AÇÃO   DIRETA  DE  INCONSTITUCIONALIDADE  N.º 154.726-0/2-00

Requerente  :   Governador do Estado de São Paulo

Requerido     :   Prefeito do Município de Casa Branca e Câmara Municipal de Casa Branca

Objeto            :   Lei n.º 2.739, de 4 de novembro de 2005

 

Ementa: Lei municipal de iniciativa parlamentar que veda a construção, ampliação ou implantação de presídio. Princípio federativo. Competências estaduais. Direito penitenciário. Segurança pública. Matérias afetas aos Estados-Membros. Interesse local. Inexistência. Princípio da proibição do excesso. Inconstitucionalidade reconhecida.

 

                                                        

                                                         O Excelentíssimo Senhor Governador do Estado de São Paulo formulou a presente ação direta objetivando a declaração de inconstitucionalidade da Lei n.º 2.739, de 4 de novembro de 2005, de Casa Branca, que proíbe a construção, ampliação ou a implantação de novas instalações de presídios, casas de custódia, FEBEMS ou dependências próprias de cumprimento de pena, na zona urbana ou rural do Município de Casa Branca. Entende o autor ser o ato normativo contrário à Constituição do Estado de São Paulo, em especial artigos 1.º, 111 e 139, caput, e 144.

                                                         A liminar foi concedida (fls. 13/14), tendo a Câmara Municipal fornecido suas informações (fls. 25/28), quedando-se inerte a Prefeitura Municipal de Casa Branca.

 

                                                         Entendo ser a ação procedente, na vertente do exposto na inicial.

 

                                                         Assim dispõe o ato normativo impugnado (fl. 11), no que interessa:

Lei n.º 2.739, de 4 de novembro de 2005

Art. 1.º É proibida a construção, ampliação ou a implantação de novas instalações de presídios, casas de custódia, Febems ou dependências próprias de cumprimento de pena privada da liberdade na zona urbana e rural do município de Casa Branca.

Art. 2.º Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

 

                                                         Há que se aduzir que o texto original da Lei é de iniciativa do Legislativo. Tal norma é inconstitucional por malferir os artigos 1.º, 111, 143 e 144, da Constituição do Estado de São Paulo, este último a repetir -- de modo sintético -- o conteúdo dos artigos 21, XII, ‘a’ e 22, IV, da Constituição da República, expressão do princípio federativo.  De fato, assim dispõem as referidas normas constitucionais:

Art. 1º - O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal.

Art. 139 - A Segurança Pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio.

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

 

                                                         Os parâmetros da Constituição da República referidos pela Constituição do Estado são os seguintes:

Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos (...)

Art. 24 - Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico (...)

 

                                                         REINHOLD ZIPPELIUS, sobre a estrutura do Estado Federal,  escreveu:

"O Estado Federal é pois também uma reunião de Estados, mas organizada de tal maneira que o seu conjunto constitui igualmente um Estado em si mesmo. Esse conjunto das respectivas competências estatais no Estado Federal acha-se de tal modo distribuído entre os órgãos do Estado Federal e os dos diferentes países que o constituem, que o problema da hierarquia dessas competências fica sempre como que suspenso e em aberto. Por via de regra, as atribuições exclusivas dos Estados são repartidas segundo o critério das diferentes matérias. Assim, serão geralmente cometidas aos órgãos centrais as questões da política externa e aos Estados membros as questões de segurança e ordem pública interior. A competência legislativa pode também pertencer, segundo a índole das matérias de que se trata, já aos órgãos do poder central, já aos dos diversos países ou Estados. Ambos podem, porém, colaborar também na feitura das leis, ficando aos órgãos centrais a promulgação e aos outros, os das regiões, a execução delas.”[1]

 

                                                         O mesmo autor, relativamente à distribuição de competências entre os entes federados, ensina:

“A competência de um Estado para determinar as competências subordinadas, tambem pode ser exercida comummente por uma pluralidade de órgãos estaduais. As competências internas, sobretudo, podem estar de tal modo repartidas pelos órgãos superiores do Estado, que exista entre elas um sistema de contraprtova e equilíbrio (Divisão dos poderes, § 20 I), dentro do qual os poderes isolados não podem ser entendidos como se fossem absolutos, mas meramente como factores que se encontram numa coordenação jurídica e funcional entre eles. E pode suceder num Estado federal que a questão da soberania fique por resolver entre a federação e os federados; que subsista uma dualidade de centros de decisão tal que o conjunto das competências venha a ser exercido em parte pelos Estados federados e noutra parte pelos ógãos do Estado federal (IV).”[2]

 

                                                         Diferentemente, no particular, do federalismo alemão, que também inspirou os constituintes pátrios, em que a ordem federal central edita leis sobre quase todos os temas, mas quem as executa são os estados, no Brasil quem executa as leis advindas da competência legislativa privativa é o próprio ente que a detém, salvo exceções oriundas de convênios etc. Não pode utilizar-se o Município do precedente do art. 30 da Constituição da República, que menciona o 'interesse local', ausente na espécie ora examinada.

 

                                                         Para HELY LOPES MEIRELLES o tema é assim tratado:

“(...) estabelecida essa premissa é que se deve partir em busca dos assuntos da competência municipal, a fim de sclecionar os que são e os que não são de seu interesse local, isto é, aqueles que predominantemente interessam à atividade local. Seria fastidiosa  -- e inútil, por incompleta --  a apresentação de um elenco casuístico de assuntos de interesse local do Município, porque a atividade municipal, embora restrita ao território da Comuna, é multifária nos seus aspectos e variável na sua apresentação, em cada localidade. Acresce, ainda, notar a existência de matérias que se sujeitam simultaneamente à regulamentação pelas três ordens estatais, dada sua repercussão no âmbito federal, estadual e municipal. Exemplos típicos dessa categoria são o trânsito e a saúde pública, sobre os quais dispõem a União (regras gerais),: Código Nacional de Trânsito, Código Nacional de Saúde Pública), os Estados (regulamentação: Regulamento Geral de Trânsito, Código Sanitário Estadual) e o Município (serviços locais: estacionamento, circulação, sinalização etc.; regulamentos sanitários municipais). Isso porque sobre cada faceta do assunto ha um interesse predominante de uma das três entidades governamentais. Quando essa predominância toca ao Município a ele cabe regulamentar a matéria, como assunto de seu interesse local. Dentre os assuntos vedados ao Município, por não se enquadrarem no conceito de interesse local,  é de se assinalar, a título exemplificativo, a atividade jurídica, a segurança nacional, o serviço postal, a energia em geral, a informática, o sistema monetário, a telecomunicação e outros mais, que, por sua própria natureza e fins, transcendem o âmbito local."[3]

 

                                                         Com efeito, poderiam os autores da Constituição do Estado, no exercício do Poder Constituinte Decorrente, repetir, enfadonhamente, as normas de reprodução obrigatória da Constituição da República, mas preferiram, acertadamente diga-se, fórmula sintética do art. 144, determinando, como não poderia deixar de ser, que os princípios estabelecidos na Constituição Federal (somente princípios, não regras) devessem ser observados obrigatoriamente pelos Municípios.  Não foi outra a saída encontrada pelos Constituintes nacionais, por exemplo, com o art. 25 da Constituição da República, a determinar que os Estados se organizem segundo os princípios da Constituição da República, sem explicitá-los, também enfadonhamente.

 

                                                         Veja-se a correspondência do art. 25 da Carta Maior com o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo (“Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”).

 

                                                         Há que se indagar se alguém poderia dizer que, pelo fato de não se ter repetido, um a um, na Constituição da República, os princípios que devem ser observados pelos constituintes dos estados, não seriam estes aplicáveis às Constituições dos Estados-membros. Ora, sabe-se que o princípio federativo, adotado no art. 1.º da Constituição do Estado de São Paulo, é: “...a rigor, um grande sistema de repartição de competências', sendo esta 'a chave da estrutura do poder federal' ou 'a grande questão do federalismo', e ainda 'um problema tipicamente do estado federal'.” (RAUL MACHADO HORTA E DURAND, citados por FERNANDA DIAS MENEZES DE ALMEIDA).

 

                                                         Para KLAUS STERN: La Ley Fundamental, contiene, sin embargo, si no Derecho del Estado de los Länder, si Derecho del Estado para los Länder; por ejemplo, en los arts. 20, 21, 28, 31, 33 y 35 LFB.  El Derecho del Estado Federal es, ademas también, Derecho del Estado Total, es decir, de Ia Federación y de los Länder, que conjuntamente constituyen la República Federal de Alemania. La Constitución de los Estados miembros no está fijada exclusivamente en sus textos constitucionales. Sobre ellas inciden determinaciones de la Constitución Federal. «Ambos elementos conjuntamente forman la Constitución del Land». Esta particularidad se basa en el principio federal. Este entrecruzamiento encuentra su expresión más clara en la Confianza federal.”[4]

 

                                                         A doutrina já resolveu a questão dos princípios que devem os Estados observar (o que obviamente aplica-se aos Municípios, já agora por força do art. 144 da Constituição do Estado).  Ao comentar sobre o conteúdo do art. 25 da Constituição da República, a direcionar as competências dos Estados (como o art. 144 da Constituição do Estado condiciona as competências dos Municípios), MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO refere-se à existência das ‘regras de preordenação institucional’, ‘regras de extensão normativa’ e ‘regras de subordinação normativa’, inseridas na Constituição da República, vinculantes para os demais entes políticos, nestes termos:

(...) Ainda cerceiam a autonomia dos Estados regras de subordinação normativa. São estas as que, presentes na própria Constituição Federal e direcionadas por ela a todos os entes federativos (União, Estados, Municípios), predefinem o conteúdo da legislação que será editada por eles. E isto, ou orientando positivamente tal conteúdo (mandando que siga determinada linha), ou negativamente (proibindo que adote certas normas ou soluções). Exemplo de tais regras de subordinação normativa é o que decorre do art. 37 da Constituição brasileira, que preside à atuação da administração pública direta ou indireta. Da mesma forma, o art. 39 da Constituição direciona diretamente a legislação dos Estados (bem como do Distrito Federal e dos Municípios) quanto aos servidores públicos. Observe-se que esta subordinação normativa pode ser direta ou indireta. Ela é direta (e imediata) quando deflui, sem intermediário, da Constituição Federal e obriga desde logo o legislador. É indireta (e mediata) quando se faz por meio da legislação federal obrigatória para os Estados. Esta "subordinação normativa indireta" ocorre no campo da competência legislativa concorrente da União e dos Estados (bem como do Distrito Federal), que enuncia o art. 24 da Constituição brasileira. Com efeito, este artigo confere à União a competência de "estabelecer normas gerais" (art. 24, § 1.°). Conseqüentemente, a estas normas gerais se subordinam as que os Estados editarem em vista de suas peculiaridades (art. 24, §§ 2.°, 3.° e 4.°).”[5] 

 

                                                         Claro que, apenas por não repetir explicitamente os princípios da Constituição da República, não significa que os Municípios fiquem livres para -- em uma curiosa situação então -- dispor de mais poderes constituintes que o Estado (já que não se discute que, quando a este, seu Poder Constituinte Decorrente é limitado).

 

                                                         Trata-se o artigo 144 da Constituição do Estado de norma de repetição obrigatória, vale dizer:

“...as normas centrais da Constituição Federal, tenham elas natureza de princípios constitucionais, de princípios estabelecidos ou de normas de preordenação, afetam a liberdade criadora do Poder Constituinte Estadual e acentuam o caráter derivado desse poder. Como consequência da subordinação à Constituição Federal, que é a matriz do ordenamento jurídico parcial dos Estados-membros, a atividade do constituinte estadual se exaure, em grande parte, na elaboração de normas de reprodução, mediante as quais faz o transporte da Constituição Federal para a Constituição do Estado das normas centrais, especialmente as situadas no campo das normas de preordenação  A tarefa do constituinte limita-se a inserir aquelas normas no ordenamento constitucional do estado, por um processo de transplantação. A norma de reprodução não é, para os fins da autonomia do Estado-membro, simples norma de imitação, frequentemente encontrada na elaboração constitucional. As normas de imitação exprimem a cópia de técnicas ou de institutos, por influência da sugestão exercida pelo modelo superior. As normas de reprodução decorrem do caráter compulsório da norma constitucional superior, enquanto a norma de imitação traduz a adesão voluntária do constituinte a uma determinada disposição constitucional. (Raul Machado Horta, Poder constituinte do estado-membro, RDP, 88/5).

 

                                                         A repartição de competências é a ‘chave de abóbada’ do sistema federal; conspurcada aquela  conspurca-se  este. É o que ocorre no caso dos autos, com a violação, pelo Município, de princípios constitucionais.

 

                                                         Ademais, malfere a proporcionalidade a lei local atacada.  Entende-se que a proporcionalidade em sentido lato ('Verhältnismäßigkeitprinzip'), implica em um controle em três fases: a) o primeiro é o da idoneidade, pela qual os meios empregados devem ser idôneos a perseguir o fim fixado pela lei; b) o segundo é a necessidade, ou seja, a Administração, entre várias escolhas idôneas a alcançar o fim perseguido, deve escolher o que gera menor sacrifício aos interesses em conflito, o juiz é chamado a verificar o terreno dos fatos; e c) o terceiro, a proporcionalidade em sentido estrito que requer um balanceamento entre os interesses em jogo, ou seja, entre as vantagens de buscar o fim público em relação aos prejuízos causados aos interesses privados.

 

                                                         Através desses padrões ou técnicas como a proibição de excesso (=proporcionalidade), é possível constranger a Administração (e, de um modo geral, os poderes públicos) a um plano menos indevassável. No que concerne ao requisito da idoneidade e proporcionalidade em sentido estrito, a legislação municipal não subsiste.

 

                                                         Diante do exposto, manifesto-me pela procedência desta ação.

São Paulo, 19 de abril de 2008.

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA,

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça



[1] Apud BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, São Paulo, 1990, 3.º vol. Tomo I, p. 107).

[2] ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do estado. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian. Trad. da 3ª ed. de António Cabral de Moncada, 1971, pág. 61.

[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.  p. 135,  Malheiros, pág. 135.

[4] STERN, Klaus. Derecho Del Estado de la Republica Federal Alemana. Madrid: CEC, 1987, pág. 120.

[5] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988.  São Paulo: Saraiva, 1997, v. I, pág. 197.