AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

 

Processo nº. 158.377.0/8-00

Autor : Prefeito Municipal de Sarapuí

Objeto : Lei Complementar nº. 120, de 7 de novembro de 2007, do Município de Sarapuí

 

Ementa: 1) Lei Municipal tributária de iniciativa parlamentar, que introduz benefícios fiscais não previstos no Código Tributário municipal.  2) Inexistência de reserva de iniciativa do Poder Executivo. 3) Ausência de estimativa do impacto orçamentário, e de previsão de medidas de compensação. Questões de fato, cuja verificação é inviável no controle concentrado de normas. 4) Violação de dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/00). Inconstitucionalidade indireta, não verificável no processo de controle concentrado de normas. 5) Exigência constitucional de “lei específica” para a concessão de benefícios fiscais (art.163 § 6º da Constituição do Estado). Inconstitucionalidade, sob tal fundamento, reconhecida.

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator:

 

                                                         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Sarapuí, tendo como alvo a Lei Complementar nº. 120, de 7 de novembro de 2007.

 

                                                         Foi determinada, liminarmente, a suspensão da eficácia dos dispositivos impugnados (fls. 65/66).

 

                                                         A Presidência da Câmara Municipal prestou informações (fls.80/81).

 

                                                         Foi citado o Senhor Procurador-Geral do Estado para a defesa do ato normativo impugnado (fls. 76/78), deixando de fazê-lo por entender de matéria exclusivamente de interesse local.

 

                                                         Breve relato.

 

                                                         O autor questiona a validade jurídico-constitucional da Lei Complementar nº. 120/07, do Município de Sarapuí, que “dispõe sobre a alteração no Código Tributário do Município de Sarapuí, e dá outras providências”. Tal lei acrescentou ao inciso II do parágrafo único do art. 39 o seguinte trecho: “entidades dos trabalhadores”, determinando que o Executivo expeça as normas necessárias à execução. A lei ficou assim redigida:

“Art. 39 - ...

Parágrafo único - ...

I - ...

II – Pertencentes às sociedades civis, entidades dos trabalhadores, associações e fundações constituídas no país, declaradas de utilidade pública na forma da Lei.

III- ...

IV - ...

V - ...

VI - ...

VII - ...”

 

                                                         Sustenta o autor a inconstitucionalidade de tais dispositivos, tendo em vista que: (a) há vício de iniciativa (matéria reservada ao Poder Executivo); (b) violação da separação e independência entre os Poderes; (c) trata-se de renúncia fiscal em desacordo com a legislação aplicável (Lei de Responsabilidade Fiscal). Depreende-se da inicial e dos esclarecimentos prestados às fls. 28/29, que aponta violação dos seguintes preceitos da Constituição do Estado de São Paulo: art. 5º, 47, inc. II, 144, 174, 176.

 

                                                         Da leitura dos autos, infere-se a seguinte seqüência na dinâmica do processo legislativo, no caso em exame: (a) o Prefeito Municipal enviou à Câmara projeto de lei que visava alterar o Código Tributário Municipal (Lei Complementar nº. 110/05 – fls. 12/13); (b) posteriormente, parlamentar apresentou projeto de lei complementar que alterou a anterior e acrescentou à LC 110/04 os termos impugnados na presente ação; (c) após a aprovação, e remessa ao Executivo para apreciação, houve veto; (d) a Câmara Municipal afastou o veto, sendo então promulgada a Lei Complementar nº. 120/07, com os dispositivos ora questionados pelo Chefe do Executivo Municipal.

 

                                                         A inclusão da expressão “entidades dos trabalhadores”, que alterou o Código Tributário Municipal de Sarapuí, traduziram hipótese de ampla renúncia fiscal, na medida em que a nova redação dada ao inciso II do parágrafo único do art. 39 do CTM isentou do pagamento de taxas entidades de trabalhadores.

 

                                                         Diante do quadro, é possível afirmar que os dispositivos acima referidos efetivamente padecem de inconstitucionalidade, mas por fundamento diverso daqueles sustentados pelo autor.

 

 

2. Inexistência de reserva de iniciativa ou de violação ao princípio da separação dos poderes.

 

                                                         É assente que a regra adotada em nosso sistema constitucional, no processo legislativo, é a iniciativa concorrente. Excepcionais são as hipóteses de iniciativa reservada. Isso é o que decorre do art. 61 e parágrafos da Constituição Federal, cuja essência é reproduzida no art. 24 e parágrafos da Constituição do Estado de São Paulo.

 

                                                         Como hipótese de exceção, a iniciativa reservada deve ser interpretada restritivamente, pois, como anotava há muito Carlos Maximiliano, “exceptiones sunt strictissimae interpretationis” (Hermenêutica e aplicação do direito, 18ªed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, p.225). O Pretório Excelso assentou a questão, reafirmando que as hipóteses de iniciativa reservada não podem receber interpretação analógica ou extensiva, de sorte a envolver situações não previstas de forma expressa na Constituição. Decidiu-se que:

"O respeito às atribuições resultantes da divisão funcional do Poder constitui pressuposto de legitimação material das resoluções estatais, notadamente das leis. Prevalece, em nosso sistema jurídico, o princípio geral da legitimação concorrente para instauração do processo legislativo. Não se presume, em conseqüência, a reserva de iniciativa, que deve resultar — em face do seu caráter excepcional — de expressa previsão inscrita no próprio texto da Constituição, que define, de modo taxativo, em numerus clausus, as hipóteses em que essa cláusula de privatividade regerá a instauração do processo de formação das leis.”(ADI 776-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-10-92, DJ de 15-12-06; g.n.).

 

                                                         Observando o art. 24 § 2º da Constituição do Estado de São Paulo, que reproduz em essência o art.61 § 1º da Constituição Federal, verifica-se inexistir regra que atribua expressamente, ao Poder Executivo, reserva de iniciativa em matéria tributária. E tal afirmação é válida tanto para hipóteses de instituição de tributos, como ainda de leis que os revoguem, ou ainda instituam benefícios fiscais, como remissões, subvenções, anistia ou isenções.

 

                                                         Não havendo, destarte, reserva expressa, não é possível acolher-se alegação de inconstitucionalidade, por vício de iniciativa, da lei ou emendas que revogam tributo anteriormente instituído, ou que concedem benefícios fiscais.

 

                                                         Entendimento distinto do aqui sustentado, em última análise, significaria negar-se vigência ao disposto no art.61 § 1º da Constituição Federal, aplicável ao caso por força do art.144 da Constituição Estadual.

 

                                                         De outro lado, não se verifica, na hipótese em exame, quebra do postulado da separação dos poderes.

 

                                                         Há quebra do princípio da separação de poderes nos casos, por exemplo, em que o Poder Legislativo edita um ano normativo que configura, na prática, ato de gestão executiva. Quando o legislador, a pretexto de legislar, administra, configura-se o desrespeito à independência e harmonia entre os poderes, princípio estatuído no art. 5º da Constituição Estadual, que reproduz o contido no art. 2º da Constituição Federal.

 

                                                         Daí a afirmação de Hely Lopes Meirelles, no sentido de que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo do princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º, c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., São Paulo, Malheiros, 2006, p.712).

 

                                                         Evidencia-se assim a inexistência de quebra da separação de poderes no caso examinado. Se a instituição de um tributo se faz por meio de lei, em razão do princípio da reserva legal em matéria tributária (art.150 inciso I da Constituição Federal; art.163 inciso II da Constituição do Estado), corolário lógico é que a disciplina das hipóteses de renúncia fiscal, de forma idêntica, deve decorrer de lei.

 

3.Inviabilidade do confronto com a Lei de Responsabilidade Fiscal.

 

                                                         Poder-se-ia argumentar no caso examinado (como faz o autor) que a renúncia fiscal contida nos art. 4º, 5º e 6º da Lei Complementar 120/07 de Sarapuí, violou o disposto no art.14 e §§, da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/00), que estabelece critérios e limites para atos de renúncia de receita fiscal. O diploma legal aponta no sentido de que todo ato de renúncia fiscal depende da demonstração (a) de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, e (b) está acompanhada de medidas de compensação por meio de aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.

 

                                                         Entretanto, há dois motivos que inviabilizam tal análise: (a) para saber se houve ou não a estimativa de impacto, ou mesmo a adoção de medidas de compensação, seria necessário ingressar no exame dos fatos, o que é inviável no processo objetivo, de controle abstrato de validade das leis; e (b) a eventual violação da Lei de Responsabilidade Fiscal significa, em última análise, desrespeito apenas reflexo ao princípio da legalidade, não abrindo ensejo ao controle concentrado de constitucionalidade da lei.

 

                                                         Como anota, a propósito, Juliano Taveira Bernardes, “a jurisprudência do STF adota perfil restritivo ao conceito de inconstitucionalidade, resumindo-o, para fins de controle (tanto concreto quanto abstrato), somente ao descompasso direito e frontal da norma impugnada em face da Constituição Federal”. (Controle abstrato de constitucionalidade, São Paulo, Saraiva, 2004, p.137). Nesse sentido confiram-se os seguintes precedentes do Pretório Excelso: ADI 1.540-MS, julgada em 25.6.97, ADIn 252-PR, rel. Min. Moreira Alves, 20.11.97.

 

                                                         Daí a conclusão de que o desrespeito a preceitos da Lei de Responsabilidade Fiscal, por não se tratar da violação direta de parâmetros de controle que tenham assento constitucional, não abre as portas do controle abstrato da validade jurídico-constitucional da lei.

 

4.Inconstitucionalidade formal: necessidade de lei específica para renúncia fiscal.

 

                                                         Como é possível observar do resultado final do processo legislativo no qual foi produzida a Lei Complementar 120/07 de Sarapuí, a inclusão da expressão “entidades dos trabalhadores” trouxe hipótese de renúncia fiscal, pois a nova redação dada ao art. 39 do CTM isentou do pagamento de IPTU as entidades de trabalhadores. Em outras palavras, a lei contém claramente hipóteses de isenção e, nesse particular, olvidou-se o legislador de observar o disposto no art. 163 § 6º da Constituição Estadual (dispositivo que reproduz o art.150 § 6º da Constituição Federal), pelo qual:

qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderão ser concedidos mediante lei estadual específica, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art.155, §2º, XII, ‘g’, da Constituição Federal”.

 

                                                         Recordemos que tal preceito é aplicável aos Municípios, nos termos do disposto no art.144 da Carta Bandeirante.

 

                                                         A propósito das hipóteses de renúncia fiscal que interessam ao caso em exame, ou seja, a isenção e a remissão, Roque Antônio Carrazza traça sua distinção, anotando que “isenção, como vimos de ver, é uma limitação do âmbito de validade de uma norma jurídica tributária que impede que o tributo nasça. Ou, se preferirmos, é a nova configuração que a lei dá à norma jurídica tributária, que passa a ter seu âmbito de abrangência restringido, impedindo, assim, que o tributo nasça (evidentemente naquela hipótese descrita na lei isentiva). Já a remissão é o perdão legal do débito tributário. É, na terminologia do Código Tributário Nacional, uma causa extintiva do crédito tributário (art.156 IV)). Faz desaparecer o tributo já nascido e só pode ser concedida por lei da pessoa política tributante” (Curso de direito constitucional tributário, 22ª ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p.861).

 

                                                         E tratando da exigência de lei específica contida no art.150 § 6º da CF (reproduzido no art.163 § 6º da Constituição Paulista), assenta Roque Carrazza que “qualquer vantagem fiscal (‘subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão’) só será válida se objeto de ‘lei específica’ da pessoa política, isto é, que ‘regule exclusivamente’ tal matéria. Daí podermos falar em princípio da especificidade e exclusividade das leis tributárias específicas. Portanto, nenhum benefício fiscal pode ser disciplinado em lei voltada a outros temas. Graças à determinação constitucional, evita-se que emendas capciosas induzam parlamentares menos avisados a aprovar, sem que o percebam, favores fiscais que nada têm a ver com o assunto central do ato normativo que estiver em votação.” (ob. cit., p.863).

 

                                                         A respeito da exigência de lei específica, anota-se em sede doutrinária que “(...) a exigência de lei específica significa, nesse sentido, que seus preceitos devem estar dirigidos a um subconjunto dentro de um conjunto de sujeitos ou que seu conteúdo deve estar singularizado na descrição da facti species normativa, i. é, pela delimitação de um subconjunto material dentro de um conjunto. (...) lei específica, segundo o § 6º do art. 150 da Constituição, deverá regular exclusivamente as matérias ali enumeradas ou regular exclusivamente o correspondente tributo ou contribuição” (Tércio Sampaio Ferraz Júnior, A noção de Lei Específica no art. 150 § 6º, a CF e a Recepção dos Decretos-leis n. 2163/84 e 1184/71, “in” Leandro Paulsen, Direito tributário, 9ªed., Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2007, p.267).

 

                                                         Aliás, a exigência de lei específica para fins de renúncia fiscal já foi pacificada há muito pelo Pretório Excelso, como se infere da ementa do seguinte julgado:

"Inconstitucionalidade, por contrariar o processo legislativo decorrente do art. 150, § 6º, da Constituição Federal (onde se exige a edição de lei ordinária específica), bem como do princípio da independência dos Poderes (art. 2º), a anistia tributária concedida pelo art. 34, e seus parágrafos, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, de 1989, do Estado de Santa Catarina." (ADI 155, Rel. Min. Octavio Gallotti, julgamento em 3-8-98, DJ de 8-9-00, g.n.)

 

                                                         É possível extrair da exigência de lei específica para a concessão de benefícios fiscais, que a Constituição busca evitar a aprovação, sem maiores cuidados e critérios, de benesses que sejam iníquas e lesivas ao erário.

 

                                                         Como anota Ricardo Lobo Torres, a propósito da isenção, esta “deve se basear na idéia de justiça, correspondendo aos seus princípios da capacidade contributiva, redistribuição de rendas ou desenvolvimento econômico. Nada tem que ver, a não ser quando desrespeitada, com a idéia de liberdade, que fundamenta as imunidades (...) A política das isenções está hoje sob suspeita generalizada de injustiça, improdutividade e perversidade fiscal, o que a torna suscetível de se transformar constantemente em privilégio odioso, ofensivo da liberdade e dos direitos humanos do contribuinte.” (Tratado de direito constitucional financeiro e tributário, vol. III, 3ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2005, p.377).

 

                                                         Dito de outro modo, a renúncia fiscal, em qualquer de suas modalidades, deve servir a objetivos mais nobres, que não à criação de privilégios desproporcionais ou não razoáveis. Em função disso, entre outras coisas, é que o sistema constitucional fixa limites formais à sua concessão. Deste modo, exigindo-se lei específica, haverá a certeza de que a matéria será efetivamente analisada no âmbito do legislativo, e não aprovada como que por descuido, no meio de outros dispositivos, de um projeto de lei, que não guardem relação direta com o tema.

 

                                                         Como é possível afirmar, com amparo em excerto extraído da ADI 3260/RN, rel. Min. Eros Grau, (j. 29.3.2007), o que o art.150 § 6º da CF veda é a “a oportunista introdução de norma de isenção fiscal no contexto de lei que cuide de matéria de natureza diversa”.

 

                                                         Esta, precisamente, foi a hipótese verificada no caso em exame.

 

5.Conclusão.

 

                                                         Diante do exposto, o parecer é no sentido da procedência da ação, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Complementar nº. 120, de 7 de novembro de 2007, de Sarapuí.

São Paulo, 26 de maio de 2008.

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

Procurador de Justiça,

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça