AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

Processo nº157.098-0/7-00

Requerente: Prefeito Municipal de Votuporanga.

Objeto: Lei Municipal 3363, de 20 de dezembro de 2000, de Votuporanga. 

 

Ementa: 1) Lei Municipal. “Autorização” de extensão de benefício (cesta-básica) a servidores ativos, inativos, e pensionistas. Iniciativa parlamentar. 2)Violação da reserva de iniciativa quanto ao regime jurídico dos servidores (art.24 §2º n.4 da Constituição Estadual). 3)”Lei autorizativa”. Violação da regra da separação de poderes (art.5º da Constituição Estadual). 4)Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

 

         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Votuporanga, tendo como alvo Lei Municipal de iniciativa parlamentar, alegando o autor que: (a) teria ocorrido quebra do princípio da separação de poderes; (b) há reserva de iniciativa na matéria; (c) a lei provocou aumento de despesa sem indicar a fonte de receita.

 

         Foi concedida a liminar, determinando-se a suspensão do ato normativo impugnado (fls.65).

        

         O Senhor Procurador-Geral do Estado foi citado (fls.117), declinando de realizar a defesa do texto normativo impugnado (fls.119/121).

 

         Foram apresentadas informações pela Presidência da Câmara Municipal (fls.69/111).

 

         Este o resumo do que consta dos autos.

 

1)Do ato normativo impugnado.

 

         A Lei 3363/2000, que “dispõe sobre a inclusão dos servidores públicos municipais inativos a receber os benefícios da Lei 3200, de 28/10/99, publicada em 29/10/99”, tem a seguinte redação:

 

“Art.1º. O art.1º da Lei Municipal 3200, passa a vigorar com a seguinte redação:

 

‘Art.1º. Fica o Poder Executivo autorizado a fornecer, mensalmente, aos servidores públicos municipais, ativos, inativos, pensionistas, complementados e complementados pensionistas, uma cesta básica de alimentação’.

 

Art.2º. Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.

 

Art.3º. Revogam-se as disposições em contrário.”

 

                Entretanto, referido ato normativo é verticalmente incompatível com a Constituição do Estado, como será explicitado a seguir.

 

2)Violação da regra da separação de poderes e da reserva de iniciativa.

 

         O primeiro aspecto que merece análise diz respeito ao vício de iniciativa, bem como ao princípio da separação dos Poderes, que decorrem do disposto no art.5º, art.24 §2º n.4, art.37 e art.47 incisos II e XIV, todos da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por força do art.144 da referida Carta.

 

         É ponto pacífico na doutrina bem como na jurisprudência que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

 

         Decorre da sistemática da separação de Poderes que há certas matérias cuja iniciativa legislativa é reservada ao Poder Executivo.

 

         A propósito, a Constituição do Estado prescreve iniciativa privativa do Chefe do Executivo para leis que versem, em síntese, sobre: cargos, funções e empregos públicos na administração direta e indireta e sua remuneração; criação e extinção de órgãos na administração pública; regime jurídico dos servidores públicos (cf. art.24, §2º, n. 1 a 6 da Constituição Estadual). Reitera a Carta Paulista, em linhas gerais, as limitações contidas no art.61 §1º inciso II da Constituição Federal.

 

         De outro lado, a Constituição do Estado de São Paulo também determina caber ao Executivo exercer a direção superior da Administração Estadual, bem como a prática de atos de administração (art.47, incisos II e XIV).

 

         Deste modo, no caso em exame, há tanto violação da reserva de iniciativa, como do princípio da separação de poderes.

 

         O legislador municipal, na hipótese analisada, acolheu iniciativa parlamentar concedendo benefício a servidores públicos municipais ativos, inativos e pensionistas.

 

Isso significa, em outros termos, legislar a respeito de um dos aspectos que envolvem o regime jurídico dos servidores públicos municipais. Trata-se de matéria de iniciativa reservada ao Chefe do Executivo, nos moldes do art.24 §2º n.4 da Constituição Paulista (que reproduz o art.61 §1º, II c da Constituição Federal).

 

         Mas não é só. A Lei 3363/2000, ao “autorizar” o Chefe do Executivo Municipal a fornecer cestas básicas para servidores ativos, inativos e pensionistas, criou programa assistencial, invadindo a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos Poderes (art.5º da Constituição do Estado).

 

         Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

 

         Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis de efeitos concretos, ou que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os Poderes.

 

Essa é exatamente a hipótese verificada nos autos, em que a lei tem cunho “autorizativo”.

                                   

                   Em trabalho, publicado na Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da Instituição Toledo de Ensino (Bauru, n. 29, ago/nov. 2000, pp. 259-267), disponível também na internet (Endereço eletrônico:  www.srbarros.com.br), sustenta o Professor Sérgio Resende de Barros:

 

 “Em 17 de março de 1982 – ainda sob a Constituição (Emenda Constitucional nº 1/69) anterior à atual – o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou representação (nº 993-9) por inconstitucionalidade de uma lei estadual (Lei nº 174, de 8/12/77, do Estado do Rio de Janeiro) que autorizava o Chefe do Poder Executivo a praticar ato que já era de sua competência constitucional privativa. Nesse julgamento, decidiu, textualmente: O só fato de ser autorizativa a lei não modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Não obstante a clareza do acórdão (Diário da Justiça de 8/10/82, p. 10187, Ementário nº 1.270-1, RTJ 104/46), persistiu por toda a Federação brasileira, nos níveis estadual e municipal, a prática de "leis" autorizativas (....).

 

 Insistente na prática legislativa brasileira, a "lei" autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de "leis" passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu "lei" autorizativa, praticada cada vez mais exageradamente. Autorizativa é a "lei" que – por não poder determinar – limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da "lei" começa por uma expressão que se tornou padrão: "Fica o Poder Executivo autorizado a...". O objeto da autorização – por já ser de competência constitucional do Executivo – não poderia ser "determinado", mas é apenas "autorizado" pelo Legislativo. Tais "leis", óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente.

 (...)

 Pelo que, se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei é inconstitucional. Não é só inócua ou rebarbativa. É inconstitucional, porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir, ferindo a Constituição por ele estatuída. O fato de ser mera autorização não elide o efeito de dispor, ainda que de forma não determinativa, sobre matéria de iniciativa alheia aos parlamentares. Vale dizer, a natureza teleológica da lei – o fim: seja determinar, seja autorizar – não inibe o vício de iniciativa. A inocuidade da lei não lhe retira a inconstitucionalidade. A iniciativa da lei, mesmo sendo só para autorizar, invade competência constitucional privativa.

 (...)

 Em suma, as "leis" autorizativas são inconstitucionais:

a.   por vício formal de iniciativa, invadindo campos em que compete privativamente ao Chefe do Executivo iniciar o processo legislativo;       

b.   por usurparem a competência material do Poder Executivo, disposta na Constituição, nada importando se a finalidade é apenas autorizar;      

c.   por ferirem o princípio constitucional da separação de poderes, tradicional e atual na ordenação constitucional brasileira.”

 

           Esse entendimento já foi adotado pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

 

    “A lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo, portanto inconstitucional”. (ADIN n. 593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7.8.00).

 

         Na prática, a lei em exame criou obrigação para o Poder Executivo Municipal, no sentido de prover a entrega de cestas básicas a servidores ativos, inativos e a pensionistas.

 

         Mutatis mutandis, já proclamou esse Egrégio Plenário que:

 

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito”  (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

 

         Ademais, em casos como o presente, esse E. Tribunal de Justiça tem reconhecido a inconstitucionalidade de leis por violação ao art.25 da Constituição Estadual, em razão da ausência de indicação de recursos disponíveis para o pagamento da despesa criada (ADINs ns. 18.628-0, 13.796-0, 38.249-0, 36.805.0/2, 38.977.0/0).

 

3)Conclusão.

 

         Diante do exposto, nosso parecer é no sentido do acolhimento da presente ação direta, com a declaração da inconstitucionalidade da Lei 3363, de 20 de dezembro de 2000, do Município de Votuporanga.

 

São Paulo, 1º de abril de 2008.

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça