Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Ação Direta de Inconstitucionalidade 158.603-0/0-00

Requerente: Prefeito Municipal de Ribeirão Preto

Requerida: Câmara Municipal de Ribeirão Preto

 

 

 

 

 

 

 

Egrégio Tribunal,

Colendo Órgão Especial,

Douto Relator:

 

 

 

1.           Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei n. 11.289, de 04 de julho de 2007, do Município de Ribeirão Preto, de iniciativa parlamentar, que regulamenta o tratamento privilegiado às micro e pequenas empresas nas compras públicas de bens e serviços. Na petição inicial, alega-se que a lei local não pode impor ao Chefe do Poder Executivo a adoção de critérios para contratação mediante licitação de microempresas e empresas de pequeno porte nem contrariar os previstos em norma geral federal, razão pela qual não é dado obrigar o poder público a realizar licitação exclusiva para tais pessoas jurídicas nem reservar cota de licitações para elas. Por isso, a lei local viola os arts. 5º, 37, 47, II, III, e IX, 111, 117 e 144, da Constituição Estadual (fls. 02/15).

 

2.           Negada liminar (fls. 39/40), manifestou a Procuradoria-Geral do Estado desinteresse no processo (fls. 48/50) e a Câmara Municipal prestou informações assinalando o suporte da lei local nos arts. 47 e 48 da Lei Complementar n. 123/06, a competência legislativa concorrente (arts. 24, I, 170, IX, 179, Constituição) e a inexistência de iniciativa legislativa reservada (fls. 54/64).

 

3.           É o relatório.

 

4.           O controle de constitucionalidade de leis municipais é promovido exclusivamente, no juízo abstrato, concentrado e direto, pelo contraste com normas da Constituição Estadual, não servindo como parâmetros de confronto a Lei Orgânica do Município nem a Constituição Federal, salvo, nesta última hipótese, dispositivos reproduzidos na Constituição Estadual. Tampouco se presta esse controle ao exame do divórcio entre a lei local e leis federais ou estaduais.

 

5.           Feita essa advertência, não se verifica violação ao princípio da separação dos poderes e ao esquema de iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo na disciplina da matéria constante da lei local impugnada nesta via. Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo, exercitável por seus membros na forma prevista, sendo excepcional a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, como observa tradicional e autorizada lição doutrinária:

“A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).  

 

6.           Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

 

7.           No entanto, anima-se ao exame da matéria oferecida a julgamento de constitucionalidade a partir do princípio federativo e dos princípios de impessoalidade e razoabilidade.

 

8.           Não bastasse o art. 111 da Constituição Estadual reportar-se explicitamente aos princípios de impessoalidade e razoabilidade, a abordagem nesta via do princípio federativo é autorizada pelo art. 144 da Constituição Estadual ao cunhar que “os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”. A premissa está, por sinal, arrimada pelos arts. 1º, 18, e 29, da Constituição Federal. Assim sendo, inclui-se no debate decorrente de eventual ofensa ao princípio federativo a partilha de competências executivas e normativas desenhada na Constituição Federal.

 

9.           É da competência legislativa da União a edição de normas gerais de licitações e contratos administrativos, em todas as modalidades, para a Administração Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive suas autarquias, fundações públicas e empresas estatais, como expresso no art. 22, XXVII, da Constituição Federal.

 

10.         No caso, a lei local tratou da participação de microempresas e empresas de pequeno porte em licitações no âmbito municipal, não merecendo abono a invocação dos arts. 24, I, 170, IX, 179, da Constituição, porque a lei municipal não tem o domínio normativo pleno da matéria, na medida em que tangenciando o regime jurídico diferenciado das microempresas e empresas de pequeno porte licitações e contratos administrativos deverá ser observada a competência normativa exclusiva federal para o traçado de normas gerais.

 

11.         Não se pode perder de vista a licitação é regra constitucional (art. 37, XXI, Constituição) decorrente dos princípios de moralidade, eficiência e impessoalidade (art. 37, caput, Constituição). É processo administrativo de seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública promover a contratação da execução de obra ou serviço público, a aquisição ou fornecimento de bens, a delegação de serviço público, a alienação ou concessão de uso de bens públicos etc. É formalidade essencial e antecedente lógico de legitimação da atividade negocial da Administração Pública, predisposta a garantir a lisura, a igualdade e a eficiência no trato dos negócios públicos. Por ela a Administração Pública escolhe dentre os vários interessados capacitados aquele que reúne melhores condições para o desempenho de uma atividade de interesse do poder público e, em última análise, da sociedade. Concentra as virtudes de dispensa de tratamento igualitário, alijando preferências ou preterições ordenadas por elementos subjetivos, assegura a competitividade e garante a ética na gestão da coisa pública em suas relações com terceiros. Na licitação despontam, entre outros, como princípios fundamentais: igualdade, transparência, vinculação e observância das “regras do jogo” previamente definidas, e competitividade.

 

12.          Sua disciplina é submetida a uma noção mais tradicional e rigorosa do princípio da legalidade consistente na reserva de lei. Versando matéria administrativa encaixa-se na capacidade de auto-administração dos entes federados, dispondo cada um deles de competência para o respectivo processo, respeitadas, por obra do art. 22, XXVII, da Constituição, as normas gerais reservadas ao domínio da União. Essa reserva legal para a edição de normas gerais tem fundamento na imprescindibilidade da uniformização de tratamento a fim de garantir a competitividade, a eficiência e a moralidade inerentes ao instituto. Embora se reconheça a dificuldade na formulação e na compreensão do conceito de normas gerais, parece claro que elas vinculam as demais esferas de governo na medida de sua generalidade, de modo que apenas elas são de observância obrigatória para as esferas estadual, distrital e municipal. De qualquer maneira, deve se ter como norma geral a que apresenta grau mais elevado de abstração e de generalidade do que o natural (ou normal) das demais leis, como uma diretriz ou princípio geral, com característica essencial de uniformidade de tratamento normativo para todas as esferas federativas, apontando como lei nacional.

 

13.         As normas gerais “constituem normas de leis, direito sobre direito, determinam parâmetros, com maior nível de generalidade e abstração, estabelecidos para que sejam desenvolvidos pela ação normativa subseqüente das ordens federadas”. Portanto, “não são normas gerais as que se ocupem de detalhamentos, pormenores, minúcias, de modo que nada deixam à criação própria do legislador a quem se destinam, exaurindo o assunto de que tratam”, sendo, isto sim, “as que se contenham no mínimo indispensável ao cumprimento dos preceitos fundamentais, abrindo espaço para que o legislador possa abordar aspectos diferentes, diversificados, sem desrespeito a seus comandos genéricos, básicos” (Alice Gonzalez Borges. Normas Gerais nas Licitações e Contratos Administrativos, RDP 96/81).

 

14.         Realmente, de tão difícil que é a definição de normas gerais que é melhor afirmar “o que não é norma geral. Não é norma geral aquela que corresponde a uma especificação, a um detalhamento. Portanto, norma geral é aquela que cuida de determinada matéria de maneira ampla. Norma geral é aquela que comporta uma aplicação uniforme pela União, Estado e Município; norma geral é aquela que não é completa em si mesma, mas exige uma complementação” (Adilson Abreu Dallari. Aspectos Jurídicos da Licitação, São Paulo: Saraiva, 1997, pp. 20-21). Ou ainda: por normas gerais entende-se as que revelam as características de sua essencialidade para a disciplina do instituto e de sua natureza uniformizadora como standards jurídicos e, no regime federativo, manifestam a atividade coordenadora federal, sem descrição de pormenores e que se estendem até o ponto em que não firam princípios ou atributos, implícitos ou explícitos, inerentes à autonomia estadual, distrital e municipal (Toshio Mukai.  O Novo Estatuto Jurídico das Licitações e Contratos Públicos, São Paulo: Saraiva, 1994, pp. 18-21), “todas aquelas que estabelecem princípios ou diretrizes aplicáveis indistintamente a todas licitações e contratos administrativos, em todo o território nacional” (Hely Lopes Meirelles. Licitação e Contrato Administrativo, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, pp. 34-35).

 

15.          Apontam-se como normas gerais (tendo em foco a Lei n. 8.666/93) “os princípios elencados nos arts. 1º a 5º e mais algumas outras disposições amplas e genéricas que comportam aplicação uniforme em todo território nacional, assim como também, ao mesmo tempo, uma complementação, um detalhamento, uma integração pela legislação específica de cada pessoa jurídica de capacidade política” (Adilson Abreu Dallari. Aspectos Jurídicos da Licitação, São Paulo: Saraiva, 1997, pp. 20-21), assim como as que definem a obrigatoriedade da licitação, enunciam os princípios da licitação ou definem os direitos deles decorrentes (Carlos Ari Sundfeld. Licitação e Contrato Administrativo, São Paulo: Malheiros, 1994, pp. 29-30, 66).

 

16.         Por ser a licitação indissociavelmente ligada ao princípio da igualdade, a Lei n. 8.666/93 cuida de incrementá-lo em vários níveis, destacando-se o art. 3º, §§ 1º e 2º, na vedação de tratamentos diferenciados, o que deve ser interpretado à luz da Constituição que proíbe apenas e tão somente discriminações desprovidas de orientação pelo princípio de razoabilidade.

 

17.         A Lei Complementar n. 123, de 14 de dezembro de 2006, devota o Capítulo V, à participação das microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações e contratos administrativos (arts. 42 a 49), inscrevendo normas gerais se atendidos os contornos dogmáticos acima mencionados. Assim sendo, seu art. 47 enuncia que “nas contratações públicas da União, dos Estados e dos Municípios, poderá ser concedido tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das políticas públicas e o incentivo à inovação tecnológica, desde que previsto e regulamentado na legislação do respectivo ente”.

 

18.         Cumprindo essa diretriz, o art. 48 estabelece que a Administração Pública poderá realizar procedimento licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresa e empresa de pequeno porte nas contratações de valor até R$ 80.000,00 (inciso I), em que seja exigida dos licitantes subcontratação dessas pessoas jurídicas (inciso II), e em que se estabeleça cota de até 25% do objeto para sua contratação na aquisição de bens e serviços de natureza divisível (inciso III). Adiante no art. 49, a lei, todavia, fixa exceções a essas novas regras, entre elas a inexistência de, no mínimo, três fornecedores competitivos e capacitados, enquadrados locais ou regionais como microempresas ou empresas de pequeno porte; a possibilidade de desvantagem para o poder público ou prejuízo ao objeto contratado; a dispensabilidade ou inexigibilidade da licitação.

 

19.         Reproduzindo a lei local as normas federais tidas como gerais (art. 48), não se verifica violação ao princípio federativo pela invasão de competência legislativa reservada à União.

 

20.         O debate, no entanto, se aprofunda quando se alega que a lei local tornou obrigação aquilo que a lei federal descreveu como faculdade. Realmente, a lei municipal não reproduziu as exceções do art. 49, mas, isso nem era necessário, dado que prevalecem como normas gerais. E ao tornar obrigatória aquilo que era facultativo nenhuma inconsistência há porque, é certo, o contrário não seria admissível, ou seja, a lei federal não poderia obrigar o município, sob pena de violação de sua autonomia.

 

21.         Por isso, dentro do círculo de atuação que a autonomia lhe oferece, compete integralmente ao município, à vista da faculdade aberta pela lei federal no art. 47, a opção por uma ou mais das alternativas concebidas a título de normas gerais (art. 48) para o tratamento diferenciado das microempresas e empresas de pequeno porte nas licitações e nos contratos administrativos.

 

22.         E, reproduzindo ou absorvendo a lei local os critérios de tratamento diferenciado e simplificado para microempresas e empresas de pequeno porte, constantes da lei federal, não é possível a instauração de controle de constitucionalidade desses preceitos nesta via, porquanto implicaria, em última análise, o contraste da lei federal com os princípios de razoabilidade e de impessoalidade, usurpando a competência do Supremo Tribunal Federal.

 

23.         Opino pela improcedência da ação.

 

             São Paulo, 12 de junho de 2008.

 

 

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça