Autos n. 158.160.0/8-00
Requerente: Prefeito
Municipal de São Sebastião
Objeto de impugnação: Lei n. 1.890, de 17
de dezembro de 2007, do Município de São Sebastião
Colendo
Órgão Especial
Cuida-se de ação proposta
pelo Prefeito Municipal de São Sebastião na qual se questiona a validade
jurídico-constitucional da Lei n. 1.890, de 17 de dezembro de 2007, do
Município de São Sebastião, em face dos arts. 5º, 111 e 144 da Constituição do
Estado de São Paulo.
A
Lei Municipal sindicada dispõe sobre as
normas relativas ao Comércio Ambulante no Município de São Sebastião e dá
outras providências.
Decorre
a lei de projeto de iniciativa parlamentar. Foi vetada pelo Prefeito Municipal
que, com a rejeição do veto, ajuizou a necessária ação direta.
Em
relação ao texto normativo, podem ser feitos os seguintes destaques:
- a lei resulta do Projeto de Lei n. 72/07 e altera a Lei Municipal n. 1.608/04 que
dispõe sobre as normas relativas ao Comércio Ambulante no Município de São
Sebastião;
- a Lei Municipal n. 1.608/04 foi de iniciativa do Chefe do
Poder Executivo;
- o art. 1º da lei sindicada determinou a alteração do
parágrafo único do art. 3º para especificar em que período pode ser exercido o
comércio ambulante;
- o art. 2º alterou a redação do art. 7º para determinar o
número de vagas destinadas às pessoas deficientes.
Cópia
integral do texto normativo está a fls. 65.
O eminente relator,
Desembargador WALTER DE ALMEIDA GUILHERME, concedeu medida liminar (fls. 78/84)
para suspender, com efeito ex nunc, a
vigência e eficácia da Lei n. 1.890/2007.
Notificada,
a Câmara de São Sebastião prestou informações nos termos regimentais (fls. 96/97),
defendendo a sua competência legislativa plena e a legitimidade do ato
normativo. Juntou os documentos de fls. 98/109.
Citado
para os fins do § 2.º do art. 90 da Constituição Paulista, o Procurador Geral
do Estado defendeu a exegese que condiciona a sua intervenção nos processos de fiscalização
abstrata à existência de interesse estadual na preservação do texto normativo
impugnado, ausente neste caso (fls. 91/93).
É
o breve relato.
A despeito do que foi alegado
em defesa da validade da lei municipal ora impugnada, a presente ação deverá
ser julgada procedente.
No
Brasil o governo municipal é de funções divididas. As funções administrativas
foram conferidas ao Prefeito, enquanto que as funções legislativas são de
competência da Câmara. Administrar significa aplicar a lei ao caso concreto.
Assim, no exercício de suas funções, o Prefeito é obrigado a observar as normas
gerais e abstratas editadas pela Câmara, em atenção ao princípio da legalidade,
a que está pautada toda atuação administrativa, na forma do art. 111 da Carta
Paulista.
Esse mecanismo de repartição
de funções, incorporado ao nosso ordenamento constitucional, e que teve como
principal idealizador o filósofo Montesquieu, impede a concentração de poderes
num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo[1].
Daí ser vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência
privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira.
Tamanho
significado apresenta esse sistema de separação das funções estatais, em nosso
ordenamento jurídico, que a própria Constituição, no seu art. 60, § 4.º, inciso
III, cuidou de incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente
que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
aboli-lo.”
Vistos esses aspectos, tem-se
no caso sob exame que a Câmara de Vereadores de São Sebastião aprovou a Lei n.
1.890/2007, derivada de projeto de iniciativa parlamentar, e regulamentou o
Comércio Ambulante, alterando lei anterior decorrente de iniciativa do Chefe do
Poder Executivo.
Essa lei, porém, malgrado os
elevados propósitos que nortearam a sua edição, não reúne a mínima condição de
subsistir na ordem jurídica vigente, uma vez que, a pretexto de disciplinar
assunto de interesse local, a Câmara Municipal de São Sebastião acabou por
interferir na esfera de competência do Executivo, acarretando, tal iniciativa,
o desequilíbrio no delicado sistema de relacionamento entre os poderes
municipais.
Com efeito, é irrecusável a
competência da Câmara para legislar sobre os assuntos de interesse local,
mas desde que observados os limites constitucionais que decorrem, basicamente,
da necessidade de preservar-se a convivência pacífica dos poderes políticos,
entre os quais não existe nenhuma relação de hierarquia e subordinação, mas sim
de independência e harmonia, em face do contido no art. 5.º, da Constituição do
Estado de São Paulo.
Como já visto inicialmente, a
administração municipal incumbe ao Prefeito, que é quem define as prioridades
da sua gestão, as políticas públicas a serem implementadas e os serviços
públicos que serão prestados à população. Nessa seara, a Câmara não tem como
impor suas preferências, podendo quando muito formular indicações, mas
não sujeitar aquela autoridade ao cumprimento de lei que, longe de fixar uma
regra geral e abstrata, constitui verdadeira ordem ou comando, para que se faça
algo.
Logo,
se a iniciativa em exame for considerada válida – o que corresponde, na
prática, a uma tentativa de restabelecer-se o sistema que vigorava ao tempo das
Comunas -, ocorrerá uma hipertrofia do Legislativo, que sempre poderá impor
suas vontades ao Executivo, por meio da edição de leis[2],
criando uma verdadeira relação de subordinação e hierarquia entre os poderes,
incompatível com o sistema adotado pela Constituição em vigor, o qual se baseia
na independência e harmonia entre os poderes, cuja observância é vital
para a preservação do Estado de Direito.
Na realidade, o diploma legal
ora questionado é ‘lei apenas em sentido formal’,
porquanto não encerra o conteúdo de uma norma abstrata ou teórica, instituída
em caráter permanente e de generalidade. As leis formais não se mostram regras
jurídicas, mas simples atos administrativos dos poderes legislativos,
indicando-se decisões particulares, tais como a lei orçamentária, as leis de
autorização ou as leis que concedem favores especiais a determinadas pessoas.
São leis que atendem a casos particulares, de natureza por vezes executiva, ou
reguladoras de situações especiais. Bem por isso, aliás, é que são consideradas
leis impróprias (Cf. DE PLACIDO E SILVA,
“Vocabulário Jurídico”, ed. Forense, Rio de Janeiro, Volume III, 1984, p. 67).
Na ordem constitucional
vigente, como anotado em tópico precedente, não existe a mínima possibilidade
de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por intermédio da edição
de leis. Em relação a esse aspecto, aliás, não paira nenhuma controvérsia, uma
vez que a atual Constituição é suficientemente clara ao atribuir ao Prefeito a
competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a
direção superior da administração municipal (CE, art. 47, inciso II) e a
praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE., art.
47, inciso XIV).
Bem por isso, ELIVAL DA
SILVA RAMOS adverte que: “Sob a vigência de Constituições que agasalham
o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento
editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra
é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A
edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das
fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e
abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou
várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional.
Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena
de inconstitucionalidade substancial.” (“A Inconstitucionalidade das Leis -
Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).
Nesse contexto, a aprovação
de lei de iniciativa parlamentar, pela Câmara Municipal, que disciplina o
Comércio Ambulante só pode ser interpretada como atentatória ao postulado
básico da independência e harmonia entre os poderes (CE., art. 5.º, caput).
Em suma, a Câmara Municipal
de São Sebastião não pode arrogar a si a competência para criar obrigações para
serem executadas pela própria administração direta. Disso resulta a conclusão
de que referido ato legislativo é incompatível com o princípio da independência
e harmonia entre os poderes.
Aliás,
registre-se que, mesmo em cognição sumária, o Nobre Relator bem destacou que “a
lei em apreço estabelece normas para a concessão de licenças, para a
fiscalização do comércio e mesmo exige a satisfação, pelos ambulantes, de
condições específicas de apresentação das mercadorias, questões, enfim, de
caráter eminentemente administrativo que estão afetas ao Executivo, a depender
de lei cuja iniciativa pertence ao chefe desse Poder” (fls. 82).
Considerados esses argumentos,
é flagrante a inconstitucionalidade da lei municipal sindicada.
Em face do exposto, aguardo o
julgamento de procedência desta ação direta a fim de que seja
declarada a inconstitucionalidade da Lei n. 1.890, de 17 de dezembro de
2007, do Município de São Sebastião.
São Paulo, 28 de maio de 2008.
MAURÍCIO AUGUSTO GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA,
no exercício de função delegada
pelo Procurador-Geral de Justiça
[1] Em sua magistral obra “Esprit des lois”,
Montesquieu formulou a seguinte advertência: “tudo estaria perdido se o
mesmo homem ou o mesmo corpo exercesse esses três poderes: o de fazer as leis,
o de executá-las e o de julgar.”
[2]
R. Carré de Malberg distingue Estado legal e Estado de Direito: “El Estado
de derecho se establece simple y únicamente en interés y para la salvaguardia
de los ciudadanos; sólo tiende a asegurar la protección de su derecho o de su
estatuto individual. El régimen del Estado legal está orientado en otra
dirección. Se relaciona con un concepto político referente a la organización
fundamental de los poderes, concepto según el cual debe la autoridad
administrativa, en todos los casos y respecto a todas las materias, subordinarse
al órgano legislativo, en el sentido de que no podrá actuar sino en
ejecución o por autorización de una ley. Esta subordinación no se reduce desde
luego a aquellos actos de administración que producen efectos de orden
individual respecto a los administrados, sino que se extiende, en principio, a
todas las medidas de administración, hasta aquellas – reglamentarias o
particulares – que, sin tocar al derecho de los administrados, conciernen
únicamente al funcionamiento interno de los servicios administrativos y sólo
deben dejar sentir sus efectos en el interior del organismo administrativo.”
(Teoría General del Estado, Traducción de José Lión Depetre, Facultad de
Derecho/UNAM e Fondo de Cultura Económica, México, 2001, p. 451)