Ação Direta de Inconstitucionalidade
Autos n. 156.571.0/9-00
Autor: Prefeito Municipal de Ubatuba
Objeto de impugnação: Lei n. 3.000, de 26 de outubro de 2007, do Município
de Ubatuba
Excelentíssimo Senhor
Desembargador Relator
Colendo Órgão Especial
O Prefeito Municipal de Ubatuba ajuizou a presente ação pleiteando a
declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 3000, de 26 de outubro
de 2007, que concede isenção de IPTU e Taxas a todo aposentado e pensionista
que reside em seu próprio imóvel cadastrado nomMunicípio. O texto normativo, na
integra, está reproduzido a fls. 17/18.
A causa de pedir consiste na iniciativa privativa do Poder Executivo
para iniciar o processo legislativo em se tratando de leis benéficas de
natureza tributária (fls. 06).
Farta jurisprudência desse Órgão Especial está reproduzida a fls.
06/08.
A liminar foi deferida pelo Nobre Desembargador Relator, Dr. Luiz
Carlos Ribeiro dos Santos, conforme se vê da R. Decisão de fls. 20/22.
Citado, o Procurador-Geral do Estado, a fls. 31/33, alegou falta de
interesse na defesa do ato impugnado, sob o argumento de que se trata de
matéria exclusivamente local.
É o breve relatório.
A presente ação direta deve ser julgada procedente, apesar do enorme respeito que merece a
orientação do Supremo Tribunal Federal que, reiteradamente, tem decidido pela inexistência
de reserva de iniciativa em se tratando de lei tributária que dispõe sobre
isenção, conforme se depreende do seguinte julgado:
"A Constituição de 1988 admite a
iniciativa parlamentar na instauração do processo legislativo em tema de
direito tributário. A iniciativa reservada, por constituir matéria de
direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na
medida em que, por implicar limitação ao poder de instauração do processo
legislativo, deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e
inequívoca. O ato de legislar sobre direito tributário, ainda que para conceder
benefícios jurídicos de ordem fiscal, não se equipara, especialmente para os
fins de instauração do respectivo processo legislativo, ao ato de legislar
sobre o orçamento do Estado." (ADI 724-MC, Rel. Min. CELSO DE MELLO, julgamento em 7-5-92, DJ
de 27-4-01)
Ocorre que a inconstitucionalidade, no nosso sentir, não se fundamenta
na reserva de iniciativa, conforme será demonstrado.
Vale registrar, de início, que nada impede que esse Órgão Especial
julgue procedente a presente ação por causa de pedir diversa da exposta na
inicial.
Como menciona Alfredo Buzaid[1],
ao sintetizar os princípios ligados ao controle de constitucionalidade, “o
tribunal não se pronunciará sobre a constitucionalidade de uma lei, salvo em
litígio regularmente submetido ao seu conhecimento”.
Todavia, como consignou a eminente Ministra Ellen Gracie, ao relatar a ADI
n. 2.396/MS[2], é possível ao “Supremo
Tribunal, pelos fatos narrados na inicial, verificar a ocorrência de agressão a
outros dispositivos constitucionais que não os indicados na inicial”.
Aliás, no julgamento da ADI-MC n. 2396/MS[3], o
Pleno do Supremo, em acórdão também relatado pela Ministra Ellen Gracie, foi
mais incisivo: “O Tribunal não está adstrito aos fundamentos invocados pelo
autor, podendo declarar a inconstitucionalidade por fundamentos diversos dos
expendidos na inicial”.
Portanto, pode-se proceder à verificação da ocorrência de contraste
inadmissível entre a lei em exame e a Lei Maior paulista, sob outros aspectos. Vejamos.
1) A violação do princípio da separação de
poderes
As normas que tratam da reserva de iniciativa, longe de normas de
direito estrito, ou de exceção, refletem com sutileza as nuances e a evolução
do principio da separação de poderes. As regras de fixação de competência para
a iniciativa do processo legislativo têm como corolário o princípio da
separação dos poderes, que nada mais é do que o mecanismo jurídico que serve à
organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando
as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos[4].
Assim, um parlamentar tanto tem a iniciativa de projetos como pode
propor a alteração nos projetos vindos do Executivo. Entretanto, ao insinuar-se
na questão tributária - vital para a manutenção dos serviços públicos - a
Câmara deve atentar a que
eventuais alterações devam
estar em conformidade com o
plano plurianual, a lei de diretrizes
orçamentárias e a proposta
orçamentária, leis essas de iniciativa exclusiva do Executivo, sendo
que, especialmente a segunda 'disporá sobre as alterações na legislação tributária'.
É evidente, portanto, que a concessão de benefícios a determinada
categoria de pessoas acaba por interferir na administração municipal, reduzindo
receitas, o que pode comprometer a atuação do Chefe do Poder Executivo.
Há sério risco em legitimar esse comportamento do legislador municipal,
pois seria uma perigosa forma de permitir sua interferência nas finanças
públicas e, indiretamente, na atuação do Poder Executivo.
Importante lembrar da lição de Alfredo Buzaid[5]:
“O antagonismo que pode surgir entre as leis se afere não tanto pela hierarquia
quanto pela usurpação ou abuso de poder”.
2) A inconstitucionalidade de leis
autorizativas fora dos casos previstos na Constituição
Reiteram as Câmaras Municipais a produção das chamadas leis
autorizativas. Sobre leis autorizativas, curioso notar que quem poderia
solicitar autorização, ou seja, o Executivo, não a solicitou. Oportunas as
observações de Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes
leis autorizativas: “Insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’
autorizativa constitui um expediente,
usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de
obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em
geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de
autores do projeto de lei, a co-autores
da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras
e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da
iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente
exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa,
praticada cada vez mais
exageradamente autorizativa é a
‘lei’ que - por não poder determinar -
limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão
autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional
desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão:
‘Fica o Poder Executivo autorizado a ...’ O objeto da autorização - por já ser de competência constitucional do
Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo
Legislativo. Tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois
jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde
já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente”[6].
3) Da inconstitucionalidade por falta de
prévio planejamento para as benesses tributárias
A Lei Municipal n. 3000/2007, ora examinada, resultou de processo
legislativo iniciado por vereador (fls. 13), sem que fosse apresentado qualquer
estudo tributário específico. Aliás, sem qualquer tipo de planejamento
orçamentário.
A atuação do legislador municipal, por isso, pode interferir
diretamente na administração municipal, o que não pode ser aceito.
4) Da violação ao princípio da isonomia
Esse nos parece o principal vício da Lei Municipal contrastada à
Constituição Estadual no presente processo objetivo.
É necessário que o Poder Judiciário esteja atento aos benefícios
veiculados por leis, uma vez que a ordem econômica e tributária é calcada no princípio
da igualdade (artigo 150, II, da CF/88).
Por isso, é forçoso concluir que o estabelecimento de privilégios numa
sociedade marcada pelo comprometimento das contas públicas acaba por instituir
situação injustificadamente excepcional.
Disposições que veiculam isenções, pelo seu caráter excepcional, exigem
maior rigor do intérprete, como se extrai da lição de Carlos Maximiliano[7]: “O
rigor é maior em se tratando de disposição excepcional, de isenções ou
abrandamentos de ônus em proveito de indivíduos ou corporações. Não se presume
o intuito de abrir mão de direitos inerentes à autoridade suprema. A outorga
deve ser feita em termos claros, irretorquíveis; ficar provada até à evidência,
e se não estender além das hipóteses figuradas no texto; jamais será inferida
de fatos (...). Os privilégios financeiros do erário não se estendem a pessoas,
nem a casos não contemplados no texto, mas também se não interpretam de modo
que resultem diminuídas as garantias que o legislador pretendeu estabelecer em
favor do fisco”.
O princípio da isonomia também é voltado ao legislador, na clássica
lição de Celso Antônio Bandeira de Mello[8]:
“O preceito magno da igualdade como já tem sido assinalado, é norma voltada
quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. Deveras, não só
perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas, a própria edição dela
assujeita-se ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas”.
Francisco Campos[9]
arremata: “Não poderá subsistir qualquer dúvida quanto ao destinatário da
cláusula constitucional da igualdade perante a lei. O seu destinatário é,
precisamente o legislador e, em conseqüência, a legislação, por mais
discricionários que possam ser os critérios da política legislativa, encontra
no princípio da igualdade a primeira e mais fundamental de suas limitações”.
Portanto, garantir a igualdade é tarefa fundamental do Poder
Judiciário, não como forma de controle do legislativo. Como assevera Alexander
Hamilton, citado por Luís Roberto Barroso[10],
“onde a vontade do Legislativo, declarada nas leis que edita, situar-se em
oposição à vontade do povo, declarada na Constituição, os juízes devem curvar-se
à última, e não à primeira”.
Sendo assim, como a lei isentiva discutida na presente ação dirige-se
apenas a um setor da sociedade, há flagrante violação ao princípio da isonomia.
Não em função do setor a que se destina, mas por não discriminar, nesse setor,
quais cidadãos deveriam ser beneficiados com a isenção.
Assim sendo, manifesto-me pela procedência
desta ação objetivando a declaração de inconstitucionalidade da Lei n. 3.000,
de 26 de outubro de 2007, do Município de Ubatuba, ato normativo que autoriza o
Poder Executivo a conceder isenção de tributos e taxas municipais.
São Paulo, 17 de abril de 2008.
MAURÍCIO
AUGUSTO GOMES
Procurador
de Justiça no exercício de função
delegada pelo
Procurador-Geral de Justiça
[1] Da ação direta, São Paulo: Saraiva, 1958, p. 22.
[2] Julgamento do Pleno do STF em 08/05/2003. Publicação: DJ de 1/8/2003, p. 100.
[3] Publicação: DJ de 14/12/2001, p. 23.
[4] Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Do Processo Legislativo, São Paulo: Saraiva, p. 111/112.
[5] Da ação direta, São Paulo: Saraiva, 1958, p. 46.
[6] "Leis" Autorizativas, Revista da Instituição Toledo de Ensino, p. 262, agosto a novembro de 2000, Bauru.
[7] Hermenêutica e Aplicação do Direito, 19ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 272.
[8] O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 2ª ed., São Paul: RT, 1984, p. 13.
[9] Direito constitucional, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956, v. 2, p. 30.
[10] Interpretação e aplicação da Constituição, São Paulo: Saraiva, 1996, p.155.