AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Processo n
º 155.415-0/0-00
Requerente:
Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Ilhabela
Objeto:
Inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 502, de 09 de agosto de 2007, do
Município de Ilhabela e de seu anexo.
Colendo
Órgão Especial
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta
pelo Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Ilhabela tendo como alvo a
Lei Municipal n. 502, de 09 de agosto de 2007 e de seu anexo, “ que extingue a secretaria de Governo,
reestrutura as Secretarias, cria e reclassifica cargos de provimento em
comissão e dá outras providências”.
O pedido de medida liminar foi indeferido às fls. 49/51.
Citado o Senhor Procurador-Geral do
Estado, declinou da defesa dos atos normativos impugnados (fls.68/70).
A Presidência da Câmara Municipal prestou
informações (fls.72/75), argüindo em preliminar a ilegitimidade de parte do
autor. No mérito, defendeu a constitucionalidade da Lei e do anexo impugnados.
O Prefeito do Município da Estância Balneária de Ilhabela,
suscitou em sede de preliminar, a ilegitimidade de parte do autor, a ausência
de pressupostos de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo
e inépcia da inicial. No mérito, igualmente, defendeu a constitucionalidade da
cita lei municipal e de seu anexo, fls. 117/125.
Este é o breve relato do que consta dos autos.
A legitimidade do autor para a
propositura da presente ação direta, ao menos em tese, advém do art.90 V da
Constituição do Estado de São Paulo, que prevê a iniciativa de “entidades sindicais ou de classe, de atuação
estadual ou municipal, demonstrando seu interesse jurídico no caso”.
A
legitimação deve decorrer, portanto, do preenchimento de dois requisitos: (a) a
qualificação como entidade sindical ou de classe; (b) o interesse jurídico, ou
seja, a pertinência temática.
No entanto, a requerente, não juntou
cópia do seu estatuto social, quando da propositura da presente ação.
Por
tal razão, a presente ação deve ser extinta sem julgamento do mérito, por falta
de pressuposto processual válido relativo à representação.
Por
outro, lado a inicial, apesar de confusa não é inepta.
No
mérito, a procedência da ação é de rigor.
Em que pese a argumentação expendida pelo Prefeito
Municipal e pela Presidência da Câmara
Municipal de Ilhabela, procurando demonstrar que os cargos foram criados por
que efetivamente necessários,
tal raciocínio não afasta a necessidade
de reconhecimento da inconstitucionalidade dos atos normativos indicados na inicial da presente
ação direta.
A necessidade ou não de integrar mais
servidores ao quadro administrativo municipal não se põe em debate, mas sim o
modo escolhido pelo legislador para realizar o provimento dos cargos.
Não foram refutadas, deste modo, as alegações trazidas
inicialmente pelo autor demonstraram, em síntese, que o número de cargos glosados nesta ação ( 09 de
Assessor Jurídico, 02 Assistente Técnico de Comunicação, 09 de Assistente de
Secretaria I, 18 de Assistente de Secretaria II, 07 de Assistente de Secretaria
III, 03 de Encarregado de Serviços I, 02 de Encarregados de Serviços II e 01 de
Supervisor de Equipe) não preenchem os pressupostos contidos nos permissivos
constitucionais para fins de provimento sem realização de concurso público.
Realmente
houve afronta aos artigos 111 e
115, II e V e 144, da Constituição do Estado de São Paulo. De fato,
assim dispõem as referidas normas
constitucionais:
'Art.
111 - A administração pública
direta, indireta ou funcional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade,
finalidade, motivação, interesse público e eficiência.
Art.
115 - Para a organização da administração pública direta e indireta, inclusive
as fundações instituídas ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é
obrigatório o cumprimento das seguintes normas:
II - a investidura em
cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de
provas ou de provas e títulos, ressalvadas
as nomeações para cargo em comissão, declarado em lei, de livre nomeação e
exoneração (...)
V
– As funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes
de cargo efetivo, e os cargos em
comissão, a serem preenchidos por servidores de
carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às
atribuições de direção, chefia e
assessoramento (...)’
Art. 144 - Os Municípios, com
autonomia política, legislativa, administrativa e financeira
se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na
Constituição Federal e nesta Constituição.”
A Constituição em vigor consagrou o Município como entidade federativa indispensável ao nosso sistema federativo,
integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise
dos arts. 1.º, 18, 29, 30 e 34, VI, “c” da CF (Cf. Alexandre de Moraes, in
“Direito Constitucional”, Atlas, 7.ª ed., p. 261).
Essa autonomia consagrada
aos Municípios não tem caráter absoluto e soberano, muito pelo contrário,
encontra limites nos princípios emanados dos poderes públicos e dos pactos
fundamentais, que instituíram a soberania de um povo (Cf. De Plácido e Silva,
“Vocabulário Jurídico”, Forense, Rio de Janeiro, Volume I, 1984, p. 251), sendo
definida por José Afonso da Silva como “a capacidade ou poder de gerir os
próprios negócios, dentro de um círculo prefixado por entidade superior”, que no
caso é a Constituição (Cf. “Curso de Direito Constitucional Positivo”,
Malheiros Editores, São Paulo, 8.ª ed., 1992, p. 545).
A autonomia
municipal se assenta em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria,
(b) autogoverno, pela eletividade do
Prefeito e dos Vereadores as respectivas Câmaras Municipais, (c) autolegislação, mediante competência
de elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua
competência exclusiva e suplementar, (d)
auto-administração ou administração própria, para manter e prestar os serviços
de interesse local (Cf. José Afonso da Silva, ob. cit., p. 546).
Nessas quatro capacidades, encontram-se caracterizadas
a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a
autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua
competência), a autonomia administrativa
(administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira
(capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas, que é
uma característica da auto-administração) (ob. e loc. cits).
Assim, por força da autonomia
administrativa de que foram dotadas, as entidades municipais são livres para
organizar os seus próprios serviços, segundo suas conveniências locais. E, na
organização desses serviços públicos, a Administração cria cargos e funções, institui classes e carreiras, faz
provimentos e lotações, estabelece vencimentos e vantagens e delimita os
deveres e direitos de seus servidores (Cf. Hely Lopes Meirelles, in “Direito
Municipal Brasileiro”, Malheiros Editores, São Paulo, 1996, 8.ª edição, p.
420).
Contudo, a liberdade conferida aos
Municípios para organizar os seus próprios serviços não é
ampla e ilimitada; ela se subordina às seguintes regras fundamentais e
impostergáveis: (a) a que exige que
essa organização se faça por lei; (b)
a que prevê a competência exclusiva da entidade ou Poder interessado; e (c) a
que impõe a observância das normas constitucionais federais pertinentes ao
servidor público (ob. e loc. cits.)
Feitas essas
observações iniciais, verifica-se a Municipalidade de Ilhabela ampliou o número
de vagas dos cargos em comissão já existentes, ou seja, foram criados 09 cargos de provimento em comissão de Assessor Jurídico, 02
Assistente Técnico de Comunicação, 09 de Assistente de Secretaria I, 18 de
Assistente de Secretaria II, 07 de Assistente de Secretaria III, 03 de
Encarregado de Serviços I, 02 de Encarregados de Serviços II e 01 de Supervisor
de Equipe), para o exercício de funções estritamente técnicas ou profissionais, próprias
dos cargos de provimento efetivo.
São funções que denotam a natureza profissional do vínculo entre seus agentes e
a Administração Pública e que, por essa razão, só poderiam ser preenchidas por
concurso público.
Segundo RUY CIRNE LIMA (“Princípios de Direito Administrativo, RT, 6.ª ed.,
p. 162), o funcionário público profissional se peculiariza por quatro
característicos básicos, a saber: (a) natureza técnica ou prática do serviço
prestado; (b) retribuição de cunho profissional; (c) vinculação jurídica à
Administração Direta; (d) caráter permanente dessa vinculação.
Desse modo,
nitidamente diferenciado dos cargos que reclamam provimento em comissão, as
funções profissionais devem ser exercidas em caráter permanente, ou seja, pelo
quadro estável de servidores públicos municipais, os quais, em conformidade com
o disposto no art. 115, inciso II, da Constituição do Estado de São Paulo, só
podem ser arregimentados por concurso público de provas ou de provas e títulos.
Na verdade, o
cargo em comissão destina-se apenas às atribuições de “direção, chefia e
assessoramento” (CF., art. 37, inciso V, com a redação dada pela EC n.º 19/98)
e tem por finalidade propiciar ao governante o controle das diretrizes
políticas traçadas. Exige, portanto, das pessoas indicadas a titularizá-los,
absoluta fidelidade à orientação fixada pela autoridade nomeante. Em outras
palavras, o cargo de provimento em comissão está diretamente ligado ao dever de
lealdade à linha fixada pelo agente político superior.
Daí por que a
exceção contida na parte final do inciso II, do artigo 115, da Constituição do
Estado de São Paulo - “ressalvadas as
nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e
exoneração” -, que, no ponto, reproduz a dicção do artigo 37, inciso II, da
Constituição da República, tem alcance limitado à situações excepcionais,
relativas aos cargos cuja natureza especial justifique a dispensa de concurso
público.
Torna-se
evidente, portanto, que a limitação apontada não tem caráter puramente formal,
de simples e incriteriosa indicação legal de cargos de provimento em comissão,
que pudesse afastar o princípio constitucional da igual acessibilidade aos cargos públicos.
Bem a propósito, ao estudar com profundidade esse
assunto, o jurista MARCIO CAMMAROSANO
deixou anotado que o princípio democrático implica no princípio da igualdade “e este no princípio da igual acessibilidade
dos cargos públicos, com o que se resguarda também o princípio da probidade
administrativa” (Cf. “Provimento
de Cargos Públicos no Direito Brasileiro”, Revista dos Tribunais, São Paulo,
1.ª ed., p. 45).
Assim,
para que a lei criadora de um cargo em comissão não venha a se constituir em
burla ao princípio constitucional arrolado, enunciado expressamente pelo artigo
37, incisos I e II, da Constituição da República, deverá observar criteriosamente
a natureza das funções a serem desempenhadas, pois, no dizer de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO (O
Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, Editora Revista dos Tribunais, 1.ª
edição, pág. 49), “impende que exista
uma adequação racional entre o tratamento diferençado construído e a razão
diferencial que lhe serviu de supedâneo”.
Afinado a
esse mesmo entendimento, HELY LOPES
MEIRELLES (“Direito Administrativo Brasileiro”, Malheiros, 18.ª ed., p.
378) adverte sobre pronunciamento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que
“a criação de cargo em comissão em
moldes artificiais e não condizentes com as praxes de nosso ordenamento
jurídico e administrativo, só pode ser encarada como inaceitável esvaziamento
da exigência constitucional de concurso”.
E, da
mesma forma, já decidiu o Pretório Excelso que “a exigência constitucional do
concurso público não pode ser contornada pela criação arbitrária de cargos em
comissão para o exercício de funções que não pressuponham o vínculo de
confiança que explica o regime de livre nomeação e exoneração que os
caracteriza.” (STF, RTJ 156/793)
Nesse
contexto, não existe qualquer necessidade do estabelecimento de vínculo de
confiança para o exercício dos cargos criados, cujas funções estão declinadas
às fls.132/133.
Na esteira desse raciocínio, é inescusável que a parte
final do inciso II do art. 115 da Constituição do Estado de São Paulo, tem
alcance circunscrito a situações em que o requisito da confiança seja predicado
indispensável ao exercício do cargo. De fato, como se trata de uma exceção à
regra do concurso público, a criação de cargos em comissão pressupõe o
atendimento do interesse público e só se justifica para o exercício de funções
de “direção, chefia e assessoramento”, em que seja necessário o estabelecimento
de vínculo de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado. Fora
desses parâmetros, é inconstitucional qualquer tentativa de criação de cargos
dessa natureza.
Os cargos, cuja validade jurídico-constitucional ora
se examina, não se apresentam como cargos ou funções de administração superior,
ou mesmo de “direção, chefia e assessoramento”, que exija relação de confiança
ou especial fidelidade às diretrizes traçadas pela autoridade nomeante, mas sim
de cargo comum, de natureza profissional, que deve ser assumido em caráter
permanente por servidores aprovados em concurso.
Bem a propósito, ao examinar iniciativa semelhante, o
Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça (ADIn. n.º 11.939-0, relator
Des. OLIVEIRA COSTA) entendeu por bem declarar a inconstitucionalidade material
de expressões de lei criadora de cargos em comissão, cuja natureza não
correspondia às características próprias dessas funções.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a
ADI n. 3706/MS[1],
e apreciar caso semelhante, declarou a inconstitucionalidade de Lei Estadual
que criou cargo em comissão que tem atribuição meramente técnica:
“AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. LEI ESTADUAL QUE CRIA CARGOS
Conclui-se, portanto,
que a lei municipal impugnada no ponto em que criou os referidos cargos de
provimento em comissão em questão, que não dependem para o seu exercício do
estabelecimento de qualquer vínculo de confiança com a autoridade nomeante, é
verticalmente incompatível com os arts. 111 e 115, incisos II e V, da Constituição do Estado de São Paulo, cuja
observância é obrigatória pelos Municípios, por força do art. 144 dessa mesma
Carta, impondo-se, por conseguinte, a sua exclusão da ordem constitucional em
vigor.
Diante do exposto, a extinção do processo sem julgamento do
mérito, com fundamento no art. 267, V, do Código de Processo Civil, ou caso não
seja esse o entendimento de Vossas Excelências, aguarda-se a procedência da presente ação direta, declarando-se
a inconstitucionalidade dos diplomas legislativos impugnados na inicial.
São Paulo, 26 de maio de 2008.
MAURÍCIO
AUGUSTO GOMES
PROCURADOR
DE JUSTIÇA
no
exercício de função delegada
pelo
Procurador-Geral de Justiça