Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo
Órgão Especial
Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 156.572-0/3-00
Requerente:
Prefeito Municipal de Valinhos
Requerida: Câmara
Municipal de Valinhos
Ação
direta de inconstitucionalidade. Lei n. 4.158, do Município de Valinhos, de
iniciativa parlamentar, que autoriza o Poder Executivo a criar o Programa de
Distribuição de Medicamentos de Uso Continuado. Violação ao princípio da
separação de poderes. Iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder
Executivo em matéria administrativa. Invasão da competência do Chefe do Poder
Executivo para disciplina da Administração Pública e descrever suas
atribuições, sem previsão concreta e específica de fonte de custeio. Ofensa aos
arts. 5º, 24, § 2º, 2, 25, 47, II e XIX, a,
e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.
Egrégio Tribunal,
Colendo Órgão
Especial,
Douto Relator:
1. Trata-se de ação direta de
inconstitucionalidade impugnando a Lei n. 4.158, de 20 de agosto de 2007, do
Município de Valinhos, de iniciativa parlamentar, que autoriza o Poder
Executivo a criar o Programa de Distribuição de Medicamentos de Uso Continuado
(fls. 02/18). Concedida liminar (fls. 46/47), a Câmara Municipal prestou
informações (fls. 56/60), manifestando a Procuradoria-Geral do Estado
desinteresse no processo (fls. 70/72).
2. O controle de constitucionalidade de
lei municipal só é admissível em face de seu contraste com dispositivos da
Constituição Estadual ainda que reproduzam preceitos da Constituição Federal,
não servindo a tanto eventual divórcio com prescrições da Lei Orgânica do
Município.
3. Feito esse registro preliminar, a ação
merece ser conhecida à vista de eventual ofensa aos arts. 5º, 24, § 2º, 2, 25,
47, II e XIX, a, e 144, da
Constituição do Estado de São Paulo considerando-se a causa petendi descrita na petição inicial demarcando violação ao
princípio da separação de poderes e à reserva de iniciativa legislativa do
Chefe do Poder Executivo.
4. A lei local, de iniciativa parlamentar,
autoriza o Poder Executivo a criar Programa de Distribuição de Medicamentos de
Uso Continuado, cujo objetivo é o fornecimento de tais produtos aos munícipes
usuários da rede pública municipal de saúde, mediante cadastramento a partir de
prescrição médica. Faculta o ato normativo, ainda, a celebração de convênio com
a União, empresas estatais ou pessoas jurídicas de direito privado para custeio
e operacionalização do programa, prevendo-se, ademais, sua cobertura por conta
de dotações orçamentárias específicas.
5. Quanto a este último aspecto, de
natureza financeira, não basta a lei indicar, genericamente, que as despesas
decorrentes de sua execução correrão por conta de dotações orçamentárias
específicas. Exige-se, a bem da responsabilidade fiscal, o cumprimento efetivo
do art. 25 da Constituição Estadual, aplicável por força de seu art.
6. Sob este ângulo, portanto, já seria
procedente a ação, não elidindo essa conclusão a previsão de mera faculdade no
art. 3º da lei de celebração de convênios.
7. Há mais, todavia. Postulado básico da
organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art.
5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos
Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual, e que assim
dispõe:
“Artigo 5º. São Poderes do Estado,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário”.
8. Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado
de Direito assentado na idéia de que as funções estatais são divididas e
entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia,
vedando interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício
dessas atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois, observa a
doutrina que:
“O princípio da separação dos poderes (ou
divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto,
entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das
respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções
principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com
os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que,
teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles
Teixeira. Curso de Direito Constitucional,
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).
9. Como conseqüência do princípio da separação dos poderes, a
Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal,
comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro.
Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função
administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu
funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes:
“consiste um confiar cada uma das funções
governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes
(...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização
funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma
função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da
especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente
independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José
Afonso da Silva. Comentário contextual à
Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).
10. Também por decorrência do citado princípio da separação de
poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro
para evitar abusos e disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a
participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a
doutrina:
“É a esse arranjo, mediante o qual, pela
distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos
estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam,
já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles
recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um
verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium
of powers).
(...)
A distribuição das funções entre os órgãos
do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa
do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as
exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada
poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a
outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos
termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao
intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras
do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções
correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
11. Assim, se em princípio a competência normativa é do domínio
do Poder Legislativo, certas matérias por tangenciarem assuntos de natureza
eminentemente administrativa e, concomitantemente, direitos de terceiros ou o
próprio exercício dos poderes estatais, são reservadas à iniciativa legislativa
do Poder Executivo.
12. Neste sentido, a Constituição Estadual estabelece que:
“Art.
(...)
§ 2º - Compete,
exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham
sobre:
(...)
2 – criação e extinção das Secretarias de
Estado e órgãos da administração pública, observado o disposto no art. 47, XIX;
(...)
Art. 47 - Compete privativamente
ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II - exercer, com o auxílio dos Secretários
de Estado, a direção superior da administração estadual;
(...)
XIX – dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da
administração estadual, quando não implicar aumento de despesa, nem criação ou
extinção de órgãos públicos”.
13. Esse desenho normativo de status
constitucional – aplicável aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição
Estadual - permite assentar as seguintes conclusões: a) a iniciativa
legislativa não é ampla nem livre, só podendo ser exercida por sujeito a quem a
Constituição entregou uma determinada competência; b) ao Chefe do Poder
Executivo a Constituição prescreve iniciativa legislativa reservada em matérias
inerentes à Administração Pública; c) há matérias administrativas que, todavia,
escapam à dimensão do princípio da legalidade consistente na reserva de lei em
virtude do estabelecimento de reserva de norma do Poder Executivo. A propósito,
frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa legislativa:
“Leis de iniciativa da Câmara ou, mais
propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não
reserva, expressa e privativamente à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas
municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § 1º, e
165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal” (Direito
Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).
14. Ora, o contraste da lei local com esses dispositivos da
Constituição Estadual exibe sua inconstitucionalidade.
15. O Poder Legislativo, mediante lei de iniciativa parlamentar,
usurpou, de um lado, a iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder
Executivo para deflagrar o processo legislativo disciplinando atribuições de
órgão da Administração Pública – com
previsão de funções novas, de sanções e obrigações pecuniárias – violando os
art. 5º e 24, § 2º, 2, da Constituição do Estado (aplicáveis ao Município por
força de seu art. 144), e de outro, por invadir esfera privativa de atribuição
do Chefe do Poder Executivo consistente na disciplina da organização
administrativa por meio de decreto, ferindo os arts. 5º e 47, II e XIX, a, da Constituição Bandeirante
(aplicáveis ao Município por força de seu art. 144).
16. Neste sentido, e tendo em conta que as disposições da
Constituição Paulista reproduzem os arts. 61, § 1º, II, e, e 84, VI, a, da
Constituição Federal, colhe-se da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a
conclusão de inconstitucionalidade em caso similar:
“AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 10.238/94 DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.
INSTITUIÇÃO DO PROGRAMA ESTADUAL DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA, DESTINADO AOS
MUNICÍPIOS. CRIAÇÃO DE UM CONSELHO PARA ADMIUNISTRAR O PROGRAMA. LEI DE
INICIATIVA PARLAMENTAR. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 61, § 1º, INCISO II, ALÍNEA ‘E’, DA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Vício de iniciativa, vez que o projeto de lei foi
apresentado por um parlamentar, embora trate de matéria típica de
Administração. 2. O texto normativo criou novo órgão na Administração Pública
estadual, o Conselho de Administração, composto, entre outros, por dois
Secretários de Estado, além de acarretar ônus para o Estado-membro. Afronta ao
disposto no artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘e’ da Constituição do Brasil.
3. O texto normativo, ao cercear a iniciativa para a elaboração da lei
orçamentária, colide com o disposto no artigo 165, inciso III, da Constituição
de 1988.
17. É bem verdade que a lei local contém
mera autorização. Mas, isso não elide as conclusões acima esboçadas na medida
em que normatiza a organização administrativa, cuja conveniência e oportunidade
são reservadas exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo, de modo a
notabilizar-se a quebra da separação de poderes.
18. Opino pela procedência da ação para
declaração integral da inconstitucionalidade da lei local impugnada.
São
Paulo, 12 de junho de 2008.
MAURÍCIO AUGUSTO
GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA
no exercício de
função delegada
pelo
Procurador-Geral de Justiça