Governo', e que
tem na lei seu mais relevante instrumento,[1] participando
sempre o Poder Legislativo na função de aprovar-desaprovar os atos[2].
Na hipótese de administração ordinária, cabe ao Legislativo o estabelecimento
de normas gerais, diretrizes globais, jamais atos pontuais e específicos,
máxime os relacionados com o dia-a-dia da administração.
Por
outro lado, a função dos parlamentos, hoje, certamente, é diversa daquela
imaginada pelos iluministas; é a lição dos nossos mais renomados autores:
“No presidencialismo, a separação entre presidente e
Congresso permite que ocorra pertencer aquele a um partido, a maioria deste a
outro, como tantas vezes já sucedeu nos Estados Unidos. Mas normalmente
presidência e maioria parlamentar têm a mesma cor política, o que estabelece
igual vinculação. Na hipótese primeira, ainda cumpre observar, a subordinação
de certo modo ainda existe, criada pelos meios de ação que tem politicamente o
governo sobre o Congresso, e, especialmente, pelas regras constitucionais
restritivas da iniciativa parlamentar, por exemplo, em matéria financeira. Na
verdade, a tendência contemporânea é a de restringir o Parlamento a uma função
de controle, fazendo dele o fiscal do governo. Volta ele assim para o ponto de
partida, já que, na Idade Média, surgiu como órgão de expressão dos desejos e
particularmente dos reclamos dos governados relativamente ao proceder do
governo. De fato, essa tendência foi assinalada por vários autores, como
Loewenstein, Meynaud etc., e
No
mesmo sentido, segundo José Adércio
Leite Sampaio:
"Não
se admite que venha o Legislativo a prever a criação de diversos órgãos, fundos
e entidades públicos, como centrais de abastecimento para armazenagem,
conservação e comercialização de
produtos agrícolas, empresa de administração portuária, conselho de transporte,
delegacias especializadas de atendimento à mulher ou estabelecimento
ambulatório, mesmo considerando que a efetividade desse tipo de norma dependa
sempre de lei ou providêncide iniciativa do próprio Governador (Supremo Tribunal Federal. Pleno.
ADInMC n. 827-AP. Rel. Min. Paulo Brossard RTJ v.
148, t. 3, p. 693; ADInMC n. l. 275-SP. Rel. Min. Marco Aurélio. RTJ \: 162, t. 3, p. 868; ADInMC n.
L. 391 -SP. Rel. Min. Celso de Mello. DJ
l de 28/11/1997, p. 62.216) tampouco
instituir um conselho destinado
ao controle e à fiscalização do sangue
(Supremo Tribunal Federal. Pleno. ADInMC n. l .275-SP. Rel. Min. Marco Aurélio. RTJ v. 162, t. 3, p. 868-870). Assim também se mostra
inconstitucional estipular a criação de conselho dotado de diversificada
composição e representatividade, destinado a orientar os órgãos de comunicação
social do Estado, suas fundações e entidades sujeitas ao seu controle (Supremo
Tribunal Federal. Pleno. ADInMC n. 821 -RS. Rel. Min. Octavio Galotti. DJ
de 7/5/1993, p. 8.327), tanto
quanto dispor sobre a organização,
funcionamento de certas entidades ou estatuto de seus servidores (Supremo
Tribunal Federal. Pleno. ADInMC n. 282-MT. Rel. Sydney Sanches. RTJ v. 161,
t. 2, p. 384-402; atribuindo à Defensoria Pública autonomia administrativa).”[4](gn.)
Na
verdade, a iniciativa das leis representa, sobretudo, um momento de escolha
política, seja da matéria, seja dos interesses suscetíveis de tutela,
orientando-se, portanto, a determinadas finalidades e a um específico objeto.
Quando a competência para o impulso não siga a tendência à dispersão e tenha
sido reservada, excepcionalmente, a certos órgãos, isso significa que é deles a
responsabilidade de formular as propostas de transformação do ordenamento normativo.
É
claro que a reserva do poder de iniciativa das leis a um órgão exterior ao
Legislativo produz graves conseqüências sobre toda a disciplina do processo
legislativo: tal orientação constitucional reduz drasticamente os amplos
poderes de escolha dos órgãos parlamentares. Todavia, é o próprio ordenamento
constitucional que reserva um feixe de matérias cuja iniciativa de lei pertence
ao Chefe do Executivo, sob pena de inconstitucionalidade. É o caso dos autos. Violou o referido ato
normativo, entre outros, o princípio da reserva de administração, que, nos
dizeres do Min. Celso de Mello (AÇAO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N.
2.364-1 ALAGOAS):
“A reserva de administração --
segundo adverte J. J. GOMES CANOTILHO ("Direito
Constitucional", p. 810/811, 5a ed. , 1991, Almedina, Coimbra)
-- constitui limite material à intervenção normativa do
Poder Legislativo, pois, enquanto princípio fundado na separação orgânica e na
especialização funcional das instituições do Estado, caracteriza-se pela identificação,
no sistema constitucional, de um
"núcleo funcional (...) reservado à administração contra as
ingerências do parlamento", por envolver matérias, que, diretamente
atribuídas à instância executiva de
poder, revelam-se insuscetíveis de deliberações concretas por parte do
Legislativo, desvestido, portanto, sob tal perspectiva, de qualquer
prerrogativa que lhe permita praticar, com repercussão sobre os
servidores públicos vinculados
ao Poder Executivo, verdadeiros atos administrativos
referentes à investidura funcional ou à sua eventual invalidação.”
Além
disso, impor à Adminsitração Pública uma obrigação que gera despesas,
certamente demandaria indicar a fonte do custeio, o que não se observa no caso
concreto.
Por
essas razões, nítida a invasão do Poder Legislativo no Poder Executivo, vedada
pela Constituição Estadual, implicando em inconstitucionalidade.
Assim
sendo, e por entender que ao Legislativo não é dada a iniciativa de lei em
matéria da Administração Pública, cometida exclusivamente ao Executivo, o parecer
é pela procedência da ação, para que
seja declarada inconstitucional a Lei
n.º 2.436, de 27 de agosto de 2007, do Município de Santa Isabel.
São Paulo, 15 de agosto de 2008.
MAURÍCIO
AUGUSTO GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA,
no exercício de função delegada
pelo
Procurador-Geral de Justiça
[1] Christian Starck.
'El Concepto de ley en la constitucion alemana', Madrid: CEC, 1979,
pág.73.
[2] "...O poder governante é que goza, de fato (e talvez de direito) de
uma estabilidade garantida, necessária para a tradução em atos de um
'indirizzo'. É, em geral, delegatária, também, de importantes porções da função
legislativa. Ao legislativo, sua função torna-se aquela convalidar-confirmar
solenemente o 'indirizzo politico' decidido pelo Poder Governante revestindo
as medidas sob a forma de lei. O bloqueio - com voto negativo – ao 'indirizzo'
do Poder governante, ou a remoção formal deste ultimo - quando o regime o
admite - deve ficar, pelas exigências do modelo, eventos absolutamente
excepcionais. O Legislativo controla o Poder governante também com outros meios
(investigações, comissões parlamentares etc). Provê as leis para a integração
normativa das escolhas feitas no 'indirizzo governativo'." Giovanni Bognetti, 'In' 'Digesto Delle Discipline Pubblicistiche', p. 376, XI, UTET.
[3] Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Do Processo Legislativo. São Paulo:
Saraiva, 2001, pág. 271.
[4] SAMPAIO. José Adércio Leite. A Constituição Reinventada pela Jurisdição
Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, pág. 490.