Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 157.312-0/5-00
Requerente: Prefeito do Município de Bauru
Requerida: Câmara Municipal de Bauru
Ação
direta de inconstitucionalidade. Reapresentação de matéria cujo veto foi
mantido na mesma sessão legislativa. Observância da maioria absoluta.
Inconsistência de ofensa ao art. 29 da Constituição Estadual. Lei municipal.
Iniciativa parlamentar. Alteração do uso de imóveis situados em via pública
específica e determinada. Subversão ao princípio da separação dos poderes e ao
princípio da impessoalidade (arts. 5º, 47, II e XIV, 111 caput, 144, 180 caput e
inciso II, 181 caput, e seu §1º, da Constituição Estadual).
Egrégio Tribunal:
1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade questionando a Lei n. 5.273, de 09 de agosto de 2005, do Município de Bauru, que transforma em corredor comercial e de serviços as ruas Benedito José Allegro e Valdemir Nunes Medeiros, e em corredor comercial a Alameda Octávio Pinheiro Brisola, sob a alegação de violação ao artigo 29 da Constituição do Estado de São Paulo, posto que a Rua Valdemir Nunes Medeiros constava de projeto de lei anterior constante do Autógrafo n. 5.344, de 05 de abril de 2005, cujo veto aposto pelo Prefeito foi aprovado pelo Plenário da Câmara (fls. 02/06).
2. A Fazenda Pública do Estado de São Paulo declinou da defesa do ato impugnado (fls. 51/53) e a Câmara Municipal prestou informações (fls. 56/57).
3. O preceito constante do art. 29 da Constituição do Estado de São Paulo reflete autêntica limitação reproduzindo a norma do art. 67 da Constituição Federal, cuja aplicação seria autorizada na espécie por força do art. 144 da Constituição do Estado.
4. O Autógrafo n. 5352, de 31 de maio de 2005, continha em seu art. 2º a seguinte disposição:
“Art.
2º. Fica transformada
5. Na motivação do veto o Prefeito explicitou que:
“(...)
a matéria já foi discutida no Autógrafo nº 5344 de 05 de abril do corrente ano,
de iniciativa do Nobre Vereador Paulo Eduardo Martins Neto.
Mencionado autógrafo foi objeto de veto total por parte do Chefe do Poder Executivo Municipal, com fundamento idêntico ao apresentado para a Rua Benedito José Allegro, sendo aprovado pelo plenário dessa Edilidade (...)” (fls. 16/17).
6. Embora o veto tenha sido rejeitado (fl. 23), o veto ao projeto de lei e respectivo autógrafo anteriores tornavam compulsória a observância da regra do art. 29 da Constituição Estadual.
7. A leitura do processo legislativo precedente solidifica essa convicção. O Autógrafo n. 5.344, de 05 de abril de 2005, assim dispunha:
“Art.
1º. Fica transformada
8. O projeto de lei, de iniciativa parlamentar, foi vetado e o veto acolhido (fls. 63/64, 69/70).
9. Convém atentar que a Lei n. 5.273 resultante do Autógrafo n. 5.352 não continha originariamente a mesma matéria do projeto de lei e respectivo autógrafo vetados. A Rua Valdemir Nunes Medeiros foi incluída por emenda subscrita por nove vereadores (fl. 75) e aprovada por doze (fls. 76, 80/82).
10. Assim sendo, tanto a reapresentação quanto a aprovação do projeto repetido preencheu o requisito de admissibilidade de maioria absoluta.
11. No entanto, não se deve perder de vista as características singulares do processo objetivo de controle de constitucionalidade a permitirem seu exame mais amplo para além da causa petendi.
12. Com
efeito, é possível afirmar que a lei impugnada ofende frontalmente diversos
dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo, adiante indicados: art. 5º;
art. 47, incisos II e XIV; art. 111 caput;
art. 144; art. 180 caput, e inciso
II; art. 181 caput, e seu §1º.
13. Embora
o Município seja dotado de autonomia política e administrativa, dentro do
sistema federativo (art.1º e art.18 da Constituição Federal), esta autonomia
não tem caráter absoluto, pois, limita-se ao âmbito pré-fixado pelo ente
estrutural e hierarquicamente superior, vale afirmar, a Constituição Federal (José
Afonso da Silva. Direito constitucional
positivo, São Paulo: Malheiros, 1997, p.459), de modo que a autonomia
municipal deve ser exercida com a observância dos princípios contidos na
Constituição Federal e na Constituição Estadual (Luiz Alberto David Araújo e Vidal
Serrano Nunes Júnior. Curso de direito
constitucional, São Paulo: Saraiva, 9ª
ed., p. 285). Essa autonomia
municipal, na lição de José Afonso da Silva (op. cit., p. 591), envolve quatro
capacidades básicas: (a) capacidade de auto-organização (elaboração de lei
orgânica própria); (b) capacidade de autogoverno (eletividade do Prefeito e dos
Vereadores às respectivas Câmaras Municipais); (c) capacidade normativa própria
(autolegislação, mediante competência para elaboração de leis municipais); (d)
capacidade de auto-administração (administração própria para manter e prestar
serviços de interesse local). Nas quatro capacidades acima estão configuradas: (a)
a autonomia política (capacidades de auto-organização e de autogoverno); (b)
autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de suas
competências); (c) autonomia administrativa (administração própria e
organização dos serviços locais); (d) autonomia financeira (capacidade de
decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas).
14. A
autonomia do Município, entretanto, deve respeitar o princípio da separação dos
poderes, contando o art.5º da Constituição do Estado com a expressa previsão de
que eles atuam de forma independentemente e harmônica, regra, aliás, que também
consta do art.2º da Constituição Federal, igualmente aplicável no âmbito
estadual por força do art.144 da Constituição Bandeirante.
15. Segundo
Hely Lopes Meirelles explica, as atribuições do Prefeito são de natureza
governamental e administrativa, sendo certo que atua sempre “por meio de atos
concretos e específicos, de governo (atos políticos) ou de administração (atos
administrativos), ao passo que a Câmara desempenha suas atribuições típicas
editando normas abstratas e gerais de conduta (leis). Nisso se distinguem
fundamentalmente suas atividades. O ato executivo do Prefeito é dirigido a um
objetivo imediato, concreto e especial; o ato legislativo da Câmara é mediato,
abstrato e genérico(...) O prefeito provê in concreto, em razão do seu poder de
administrar; a Câmara provê in abstracto em virtude de seu poder de regular.
Todo ato do prefeito que infringir a prerrogativa da Câmara – como também toda
deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do
Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos
do governo local (CF, art.2º c.c. o art.31), podendo ser invalidado pelo
Judiciário” (Direito Municipal Brasileiro,
São Paulo: Malheiros, 1993, p.523).
16. A lei local em análise ofendeu a
separação que deve ocorrer no exercício das funções estatais ao ingressar na
esfera de competência reservada ao Poder Executivo. De fato, não se trata de
verdadeiro ato normativo, dotado das características de abstração e
generalidade, de que ordinariamente reveste-se a lei. Ao contrário, ao levar ao
extremo a individualização do seu objeto, consistente em transformar em
corredor comercial determinada via pública, interferindo diretamente no
zoneamento urbano e, por conseguinte, na disciplina urbanística da urbe.
Trata-se de verdadeiro ato normativo de efeitos concretos que, em essência, é
um ato administrativo com forma de lei (José
Cretella Júnior. Controle jurisdicional
do ato administrativo, Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.403).
17. É
justamente considerando a concreção e delimitação da abrangência da
manifestação da vontade da Administração Pública, que Edmir Netto de Araújo
conceitua o ato administrativo como sendo “a declaração de vontade do Estado,
nessa qualidade, exteriorizada por agente competente e no exercício de suas
funções, visando a produção de efeitos jurídicos conformes ao interesse
público, por ela objetivados, determinados ou admitidos pelo ordenamento jurídico,
em matéria administrativa” (Curso de Direito Administrativo, São
Paulo: Saraiva, 2005, pp. 437-438).
18. Viável
afirmar que a lei local analisada, ao regular situação específica e concreta,
configurou, na prática, ato de efeitos concretos, por estar despido das
características de abstração, generalidade e impessoalidade. E, assim sendo, considerando
que a iniciativa legislativa partiu de vereadores da Câmara Municipal, conclui-se
que o Legislativo praticou ato cuja competência recai na esfera do Executivo
Municipal.
20. Por
igualdade de razões, a Constituição Estadual, em dispositivo aplicável aos
Municípios em função do seu art.144, prevê, nos incisos II e XIV do seu art.47
as atribuições privativas do Chefe do Executivo para “exercer, com o auxílio
dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual”, bem
como “praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do
Executivo”.
21.
Vale, a propósito, colacionar
precedentes deste egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
acolhendo, em hipóteses análogas, a tese da inconstitucionalidade por violação
da separação de poderes:
“Ação
Direta de Inconstitucionalidade da Lei 3.801, de 01 de julho de 2004, do
Município de Valinhos, que ‘cria zona corredor 1 – ZC1, nas ruas Martinho
Leardine e Pedro Leardine e altera o zoneamento de Z2A para Z3B no JD. Paiquerê
e no Condomínio residencial Millenium’. Lei apenas em sentido formal.
Incompetência do Poder Legislativo Municipal. Matéria afeta ao Poder Executivo.
Violação dos princípios da independência e harmonia dos poderes. Ação
procedente” (TJSP, ADI 119.158-0/3, Rel. Des. Denser de Sá, 02-02-2006).
“Inconstitucionalidade.
Ação Direta. Lei Complementar Municipal 1.482/03. ‘Autoriza, em caráter
excepcional, atividades de prestação de serviços (clínicas de acupuntura,
terapias e meditações) em trecho da Avenida Sumaré...’.Lei de iniciativa
exclusiva do Prefeito. Ofensa à Constituição Estadual. Vício de iniciativa.
Ação procedente. Inconstitucionalidade declarada”(TJSP, ADI 115.322-0/3-00,
Ribeirão Preto, Rel. Des. Barbosa Pereira, 27-07-2005).
22. Evidencia-se
a inconstitucionalidade por violação ao disposto no art. 5º, art. 47 incisos II
e XIV, e art. 144 caput, todos da
Constituição do Estado de São Paulo.
23. Ademais,
a Constituição Estadual prevê objetivamente a necessidade de planejamento em
matéria urbanística. O art. 180 caput da
Carta Bandeirante, ao tratar do tema, indica os critérios a serem observados,
pelo Estado e pelos Municípios, no “estabelecimento de diretrizes e normas
relativas ao desenvolvimento urbano”. Entre eles, de conformidade com o inciso
I do referido artigo, encontra-se a participação das respectivas entidades
comunitárias no estudo, encaminhamento e solução de problemas, “plano, programas
e projetos que lhes sejam concernentes”. O art.181 da Constituição Estadual,
por sua vez, prescreve que a “lei municipal estabelecerá em conformidade com as
diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento,
uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais
limitações administrativas pertinentes”; enquanto o respectivo §1º estabelece
que “os planos diretores, obrigatórios a todos os Municípios, deverão
considerar a totalidade do território Municipal”.
24. Cumpre
recordar que a exigência do plano diretor, como “instrumento básico da política
de desenvolvimento e expansão urbana”, está assentada no §1º do art.182 da
Constituição Federal, cuja aplicabilidade à hipótese decorre da regra contida
no art.144 da Constituição do Estado de São Paulo. E o art.182 caput da CF disciplina que “a política
de desenvolvimento urbano, executada pelo poder Público municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus
habitantes”. O inciso VIII do art.30
da Constituição Federal prevê a competência dos Municípios para “promover, no
que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle
do uso, do parcelamento, e da ocupação do solo urbano”.
25.
Infere-se dos dispositivos
acima apontados que a política de ocupação e uso adequado do solo se faz
mediante planejamento e estabelecimento de diretrizes através de lei, e as
diretrizes para o planejamento, ocupação e uso do solo devem constar do
respectivo plano diretor, cuja elaboração depende de avaliação concreta das
peculiaridades de cada Município.
26. A sistemática constitucional, quanto
à necessidade de planejamento, diretrizes, e ordenação global da ocupação e uso
do solo, torna patente que o casuísmo, evidenciado em atos normativos que
regulam situações delimitadas e concretas, não é admissível. O ato normativo
que individualiza determinada situação, como ocorreu com a lei local focalizada,
modificando o uso de imóveis situados em determinada via pública, de forma
pontual, viola diretamente a sistemática constitucional na matéria. Pois, qualquer
modificação legislativa que envolva a ocupação e uso do solo deve ser realizada
dentro de um contexto de planejamento, e de diretrizes gerais. Não se admite,
nesse quadro, a ordenação individualizada e dissociada do contexto da
utilização de todo o solo urbano.
27. Tratando
da elaboração do plano diretor do ordenamento urbano, anota Hely Lopes
Meirelles que ”toda cidade há que ser planejada: a cidade nova, para sua
formação; a cidade implantada, para sua expansão; a cidade velha, para sua
renovação”; acrescendo que “a elaboração do plano diretor é tarefa de
especialistas nos diversificados setores de sua abrangência, devendo por isso
mesmo ser confiada a órgão técnico da Prefeitura ou contratada com
profissionais de notória especialização na matéria, sempre sob supervisão do
Prefeito, que transmitirá as aspirações dos munícipes quanto ao desenvolvimento
do Município e indicará as prioridades das obras e serviços de maior urgência e
utilidade para a população” (Direito
Municipal Brasileiro. cit., pp. 393- 395).
28. Tratando
especificamente do problema da ocupação e uso do solo, anota José Afonso da
Silva que a respectiva ordenação é um dos aspectos fundamentais do planejamento
urbanístico, salientando ainda, quanto às hipóteses de alteração de zoneamento,
que “recomenda-se, nessas alterações, muito critério, a fim de que não se façam
modificações bruscas entre o zoneamento existente e o que vai resultar da
revisão. É preciso ter em mente que o zoneamento constitui condicionamento
geral à propriedade, não indenizável, de tal maneira que uma simples liberação
inconseqüente ou um agravamento menos pensado podem valorizar demasiadamente
alguns imóveis, ao mesmo tempo que desvalorizam outros, sem propósito. É
conveniente que o zoneamento resultante da revisão ou da alteração constitua
uma progressão harmônica do zoneamento revisado ou alterado, para não causar
impactos, que, por sua vez, geram resistências que dificultam sua implantação e
execução. É prudente avançar devagar, mas com firmeza, energia e justiça” (Direito Urbanístico, São Paulo:
Malheiros, 2006, p. 251).
29. Cumpre finalmente destacar a
importância do planejamento urbanístico e da necessária razoabilidade de que se
deve revestir a legislação elaborada nesta matéria, recordando Toshio Mukai,
que “a ocupação e o desenvolvimento
dos espaços habitáveis, sejam eles no campo ou na cidade, não podem ocorrer de
forma meramente acidental, sob as forças dos interesses privados e da
coletividade. Ao contrário, são necessários profundos estudos acerca da
natureza da ocupação, sua finalidade, avaliação da geografia local, da
capacidade de comportar essa utilização sem danos para o meio ambiente, de
forma a permitir boas condições de vida para as pessoas, permitindo o
desenvolvimento econômico-social, harmonizando os interesses particulares e os
da coletividade” (Temas
atuais de direito urbanístico e ambiental, Belo Horizonte: Editora Fórum,
2004, p. 29).
30. Deste
modo, padece de inconstitucionalidade o ato normativo oriundo do Legislativo
municipal que, sem qualquer estudo prévio consistente, e de forma casuística,
altera o zoneamento de imóveis especificamente indicados, ferindo frontalmente
o disposto nos art. 180 caput e
inciso II, art. 181 caput e §1º,
ambos da Constituição Estadual; bem como, por força do art. 144 da Constituição
Estadual, o art. 182 caput e §1º, e o
art. 30, inciso VIII da Constituição Federal.
31. Por
fim, a lei local ao permitir destinação peculiar (note-se: comercial) para
determinados imóveis violou o princípio da impessoalidade, adotado
expressamente no art. 111 caput da
Constituição do Estado de São Paulo, bem como no art. 37 caput da Constituição Federal, aplicável por força do art. 144 da
Carta Bandeirante.
32. A
propósito, recorda Celso Antônio Bandeira de Mello, que “a Administração tem
que tratar todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas.
Nem favoritismo nem perseguições são toleráveis(...) O princípio em causa não é
senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia” (Curso de direito
administrativo, São Paulo: Malheiros, 2000, p.84). E conforme expõe Hely
Lopes Meirelles, tratando-se de zoneamento urbano, “normas edilícias devem
evitar o quanto possível essas súbitas e freqüentes modificações de uso, que
afetam instantaneamente a propriedade e as atividades particulares, gerando
instabilidade no mercado imobiliário urbano e intranqüilidade na população
citadina (...) O Município só deve impor ou alterar zoneamento quando essa
medida for exigida pelo interesse público, com real vantagem para a cidade e
seus habitantes” (Direito Municipal Brasileiro. cit., p. 407).
Deste modo, as inovações legislativas urbanísticas impendem planejamento neutro
e objetivo, racional e imparcial, não inculcando mudanças tópicas capazes de
criar desequilíbrio subjetivo determinado.
33. Face
ao exposto, opino pela procedência da ação por violação aos arts. 5º, 47, II e
XIV, 111 caput, 144, 180 caput e inciso II, 181 caput, e seu §1º, da Constituição Estadual.
São Paulo, 03 de abril de 2008.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça