Autos n. 158.628.0/4-00
Requerente: Prefeito
Municipal de Bebedouro
Objeto de impugnação: Lei n. 3.163, de 9
de maio de 2002, do Município de Bebedouro
Colendo
Órgão Especial
Cuida-se
de ação proposta pelo Prefeito Municipal de Bebedouro na qual se questiona a
validade jurídico-constitucional da Lei n. 3.163, de 9 de maio de 2002, do
Município de Bebedouro, em face dos arts. 5º, 25, 144 e 150 da Constituição do
Estado de São Paulo.
A Lei Municipal sindicada “Dispõe
Sobre o Emplacamento Obrigatório de Bicicletas No Município de Bebedouro,
Observância das Leis de Trânsito e Dá outras Providências”.
Decorre a lei de projeto de iniciativa
parlamentar (vereador Archibaldo Brasil Martinez de Camargo). Foi vetada pelo
Prefeito Municipal que, com a rejeição do veto, ajuizou a necessária ação
direta.
Em relação ao texto normativo,
podem ser feitos os seguintes destaques:
- o art. 1º autoriza
o Poder Executivo a estabelecer a obrigatoriedade do emplacamento
identificatório das bicicletas;
- o art. 2º dispõe que o emplacamento será feito pelo Município, através do departamento
competente e Conselho Municipal de Trânsito, que providenciará a aquisição das
placas personalizadas;
- o art. 4º estabelece que as bicicletas em tráfego, sem placas após a vigência desta lei e do
prazo concedido para o emplacamento, pelo decreto do Executivo que a
regulamentar, serão sumariamente apreendidas e somente liberadas após os
respectivos emplacamentos;
Não
houve concessão de liminar (fls. 130/132).
Notificada, a Câmara de Bebedouro
prestou informações nos termos regimentais (fls. 145/148), defendendo a sua
competência legislativa plena para disciplinar os assuntos de interesse local (CF,
art. 30, I), motivo pelo qual não houve violação da regra da iniciativa
reservada e do princípio da separação dos poderes. Juntou os documentos de fls.
150/177.
Citado para os fins do § 2.º
do art. 90 da Constituição Paulista, o Procurador Geral do Estado defendeu a
exegese que condiciona a sua intervenção nos processos de fiscalização abstrata
à existência de interesse estadual na preservação do texto normativo impugnado,
ausente neste caso (fls. 141/143).
É o breve relato.
A despeito
do que foi alegado em defesa da validade da lei municipal ora impugnada, bem
como de sua louvável intenção, a presente ação deverá ser julgada procedente.
No Brasil o governo municipal
é de funções divididas. As funções administrativas foram conferidas ao Prefeito,
enquanto que as funções legislativas são de competência da Câmara. Administrar
significa aplicar a lei ao caso concreto. Assim, no exercício de suas funções,
o Prefeito é obrigado a observar as normas gerais e abstratas editadas pela
Câmara, em atenção ao princípio da legalidade, a que está pautada toda atuação
administrativa, na forma do art. 111 da Carta Paulista.
Esse
mecanismo de repartição de funções, incorporado ao nosso ordenamento
constitucional, e que teve como principal idealizador o filósofo Montesquieu,
impede a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência
revelou conduzir ao absolutismo[1].
Daí ser vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência
privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira.
Tamanho significado apresenta
esse sistema de separação das funções estatais, em nosso ordenamento jurídico,
que a própria Constituição, no seu art. 60, § 4.º, inciso III, cuidou de
incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente que “não será
objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a aboli-lo.”
Vistos
esses aspectos, tem-se no caso sob exame que a Câmara de Vereadores de Bebedouro
aprovou a Lei n. 3.163/02, derivada de projeto de iniciativa parlamentar, que institui
o programa de emplacamento obrigatório de bicicletas no Município de Bebedouro (art.1º).
Já o art. 2º, do diploma legal
inquinado, cria obrigações para a Administração.
Essa
lei, porém, malgrado os elevados propósitos que nortearam a sua edição, não
reúne a mínima condição de subsistir na ordem jurídica vigente, uma vez que, a
pretexto de disciplinar assunto de interesse local, a Câmara Municipal de Bebedouro
acabou por interferir na esfera de competência do Executivo, acarretando, tal
iniciativa, o desequilíbrio no delicado sistema de relacionamento entre os
poderes municipais.
Com
efeito, é irrecusável a competência da Câmara para legislar sobre os assuntos
de interesse local, mas desde que observados os limites constitucionais
que decorrem, basicamente, da necessidade de preservar-se a convivência
pacífica dos poderes políticos, entre os quais não existe nenhuma relação de
hierarquia e subordinação, mas sim de independência e harmonia, em face do
contido no art. 5.º, da Constituição do Estado de São Paulo.
Como
já visto inicialmente, a administração municipal incumbe ao Prefeito, que é
quem define as prioridades da sua gestão, as políticas públicas a serem
implementadas e os serviços públicos que serão prestados à população. Nessa
seara, a Câmara não tem como impor suas preferências, podendo quando muito
formular indicações, mas não sujeitar aquela autoridade ao cumprimento
de lei que, longe de fixar uma regra geral e abstrata, constitui verdadeira
ordem ou comando, para que se faça algo.
Logo, se a iniciativa em exame
for considerada válida – o que corresponde, na prática, a uma tentativa de
restabelecer-se o sistema que vigorava ao tempo das Comunas -, ocorrerá uma
hipertrofia do Legislativo, que sempre poderá impor suas vontades ao Executivo,
por meio da edição de leis[2],
criando uma verdadeira relação de subordinação e hierarquia entre os poderes,
incompatível com o sistema adotado pela Constituição em vigor, o qual se baseia
na independência e harmonia entre os poderes, cuja observância é vital
para a preservação do Estado de Direito.
Na
realidade, o diploma legal ora questionado é ‘lei
apenas em sentido formal’, porquanto não encerra o conteúdo de uma norma
abstrata ou teórica, instituída em caráter permanente e de generalidade. As
leis formais não se mostram regras jurídicas, mas simples atos administrativos dos poderes legislativos, indicando-se
decisões particulares, tais como a lei orçamentária, as leis de autorização ou as leis que concedem favores especiais a
determinadas pessoas. São leis que atendem a casos particulares, de natureza por vezes executiva, ou
reguladoras de situações especiais. Bem por isso, aliás, é que são consideradas
leis impróprias (Cf. DE PLACIDO E SILVA, “Vocabulário Jurídico”, ed.
Forense, Rio de Janeiro, Volume III, 1984, p. 67).
Advém,
daí, a necessidade de saber se a Câmara dispõe de ampla liberdade para editar
leis meramente autorizativas ou se há algum limite a essa prerrogativa, máxime
nos casos em que a autorização é dada para a prática de ato que se insere na
esfera de competência de outro Poder, tal como neste caso, em que se prevê a celebração
de convênio com entidade de classe.
Sobre as leis autorizativas, notadamente daquelas aprovadas sem que tenha sido
solicitada qualquer autorização à Câmara, SERGIO RESENDE DE BARROS
anotou que:
"...insistente na prática legislativa brasileira, a
‘lei’ autorizativa constitui um expediente usado por parlamentares para
granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos
materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias
administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do
projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes
consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso,
os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda,
realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa,
praticada cada vez mais exageradamente. Autorizativa é a ‘lei’ que - por
não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar
atos que já lhe estão autorizados pela
Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O
texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder
Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização - por já ser de competência constitucional do
Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo
Legislativo. Tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois
jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde
já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente." (Leis Autorizativas, Revista
da Instituição Toledo de Ensino, p.
262, agosto a novembro de 2000, Bauru.)
Na ordem constitucional
vigente, como anotado em tópico precedente, não existe a mínima possibilidade
de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por intermédio da edição
de leis. Em relação a esse aspecto, aliás, não paira nenhuma controvérsia, uma
vez que a atual Constituição é suficientemente clara ao atribuir ao Prefeito a
competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a
direção superior da administração municipal (CE, art. 47, inciso II) e a
praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE., art.
47, inciso XIV).
Bem
por isso, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que: “Sob a vigência de
Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto,
não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto
e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício
da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas
que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres
de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma
direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta
caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto
Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial.” (“A
Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).
Nesse
contexto, a aprovação de lei de iniciativa parlamentar, pela Câmara Municipal,
que autoriza o Executivo a criar uma
obrigação para setores de seu próprio organismo de execução, só pode ser
interpretada como atentatória ao postulado básico da independência e harmonia
entre os poderes (CE., art. 5.º, caput), visto que a Constituição em
vigor não exige nenhuma autorização especial para a prática de ato que se
insere na órbita de competência tipicamente administrativa.
Em
suma, a Câmara Municipal de Bebedouro não pode arrogar a si a competência para
autorizar a prática de atos concretos de administração, como criar obrigações
para serem executadas pela própria administração direta. Disso resulta a
conclusão de que referido ato legislativo é incompatível com o princípio da
independência e harmonia entre os poderes.
Considerados
esses argumentos, é flagrante a inconstitucionalidade da lei municipal
sindicada.
DO PROCEDENTE
A questão
jurídico-constitucional trazida pelo Prefeito Municipal de Bebedouro já foi
enfrentada por esse Colendo Órgão Especial nos autos da Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 127.216.0/2-00. Oportuna a reprodução da ementa
proferida no acórdão da lavra do eminente Desembargador LAERTE NORDI:
“Ação Direta de Inconstitucionalidade –
Lei do Município de Sertãozinho que dispôs sobre o emplacamento obrigatório de
bicicletas – Invasão indevida em área de competência do Chefe do Executivo –
Violação dos artigos 5º, 25, 37, 47, II e XIV e 144 da Constituição do Estado
de São Paulo – Ação procedente”.
DA LIMINAR
Com o devido respeito à
decisão de fls. 130/132, remanesce, no caso, a necessidade da concessão de
medida liminar. É que, quando se trata do controle normativo abstrato, e uma
vez verificada a cumulativa satisfação dos requisitos legais concernentes ao
“fumus boni juris” e ao “periculum in mora”, o poder geral de cautela autoriza
a suspensão da eficácia da norma impugnada, até o final julgamento da
respectiva ação direta de inconstitucionalidade.
E,
nesse passo, releva notar que a plausibilidade jurídica da tese exposta na
inicial é evidente, não admitindo maiores questionamentos, sobretudo porque o pedido
inicial é lastreado em precedente desse Órgão Especial.
E,
por outro lado, também está delineada a situação de risco, caracterizadora do
‘periculum in mora’, mesmo porque haverá a produção de uma série de despesas
aos cofres públicos e as particulares em decorrência da implantação da lei. E,
é bom frisar, despesas ilegais e inconstitucionais.
PARECER
FINAL
Em face do exposto, aguardo o
julgamento de procedência desta ação direta a fim de que seja
declarada a inconstitucionalidade da Lei n. 3.163, de 9 de maio de 2002, do
Município de Bebedouro, por afronta aos arts. 5º, 25, 37,
47, II e XIV, da Constituição
Paulista, cuja observância é obrigatória pelos Municípios, por força do art.
144 dessa mesma Carta Política.
São Paulo, 28 de maio de
2008.
MAURÍCIO AUGUSTO GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA,
no exercício de função delegada
pelo Procurador-Geral de Justiça
[1] Em sua magistral obra “Esprit des lois”,
Montesquieu formulou a seguinte advertência: “tudo estaria perdido se o
mesmo homem ou o mesmo corpo exercesse esses três poderes: o de fazer as leis,
o de executá-las e o de julgar.”
[2]
R. Carré de Malberg distingue Estado legal e Estado de Direito: “El Estado
de derecho se establece simple y únicamente en interés y para la salvaguardia
de los ciudadanos; sólo tiende a asegurar la protección de su derecho o de su
estatuto individual. El régimen del Estado legal está orientado en otra
dirección. Se relaciona con un concepto político referente a la organización
fundamental de los poderes, concepto según el cual debe la autoridad
administrativa, en todos los casos y respecto a todas las materias, subordinarse
al órgano legislativo, en el sentido de que no podrá actuar sino en
ejecución o por autorización de una ley. Esta subordinación no se reduce desde
luego a aquellos actos de administración que producen efectos de orden
individual respecto a los administrados, sino que se extiende, en principio, a
todas las medidas de administración, hasta aquellas – reglamentarias o
particulares – que, sin tocar al derecho de los administrados, conciernen
únicamente al funcionamiento interno de los servicios administrativos y sólo
deben dejar sentir sus efectos en el interior del organismo administrativo.”
(Teoría General del Estado, Traducción de José Lión Depetre, Facultad de
Derecho/UNAM e Fondo de Cultura Económica, México, 2001, p. 451)