Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos n. 158.599.0/0-00

Autor: Prefeito Municipal de Ribeirão Preto

Objeto de impugnação: Lei Municipal n. 11.229, de 23 de maio de 2007

 

 

 

Excelentíssimo Desembargador Relator

 

Colendo Órgão Especial

 

 

O Prefeito Municipal de Ribeirão Preto ajuizou a presente ação pleiteando a declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 11.229, de 23 de maio de 2007, que obriga a destinação de 100% (cem por cento) dos valores arrecadados com a aplicação de multas de trânsito para a TRANSERP e para o 9º Grupamento de Incêndio de Ribeirão Preto (Bombeiros). A lei está reproduzida, na íntegra, a fls. 24.

A causa de pedir principal consiste na violação ao princípio da harmonia e independência dos poderes, consagrado no art. 5º da Lei Maior paulista, bem como no vício de iniciativa legislativa (art. 47 da CE).

Registre-se que a iniciativa legislativa foi parlamentar. Houve veto por parte do Chefe do Executivo, sob o fundamento da inconstitucionalidade. A Câmara Municipal, porém, rejeitou o veto.

Alega-se, ainda, a violação aos arts. 37, 47, II e XVII, 144 e 174, I, II, III, § 1º, 2º, 4º, nºs. “1” e “3”, todos da Constituição do Estado de São Paulo.

A liminar foi deferida pelo Nobre Desembargador Relator PASSOS DE FREITAS, conforme se vê da R. Decisão de fls. 30/32.

Citado, o Procurador-Geral do Estado, a fls. 41/43, alegou falta de interesse na defesa do ato impugnado, sob o argumento de que se trata de matéria exclusivamente local.

A Câmara Municipal prestou informações a fls. 46/80, sustentando a constitucionalidade da lei municipal sindicada.

É o breve relatório.

A presente ação direta deve ser julgada procedente, conforme será demonstrado.

O art. 1º da Lei Municipal n. 11.229/2007 revela a inconstitucionalidade ao dispor que:

 

Fica por esta lei obrigada a Administração Municipal a destinar 100% (cem por cento) do dinheiro arrecadado com a aplicação de multas por infrações de trânsito, no importe de 50% (cinqüenta por cento) para a Transerp para investimento em sinalização de solo, aérea, semáforos e placas de sinalização de ruas e 50% (cinqüenta por cento) ao 9º Grupamento de Incêndio de Ribeiro Preto (bombeiros), para manutenção dos serviços de salvamento/resgate em acidentes de trânsito.

 

A lei municipal ora questionada afeta a administração do patrimônio público municipal.

Por isso, apenas o Prefeito Municipal tem iniciativa para deflagrar processo legislativo para aprovação de lei com o conteúdo da que se pretende ver declarada como inconstitucional, sob pena de indevida interferência de um Poder sobre o outro.

A Constituição Estadual estabelece, em seu art. 5º, que:

 

São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Por sua vez, o art. 47, II, da Carta Constitucional paulista veicula princípio de observância obrigatória aos municípios:

 

Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição (...) exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual (...).

 

As normas que tratam da reserva de iniciativa, longe de normas de direito estrito, ou de exceção, refletem com sutileza as nuances e a evolução do principio da separação de poderes. As regras de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo têm como corolário o princípio da separação dos poderes, que nada mais é do que o mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos, estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos órgãos[1].

Ao Poder Legislativo, como se sabe, é vedada a administração da cidade, tarefa que incumbe, no Município, ao Prefeito, ou ao que, modernamente, chama-se de 'Governo', que tem na lei um dos seus mais relevantes instrumentos. O poder de iniciativa neste campo - administração da cidade - é do Executivo (melhor, do 'Governo'), participando o Poder Legislativo, quando assim determinar a Constituição, apenas a qualidade de aprovar-desaprovar os atos. A hipótese é de administração ordinária, cabendo ao Legislativo apenas o estabelecimento de normas gerais, diretrizes globais, jamais atos pontuais e específicos.

Para Hely Lopes Meirelles[2], após dizer que “todo o patrimônio municipal fica sob a administração do prefeito”:

“A atribuição típica e predominante da Câmara é a normativa, isto é, a de regular a administração do Município e a conduta dos munícipes no que afeta aos interesses locais. A Câmara não administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração. Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre sua execução. Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão-somente, preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação governamental do Executivo, personalizado no prefeito.

Eis aí a distinção marcante entre a missão normativa da Câmara e a função executiva do prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração” – negritamos.

A lei sindicada na presente ação, de iniciativa parlamentar, não contém proposição geral e abstrata e, bem analisada, representa ingerência nas prerrogativas do Prefeito Municipal ao vincular, de forma ilegal, a receita municipal, afrontando, dentre outros, os arts. 5º e 47, II da Constituição do Estado de São Paulo.

Acrescente-se, ainda, que, por se tratar de lei referente à destinação de recursos para órgãos públicos, a iniciativa também é privativa do Executivo, nos termos do art. 47, XVII, da Constituição Estadual, aplicável à hipótese:

 

Artigo 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

XVII - enviar à Assembléia Legislativa projetos de lei relativos ao plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, dívida pública e operações de crédito.

 

Portanto, é flagrante a inconstitucionalidade da lei municipal de Ribeirão Preto.

Como já decidiu esse honrado Órgão Especial, em acórdão da lavra do eminente Desembargador MAURÍCIO FERREIRA LEITE[3], ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade de Lei n. 146.174.0/9-00, há violação ao princípio da separação de poderes quando a lei de iniciativa parlamentar não possui caráter genérico e abstrato:

“AÇÃO DIRETA DE INCOSNTITÜCIONALIDADE - Lei Municipal n. 10.972/2006, de Ribeirão Preto - Legislação, de iniciativa parlamentar, que torna obrigatória a criação de um banco de dados informatizado a respeito dos casos de doenças respiratórias em todas as unidades de saúde do Município - Impossibilidade - Matéria de cunho eminentemente administrativo - Exercício da função executiva ordinária não pressupõe qualquer autorização. Função legislativa da Câmara dos Vereadores possui caráter genérico e abstrato - Ofensa ao princípio da separação dos poderes - Inexistência, ademais, de indicação dos recursos orçamentários para implantação da medida - Ação direta julgada procedente, para declarara inconstitucionalidade da norma” - negritamos.

 

Frise-se que, no presente caso, a lei não se limitou a recomendar como deveria ser aplicada a receita, mas determinou, de forma concreta e específica, a forma de aplicação.

Assim sendo, manifesto-me pela procedência desta ação objetivando a declaração de inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 11.229, de 23 de maio de 2007, do Município de Ribeirão Preto.

São Paulo, 12 de maio de 2008.

 

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA,

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

 

 



[1] Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Do processo legislativo, São Paulo: Saraiva, p. 111/112.

[2] Direito municipal brasileiro, 12ª ed., São Paulo: Malheiros, p. 576.

[3] Julgamento: 19/03/2008.