Ação Direta de Inconstitucionalidade

Autos n. 155.414.0/6-00

Autor: Prefeito Municipal de Ribeirão Preto

Objeto de impugnação: Dispositivos da Lei Complementar Municipal n. 2.157/2007, do Município de Ribeirão Preto.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Colendo Órgão Especial

 

O Prefeito Municipal de Ribeirão Preto propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar Municipal n. 2.157, de 08 de janeiro de 2007, na qual questiona a validade jurídico-constitucional do § 3º do art. 10, do § 2º do inciso VII do art. 12, do § 3º do art. 48, do parágrafo único do art. 58 e do art. 162, todos da citada lei.

Os mencionados dispositivos legais, segundo a inicial, são decorrentes de emendas do Poder Legislativo e, por isso, afrontam a Constituição do Estado de São Paulo.

O fundamento jurídico da ação é o fato de que há usurpação, por parte do Poder Legislativo municipal, de atribuições e atividades próprias do Poder Executivo e dos demais órgãos da Administração Indireta.

Em síntese, aduz a inicial que:

a)    o § 3º do art. 10 e o § 2º do inciso VII do art. 12 determinam como deverá ser o uso do solo em avenidas principais, de forma que são inconstitucionais por dispor de forma concreta sobre atividade de planejamento do Poder Executivo;

b)    o § 3º do art. 48 fixa o prazo máximo de 30 (trinta) dias para a administração municipal apreciar os processos de parcelamento, o que significa ingerência da Câmara Municipal no funcionamento dos serviços públicos prestados pelos órgãos do Poder Executivo;

c)    o parágrafo único do art. 58, por afetar o orçamento municipal, representando renúncia de receita, é de iniciativa reservada do Poder Executivo;

d)    o parágrafo único do art. 162 disciplina matéria relativa à outorga de concessões para lavras e extração mineral, de tal forma que sobrepõe-se à legislação federal que é de competência da União (art. 22, XII da CF). A inconstitucionalidade, assim, decorre da afronta ao art. 144 da Constituição Estadual, que exige da legislação municipal o atendimento aos princípios estabelecidos na Constituição Federal.

Ao despachar a inicial (fls. 24), sua Excelência, o Desembargador Relator, Dr. Munhoz Soares, deferiu o pedido de suspensão liminar (fls. 55/56).

 

Notificada, a Câmara Municipal prestou informações (fls. 132 e s.) e sustentou a constitucionalidade da lei.

A Associação Amigos do Jardim Canadá (ASAC) solicitou seu ingresso no feito na qualidade de amicus curiae (fls. 70/81).

O Procurador-Geral do Estado, por sua vez, defendeu a exegese segundo a qual a sua intervenção nos feitos desta natureza não é obrigatória, mas sim condicionada à verificação prévia da existência de interesse estadual na preservação da norma impugnada (fls. 65/67).

É o breve relato.

O pedido de declaração de inconstitucionalidade é integralmente procedente.

No Brasil, como se sabe, o governo municipal tem suas funções divididas, sendo que as administrativas foram conferidas ao Prefeito, enquanto que as funções legislativas são de competência da Câmara. Administrar significa aplicar a lei ao caso concreto. Assim, no exercício de suas funções, o Prefeito é obrigado a observar as normas gerais e abstratas editadas pela Câmara, em atenção ao princípio da legalidade, a que está pautada toda atuação administrativa, na forma do art. 111, da Carta Paulista.

Esse mecanismo de repartição de funções, incorporado ao nosso ordenamento constitucional, impede a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

Daí por que é vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira. 

Tamanho significado apresenta esse sistema de separação das funções estatais, em nosso ordenamento jurídico, que a própria Constituição, no seu art. 60, § 4.º, inciso III, cuidou de incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a aboli-lo. 

Considerada essa premissa, podemos concluir pela inconstitucionalidade.

a) O § 3º do art. 10 e o § 2º do inciso VII do art. 12, que derivam de emendas parlamentares ao projeto do executivo, determinam como deverá ser o uso do solo em avenidas principais.

Sendo assim, não reúnem condições para subsistir na ordem jurídica vigente, uma vez que, a pretexto de disciplinar assunto de interesse local, a Câmara Municipal de Ribeirão Preto acabou por interferir na esfera de competência exclusiva da Administração, acarretando, tal iniciativa, o desequilíbrio no delicado sistema de relacionamento entre os poderes municipais.

O art. 181, da Constituição Estadual determina que “Lei municipal estabelecerá, em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes”.

A câmara municipal, no caso em tela, acabou por promover o ordenamento territorial e, portanto, infringir a Constituição de São Paulo.

Quanto à exigência de planejamento relativo ao ordenamento e ocupação do solo, decidiu essa Egrégia Corte, em magnífico Acórdão da lavra do Des. Dante Busana, que apesar de já ter sido citado e transcrito pelos nobres subscritores da inicial, mister reapresentá-lo neste momento, vez que à ele quase nada pode ser acrescido sobre o tema:

A Constituição do Estado, com efeito, em consonância com a Carta Magna, contempla a obrigatoriedade do planejamento em matéria urbanística, que hoje se apresenta institucionalizada, através de expressa previsão constitucional. É nesse sentido a lição de José Afonso de Silva, realçando que, atualmente, “o processo de planejamento passou a ser um mecanismo por meio do qual o administrador deverá executar sua atividade governamental, na busca da realização das mudanças necessárias à consecução do desenvolvimento econômico-social”. E mais adiante, conclui o renomado autor: “O planejamento, assim, não é mais um processo dependente da mera vontade dos governantes. É uma previsão constitucional e uma provisão legal. Tornou-se imposição jurídica, mediante a obrigação de elaborar planos, que são os instrumentos consubstanciados do respectivo processo” (ob. cit., pág. 86). Nesse assunto, a Constituição Federal, em diversas passagens, alude ao dever de planejar, em geral e em matéria urbanística especialmente, ao se referir à competência para elaborar planos de ordenação do território (artigo 21, inciso IX), plano de desenvolvimento equilibrado da atividade econômica (artigo 174, § 1º) e os planos definidores da política de desenvolvimento urbano (artigo 182). Interessa sobremodo, em Direito Urbanístico, a letra do artigo 30, inciso VIII, da Lei Maior, segundo a qual compete aos Municípios “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”. A Constituição do Estado também contém expressa previsão dessa obrigatoriedade, ao se referir, já no caput de seu artigo 180, ao “estabelecimento de diretrizes” relativas ao desenvolvimento urbano pelo Estado e Municípios. No inciso II desse mesmo artigo, agora de maneira enfática, exige “a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, planos, programas e projetos” concernentes ao desenvolvimento urbano. (...) Daí, por sinal, a pertinente observação de José Afonso da Silva, baseada na experiência alemã relatada por Joseff Wolff, no sentido de que o planejamento é “o princípio de toda atividade urbanística, pois quem impulsiona e exerce essa ação de ordenação precisa ter consciência do que quer alcançar com tal influxo. Deve ter uma idéia clara do que seja desejável para o lugar ou território em questão, mas também do que razoavelmente pode lograr com os meios de que dispõe” (ob. cit., pág. 32) (ADIn 66.667-0/6, Rel. Des. Dante Busana, j. em 12 de setembro de 2001).

Reportando-se à noção de planejamento, Hely Lopes Meirelles conclui “que a elaboração de Plano Diretor é tarefa de especialistas nos diversos setores de sua abrangência, devendo por isso mesmo ser confiada a órgão técnico da Prefeitura ou contratada com profissionais de notória especialização na matéria, sempre sob supervisão do Prefeito” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, RT, 1985, p. 397). Por este mesmo motivo, José Afonso da Silva sustenta que a elaboração do Plano Diretor é da competência do Executivo Municipal, por intermédio dos órgãos de planejamento da Prefeitura, e que a iniciativa da lei respectiva é do Prefeito, sob cuja orientação se prepara o plano (Direito Urbanístico Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 1997, pp. 138-140).  As mesmas exigências devem ser observadas nas leis modificadoras de planos diretores, ou de qualquer ingerência ou modificações das vocações estabelecidas no próprio Plano Diretor ou nos decretos que aprovam os projetos de loteamentos e demais espécies de parcelamento e ocupação do solo urbano.

Essa Egrégia Corte já decidiu que se a Constituição Estadual impôs “o estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano” (artigo 180, caput), a elaboração de “planos, programas e projetos” em matéria urbanística (artigo 180, inciso II), bem como a subordinação da legislação municipal respectiva às diretrizes do plano diretor (...), como conseqüência a de que só ao Poder Executivo cabe a iniciativa do processo legislativo, sempre que a matéria reservada à lei seja de tal natureza que reclame a feitura de planos prévios (ADIn 66.667-0/6, Rel. Des. Dante Busana, j. em 12 de setembro de 2001).

Assim, embora seja inegável a competência das Câmaras Municipais para legislar sobre os assuntos de interesse local, está tem limites que devem necessariamente ser observados, e que decorrem da imperiosidade de preservar-se a convivência pacífica dos poderes políticos, entre os quais não existe nenhuma relação de hierarquia e subordinação, mas sim de independência e harmonia, em face do contido no art. 5.º, da Constituição do Estado de São Paulo.

A administração municipal está afeta ao Prefeito eleito. É ele quem define as prioridades e as políticas públicas a serem implementadas, bem assim os serviços públicos que serão prestados à população, tudo sob a perspectiva e motivação do atendimento do interessa público. Nessa seara, a Câmara não tem como impor suas preferências, podendo quando muito formular indicações, mas não sujeitar aquela autoridade ao cumprimento de lei que, longe de fixar uma regra geral e abstrata, constitui verdadeira ordem ou comando, para que se faça algo.

Nesse aspecto, portanto, é procedente o pedido declaratório de inconstitucionalidade.

b) O § 3º do art. 48, que fixa o prazo máximo de 30 (trinta) dias para a administração municipal apreciar os processos de parcelamento também é flagrantemente inconstitucional.

É evidente a ingerência da Câmara Municipal no funcionamento dos serviços públicos prestados pelos órgãos do Poder Executivo.

A iniciativa não pode ser considerada válida, pois é incompatível com o sistema adotado pela Constituição em vigor, o qual se baseia na independência e harmonia entre os poderes, cuja observância é vital para a preservação do Estado de Direito.

Na ordem constitucional vigente não existe a mínima possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara de Vereadores, estabelecendo prazos para o funcionamento dos serviços prestados pela administração pública.

c) O parágrafo único do art. 58, ao dispensar o empreendedor do pagamento de qualquer taxa e contribuição de melhoria municipais, afeta o orçamento municipal, representando renúncia fiscal.

Tal determinação compromete a receita do Município. Trata-se evidentemente de matéria referente à administração pública municipal, cuja gestão é de competência exclusiva do Prefeito, que atuará nesse campo com absoluta independência.

Ao conceder a isenção de taxas e de contribuições de melhoria a  determinada categoria de contribuintes, o legislador municipal interferiu diretamente na gestão administrativa da cidade, retirando do Executivo parte da possibilidade de planejamento, direção, organização e execução.

Nesse sentido, considerada a iniciativa parlamentar que culminou na edição do ato normativo em epígrafe, é visível que o legislador municipal invadiu a esfera de atribuições do Chefe do Poder Executivo.

Ao Legislativo cabe a função de editar atos normativos de caráter geral e abstrato. Ao Executivo cabe o exercício da função de gestão administrativa, que envolve atos de planejamento, direção, organização e execução.

Atos que, na prática, representam invasão da esfera executiva pelo legislador, devem ser invalidados em sede de controle concentrado de normas, na medida em que representam quebra do equilíbrio assentado nos art. 5º, art. 37 e art. 47, incisos II e XIV, todos da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por força do art.144 da referida Carta.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

d) O parágrafo único do art. 162 da lei municipal, que disciplina matéria relativa à outorga de concessões para lavras e extração mineral, de fato se sobrepõe à legislação federal que é de competência da União (art. 22, XII da CF).

A inconstitucionalidade, nesse caso, decorre da afronta ao art. 144 da Constituição Estadual, que exige da legislação municipal o atendimento aos princípios estabelecidos na Constituição Federal.

Estabelece o art. 144 da Constituição Estadual que: Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Assim, a lei municipal, ao legislar sobre matéria de competência da União, afrontou os princípios estabelecidos nas constituições Estadual e Federal.

Posto isso, aguarda-se seja julgada totalmente procedente a presente ação direta, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade dos seguintes dispositivos da Lei Complementar Municipal n. 2.157, de 08 de janeiro de 2007: § 3º do art. 10; § 2º do inciso VII do art. 12; § 3º do art. 4; parágrafo único do art. 58; art. 162.

São Paulo, 10 de abril de 2008.

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

Procurador de Justiça no exercício de função

delegada pelo Procurador-Geral de Justiça