AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

Processo nº 156.604-0/0-00

Autor: Prefeito Municipal de Pitangueiras

Objeto: art.15 do Ato das Disposições Transitórias da Lei Orgânica do Município de Pitangueiras (red. Emenda nº 05, de 20 de junho de 2000).

 

 

 

Ementa: 1)Emenda à Lei Orgânica do Município. Proibição de concessão, permissão, e terceirização do serviço público de água e esgotos pelo prazo de doze anos. 2)Violação da separação de poderes (art.5º, 47 II e XIV, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo). 3)Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

 

 

 

1)Relatório.

 

         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Pitangueiras, tendo como alvo o art.15 do Ato das Disposições Transitórias da Lei Orgânica do Município de Pitangueiras, com a redação que lhe conferiu a Emenda nº 05, de 20 de junho de 2000, afirmando o requerente que: (a) houve violação da regra da separação de poderes; (b) há prejuízo irreparável para a administração pública. Indica assim o desrespeito aos art.5º, 47 XVIII e XIX a, 111, e 144 da Constituição Bandeirante. Aduz, ainda, que teriam sido violados dispositivos procedimentais previstos na própria Lei Orgânica, bem como no Regimento Interno da Câmara, no processo legislativo que culminou na aprovação da referida Emenda.

 

         Negada a liminar (fls.183/184), foram requisitadas informações à Câmara Municipal, que não as prestou até o momento (fls.195).

 

         Citado o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo fls.192/194.

 

         Este é o breve relato do que consta dos autos.

 

2)Do ato normativo impugnado.

 

         O art.15 do Ato das Disposições Transitórias da Lei Orgânica do Município de Pitangueiras, fruto da Emenda nº 05, de 20 de junho de 2000, tem a seguinte redação:

 

“Art. 15 – No período de 12 (doze) anos, contados da promulgação dessa Emenda, fica proibida a concessão ou permissão, a terceirização e privatização dos Serviços de Água e Esgotos do Município de Pitangueiras.”

 

         Ressalte-se que não é viável a adoção dos parâmetros infraconstitucionais (dispositivos da Lei Orgânica Municipal ou mesmo do Regimento Interno da Câmara que teriam sido violados) como fundamento para o controle abstrato de constitucionalidade do ato normativo.

 

         Embora tais parâmetros pudessem ensejar o controle difuso de constitucionalidade, ou mesmo o controle de legalidade, no processo objetivo só há espaço para exame de ofensas diretas ao texto da Constituição (cf. ADI-MC 1347 /DF, Rel. Min. Celso De Mello, j. 05/09/1995, Tribunal Pleno, DJ 01-12-1995, p.41685, EMENT VOL-01811-02, p.00241, g.n.).

 

         Entretanto, mencionado dispositivo é verticalmente incompatível com a ordem constitucional, como será verificado a seguir.

 

 

3)Quebra da regra da separação de poderes.

 

         O ato normativo em exame (acrescido à Lei Orgânica Municipal por Emenda fruto de iniciativa parlamentar) estabeleceu concreta proibição, pelo prazo de doze anos, à concessão, permissão, terceirização e privatização dos serviços de água e esgotos do Município de Pitangueiras. Deste modo, impôs ao Poder Executivo obstáculo à realização de atos legítimos de administração, que devem decorrer da avaliação concreta do administrador público e de sua política de gestão, e encontram-se na esfera discricionária de sua atuação.

 

         Em outras palavras, a norma, na prática, proíbe o administrador público de exercer parcela de seu poder de administrar.

 

         Nesse contexto, embora a lei não trate de matéria atinente à iniciativa reservada do Chefe do Executivo, nos termos do art.24 §2º da Constituição Bandeirante, ela se traduz em quebra da regra da separação de poderes, contida na Constituição do Estado, nos art.5º, e 47 II e XIV, aplicáveis aos Municípios por força do art.144 da referida Carta.

 

         Em primeiro lugar, com a devida vênia, não nos parece correto afirmar que a hipótese examinada nestes autos seja de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo.

 

         As matérias cuja iniciativa legislativa cabe apenas ao Executivo são expressamente previstas no art.24 da Constituição Paulista, entre as quais não se encontra aquela tratada no ato normativo aqui examinado.

 

         Ademais, já pacificou o E. STF o entendimento de que as hipóteses de iniciativa reservada, referindo-se a direito estrito, devem ser interpretadas restritivamente (Nesse sentido, v.g.: MS 22.690, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-06).

 

         Entretanto, no caso ora analisado houve violação do princípio da separação de poderes.

 

         É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

 

         O legislador municipal, na hipótese analisada, acolheu iniciativa parlamentar, vedando ao Poder Executivo, durante determinado prazo, a adoção de políticas de gestão relacionadas à prestação de serviços de águas e esgotos.

 

         Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado o Poder Legislativo Municipal a adotar tal solução, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por impedir a realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

 

         Note-se que: (a) cabe ao Poder Executivo fixar suas políticas públicas; (b) entre as políticas públicas ou de gestão se insere a decisão a respeito do modo como serão prestados os serviços públicos, entre eles, os serviços de água e esgotos; (c) vedar a escolha de determinada política de gestão significa proibir o exercício do poder de administrar.

 

         Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

 

         Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

 

         Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

 

         Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

 

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que "dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

 

 

 

4)Conclusão.

 

         Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade do art.15 do Ato das Disposições Transitórias da Lei Orgânica do Município de Pitangueiras (red. Emenda nº 05, de 20 de junho de 2000).

 

 

São Paulo, 13 de maio de 2008.

 

 

 

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça