AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE N.º 158.630-0/3-00
Requerente :
Prefeito do Município de Bebedouro
Requerida :
Câmara Municipal de Bebedouro
Objeto :
Lei n.º 3.717, de 7 de novembro de 2007
Ementa: Lei municipal de iniciativa parlamentar que determina
gratuidade no transporte coletivo urbano a integrantes das Forças Armadas
Brasileiras que estejam prestando o serviço militar obrigatório. Imposição de
atribuições específicas em serviço concedido. Criação de despesas sem indicar a
fonte dos recursos. Matéria afeta à administração dos serviços públicos. Inconstitucionalidade
reconhecida.
Colendo
Órgão Especial
Senhor
Desembargador Relator
O
Prefeito Municipal de Bebedouro propôs
a presente ação direta objetivando a
declaração de inconstitucionalidade da Lei n.º 3.717, de 7 de novembro de 2007,
que ''Estabelece gratuidade do transporte coletivo urbano para os integrantes
das Forças Armadas Brasileiras que estejam prestando serviço militar obrigatório
não remunerado”. A Câmara Municipal forneceu suas informações (fls. 166/168) e
a D. Procuradoria-Geral do Estado não se manifestou sobre o mérito (fls. 161/163).
Há que se acrescentar que o projeto de lei foi vetado pelo Executivo, tendo
sido rejeitado o veto aposto. Houve o deferimento liminar do pedido (fl.
151/152).
A
ação deva ser julgada procedente, sendo
inconstitucional a Lei n.º 3.717, de 7 de novembro de 2007, do Município de Bebedouro.
Há
que se aduzir que a Lei em questão é de iniciativa
de vereador, tendo sido vetada pelo
Executivo, mas tal veto foi rejeitado
pela Edilidade. Aduz o Alcaide que referido
dispositivo é inconstitucional por contrariar os arts. 5º, 25 e 150 da
Constituição Estadual, além do art. 61§ 1º, II, “a” da Constituição Federal. De
fato, vislumbramos afronta aos artigos 5.º, 25, 47, 111 e 144, da Constituição
do Estado de São Paulo. A dicção de tais
dispositivos é a seguinte:
"Art. 5º - São Poderes do
Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário.
Art. 25 - Nenhum projeto de lei
que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos
recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.
Art. 47 - Compete privativamente
ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
I - representar o Estado nas suas
relações jurídicas, políticas e administrativas;
II - exercer, com o auxílio dos
Secretários de Estado, a direção superior
da administração estadual;
Art. 111 - A administração pública direta, indireta ou funcional, de
qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.
Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e
financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição."
A
administração da cidade incumbe ao que, modernamente, chama-se de 'Governo', e que
tem na lei seu mais relevante instrumento,[1] participando
sempre o Poder Legislativo na função de aprovar-desaprovar os atos[2]. Na hipótese de administração ordinária, cabe ao
Legislativo o estabelecimento de normas gerais, diretrizes globais, jamais atos
pontuais e específicos.
No
quadro normativo constitucional, o Legislativo está impedido de elaborar lei
criando gratuidade no transporte coletivo urbano, pois cria obrigação a órgãos
públicos ou o concessionário de tais serviços. Note-se que a gratuidade
determinada redundaria em criar despesas, pois alguém haverá de pagar a
cortesia.
Por
outro lado, a função dos parlamentos, hoje, certamente, é diversa daquela
imaginada pelos iluministas; é a lição dos nossos mais renomados autores:
“No presidencialismo, a separação entre presidente e
Congresso permite que ocorra pertencer aquele a um partido, a maioria deste a
outro, como tantas vezes já sucedeu nos Estados Unidos. Mas normalmente
presidência e maioria parlamentar têm a mesma cor política, o que estabelece
igual vinculação. Na hipótese primeira, ainda cumpre observar, a subordinação
de certo modo ainda existe, criada pelos meios de ação que tem politicamente o
governo sobre o Congresso, e, especialmente, pelas regras constitucionais
restritivas da iniciativa parlamentar, por exemplo, em matéria financeira. Na
verdade, a tendência contemporânea é a de restringir o Parlamento a uma função
de controle, fazendo dele o fiscal do governo. Volta ele assim para o ponto de
partida, já que, na Idade Média, surgiu como órgão de expressão dos desejos e
particularmente dos reclamos dos governados relativamente ao proceder do
governo. De fato, essa tendência foi assinalada por vários autores, como
Loewenstein, Meynaud etc., e
Na
presente ação direta, entendo que o Legislativo somente poderá criar gratuidade
se com isso não fixar atribuições específicas, como no caso dos autos, e ainda
indicar a fonte de custeio, considerando-se que dependerá das disposições
orçamentárias, fixadas pelo Executivo segundo suas possibilidades[4].
Realmente, dentre as funções de governo do Prefeito estão as funções executivas que, no sentido estrito da expressão, compreendem o planejamento, a organização, a direção, o comando, a coordenação e o controle dos serviços públicos (cf. José Afonso da Silva, “O Prefeito e o Município”, 1977, págs. 134/143). A questão dos recursos a serem despendidos na gratuidade determinada diz respeito ao orçamento em cuja elaboração deverá ser objeto de dotação específica.
Efetivamente, a Lei n.º 3.717, de 7 de novembro de 2007, malferiu os princípios da isonomia e razoabilidade (art. 111 da Constituição do Estado), sendo que, ao estabelecer “...gratuidade do transporte coletivo urbano para os integrantes das Forças Armadas Brasileiras que estejam prestando serviço militar obrigatório não remunerado”, também atribuindo funções à administração (art. 3.º) e criou despesas públicas sem previsão de receita.
Qual a razão plausível para somente os integrantes das Forças Armadas serem aquinhoadas com a benesse (transitar em veículos urbanos públicos graciosamente)?
Nota-se, claramente, que a lei em apreço estabelece preferência em favor de alguns e nesse contexto fica claro que a intenção do legislador local foi a de favorecer pessoas; o ato normativo em exame possui destinatários certos.
Diante dessa particularidade presente na lei municipal em apreço, torna-se flagrante a violação do princípio da impessoalidade, que não é senão manifestação típica do princípio da igualdade (Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit., p. 68). Contudo, olvidou-se o legislador de que a Lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar eqüitativamente todos os cidadãos (Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”, Malheiros, São Paulo, 1995, 3.ª ed., p. 10).
Em artigo sobre o princípio da igualdade, Fábio Konder Comparato anota que “a força desse princípio impõe-se não só ao aplicador da lei, na esfera administrativa ou judiciária, mas também ao próprio legislador. Em outras palavras, quando a Constituição consagra a igualdade, ela está proibindo implicitamente, quer a interpretação inigualitária das normas legais, quer a edição de leis que consagrem, de alguma forma, a desigualdade vedada. Ao lado, pois, de uma desigualdade perante a lei, pode haver uma desigualdade da própria lei, o que é muito mais grave.” (Cf. “Precisões sobre os conceitos de lei e de igualdade jurídica”, Editora Revista dos Tribunais, ano 87, v. 750, abril de 1998, pp. 11/19)
Esclarece o jurista que esse vício de inconstitucional desigualdade da própria lei pode ocorrer de duas formas. Haverá, de modo absoluto, uma infração ao princípio de igualdade, quando a lei for editada, explícita ou implicitamente, para regular um só caso individual. Diversamente, a desigualdade será relativa, quando a lei determinar, de modo arbitrário, a diferenciação ou a identificação de situações jurídicas, vale dizer, quando tratar desigualmente os iguais ou igualmente os desiguais (ob. e loc. cits.).
Na esteira desse raciocínio, torna-se forçoso reconhecer que a lei em exame também é incompatível com o princípio da razoabilidade, que pressupõe a adequação entre meios e fins, porquanto o critério eleito pelo legislador, além de ofensivo à isonomia, não guarda nenhuma relação de pertinência lógica ou jurídica com o regime isonômico. Bem a propósito, cabe esclarecer que a razoabilidade não se confunde com a igualdade. Estudando esse assunto, Suzana de Toledo Barros concluiu que, “não raro, a violação ao princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade) vem acompanhada de atentado a outros princípios ou regras constitucionais, mas os fundamentos de cada qual são perfeitamente distinguíveis. É o caso, v.g., de uma restrição desigualitária, em que o legislador, além de impor uma restrição em si mesma desarrazoada, o faz em relação a apenas um grupo de pessoas” (Cf. “O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos fundamentais”, Editora Brasília Jurídica, 1996, p. 73).
Maria
Sylvia Zanella Di Pietro ensina que a razoabilidade
serve de baliza à discricionariedade do legislador que, ao elaborar a lei, não
pode prever restrições irrazoáveis, não necessárias à garantia de cumprimento
das obrigações, em detrimento dos interessados
Assim
sendo, e por entender que ao Legislativo não é dado prover sobre todos os assuntos
por meio de lei, o parecer é pela procedência
da ação, para que seja declarada inconstitucional a Lei n.º 3.717, de 7 de novembro de 2007, do Município de Bebedouro.
São Paulo, 22 de abril de 2008.
MAURÍCIO
AUGUSTO GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA,
no exercício de função delegada
pelo Procurador-Geral de Justiça
[1]
Christian Starck. 'El Concepto de ley en
la constitucion alemana', Madrid: CEC, 1979, pág.73.
[2]
"...O poder governante é que goza, de
fato (e talvez de direito) de uma estabilidade garantida, necessária para a
tradução em atos de um 'indirizzo'. É, em geral, delegatária, também, de
importantes porções da função legislativa. Ao legislativo, sua função torna-se
aquela convalidar-confirmar solenemente o 'indirizzo politico' decidido pelo
Poder Governante revestindo as medidas sob a forma de lei. O bloqueio - com
voto negativo – ao 'indirizzo' do Poder governante, ou a remoção formal deste
ultimo - quando o regime o admite - deve ficar, pelas exigências do modelo,
eventos absolutamente excepcionais. O Legislativo controla o Poder governante
também com outros meios (investigações, comissões parlamentares etc). Provê as
leis para a integração normativa das escolhas feitas no 'indirizzo
governativo'." Giovanni Bognetti, 'In' 'Digesto Delle Discipline Pubblicistiche', p. 376, XI, UTET.
[3]
Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Do Processo
Legislativo. São Paulo: Saraiva, 2001, pág. 271.
[4] Veja-se parecer
do Ministério Público Federal emitido na ADin n.º 737-DF, pelo então Procurador
da República, Dr. Gilmar Ferreira Mendes: 'A submissão dessas posições a regras
jurídicas opera um fenômeno de transmutação, convertendo situações
tradicionalmente consideradas de natureza política em situações jurídicas.
Tem-se, pois, a juridicização do processo decisório, acentuando-se a tensão
entre direito e política (Cf. Krebs, Walter, Freiheitsschutz durch Grundrechte,
JURA, 1988, p. 617 (625). Observe-se que, embora tais decisões estejam
vinculadas juridicamente, é certo que a sua efetivação está submetida, dentre
outras condicionantes, à 'reserva do financeiramente possível' ("Vorbehalt
des finanziell Möglichen"). Nesse sentido, reconheceu a Corte
Constitucional alemã, na famosa decisão sobre "numerus clausus" de
vagas nas universidades ("numerus-clausus Entscheidung"), que
pretensões destinadas a criar os pressupostos fáticos necessários para o exercício
de determinado direito estão submetidas à "reserva do possível"
("Vorbehalt des Möglichen") (BVerfGE 33, 303 (333).