Requerente: Prefeito Municipal de Bebedouro
Excelentíssimo Senhor Desembargador
Presidente,
Trata-se de ação
ajuizada pelo Prefeito Municipal de Bebedouro, visando a declaração de
inconstitucionalidade da Lei Complementar n. 54, de 10 de dezembro de 2007, do mesmo Município, que “ Acrescenta dispositivos
à Lei n. 2.131, de 26 de setembro e dá outras providências”. A inicial menciona
a violação do princípio da independência e harmonia entre os poderes e cria
despesas sem indicação de recursos para atender aos encargos dela decorrentes,
tudo de forma a afrontar o art. 61 da Lei Orgânica do Município de Bebedouro, o
art. 61,§1º, II, “e”, da Constituição Federal, os artigos 5º , 25, 144 e 150, da Constituição do Estado de
São Paulo.
O
pedido liminar foi indeferido, consoante decisão de fls. 146/147. A Câmara
Municipal prestou informações às fls. 102/104,
pleiteando a improcedência do pedido. O Procurador-Geral do Estado foi
citado e se manifestou às fls. 160/162.
É
o relato do necessário.
O
pedido merece ser julgado procedente.
Trata-se
de lei municipal, cuja origem é de autoria parlamentar.
No Brasil o governo municipal
é de funções divididas. As funções administrativas foram conferidas ao
Prefeito, enquanto que as funções legislativas são de competência da Câmara.
Administrar significa aplicar a lei ao caso concreto. Assim, no exercício de
suas funções, o Prefeito é obrigado a observar as normas gerais e abstratas
editadas pela Câmara, em atenção ao princípio da legalidade, a que está pautada
toda atuação administrativa, na forma do art. 111 da Carta Paulista.
Esse mecanismo de repartição de
funções, incorporado ao nosso ordenamento constitucional, e que teve como
principal idealizador o filósofo Montesquieu, impede a concentração de poderes
num único órgão ou agente, o que a
experiência revelou conduzir ao absolutismo[1].
Daí ser vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência
privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira.
Tamanho
significado apresenta esse sistema de separação das funções estatais, em nosso
ordenamento jurídico, que a própria Constituição, no seu art. 60, § 4.º, inciso
III, cuidou de incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente
que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
aboli-lo.”
Vistos esses aspectos, tem-se no caso
sob exame que a Câmara de Vereadores de Bebedouro aprovou a Lei Complementar n.
54, de 10 de dezembro de 2007, derivada de projeto de iniciativa parlamentar, que
alterou os arts. 65 e 67, da Lei n. 2.131, de 26 de setembro de 1991 (Código de
Postura do Município de Bebedouro), acrescentando o §2º, no art. 65 e o inciso
VI, no art. 67.
Essa lei, porém, malgrado os elevados
propósitos que nortearam a sua edição, não reúne a mínima condição de subsistir
na ordem jurídica vigente, uma vez que, a pretexto de disciplinar assunto de
interesse local, a Câmara Municipal de Bebedouro acabou por interferir na
esfera de competência do Executivo, acarretando, tal iniciativa, o
desequilíbrio no delicado sistema de relacionamento entre os poderes
municipais.
Com efeito, é irrecusável a competência da Câmara para
legislar sobre os assuntos de interesse local, mas desde que observados
os limites constitucionais que decorrem, basicamente, da necessidade de
preservar-se a convivência pacífica dos poderes políticos, entre os quais não
existe nenhuma relação de hierarquia e subordinação, mas sim de independência e
harmonia, em face do contido no art. 5.º, da Constituição do Estado de São
Paulo.
Como já visto inicialmente, a
administração municipal incumbe ao Prefeito, que é quem define as prioridades
da sua gestão, as políticas públicas a serem implementadas e os serviços
públicos que serão prestados à população. Nessa seara, a Câmara não tem como
impor suas preferências, podendo quando muito formular indicações, mas
não sujeitar aquela autoridade ao cumprimento de lei que, longe de fixar uma
regra geral e abstrata, constitui verdadeira ordem ou comando, para que se faça
algo.
Logo, se a iniciativa em exame
for considerada válida – o que corresponde, na prática, a uma tentativa de
restabelecer-se o sistema que vigorava ao tempo das Comunas -, ocorrerá
uma hipertrofia do Legislativo,
que sempre poderá impor suas vontades ao Executivo, por meio da edição de leis[2],
criando uma verdadeira relação de subordinação e hierarquia entre os poderes,
incompatível com o sistema adotado pela Constituição em vigor, o qual se baseia
na independência e harmonia entre os poderes, cuja observância é vital
para a preservação do Estado de Direito.
Na realidade, o diploma legal ora
questionado é ‘lei apenas em sentido formal’,
porquanto não encerra o conteúdo de uma norma abstrata ou teórica, instituída
em caráter permanente e de generalidade. As leis formais não se mostram regras
jurídicas, mas simples atos administrativos dos poderes legislativos,
indicando-se decisões particulares, tais como a lei orçamentária, as leis de
autorização ou as leis que concedem favores especiais a determinadas pessoas.
São leis que atendem a casos particulares, de natureza por vezes executiva, ou
reguladoras de situações especiais. Bem por isso, aliás, é que são consideradas
leis impróprias (Cf. DE PLACIDO E SILVA,
“Vocabulário Jurídico”, ed. Forense, Rio de Janeiro, Volume III, 1984, p. 67).
Na ordem constitucional
vigente, como anotado em tópico precedente, não existe a mínima possibilidade
de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por intermédio da edição
de leis. Em relação a esse aspecto, aliás, não paira nenhuma controvérsia, uma vez que
a atual Constituição é suficientemente clara ao atribuir ao Prefeito a
competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a
direção superior da administração municipal (CE, art. 47, inciso II) e a
praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE., art.
47, inciso XIV).
Bem por isso, ELIVAL DA SILVA RAMOS
adverte que: “Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da
separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu
bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as
leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis
meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes
legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração,
fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas
ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir
expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de
inconstitucionalidade substancial.” (“A Inconstitucionalidade das Leis -
Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).
Nesse contexto, a aprovação de
lei de iniciativa parlamentar, pela Câmara Municipal, que disciplina o Comércio
Ambulante só pode ser interpretada como atentatória ao postulado básico da independência
e harmonia entre os poderes (CE., art. 5.º, caput).
Em suma, a Câmara Municipal de Bebedouro
não pode arrogar a si a competência para criar obrigações para serem executadas
pela própria administração direta. Disso resulta a conclusão de que referido
ato legislativo é incompatível com o princípio da independência e harmonia
entre os poderes.
No
entanto, não vislumbro ofensa ao art. 25, da Constituição do Estado de São
Paulo, na medida em que a nova lei, não criou novas despesas, tendo em vista
que a obrigatoriedade da fiscalização dos “ambulantes”, já era anteriormente
prevista.
Concluo,
pois, pela afronta aos artigos 5º e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.
Em face do exposto, aguardo o julgamento de procedência
desta ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei
Complementar n. 54, de 10 de dezembro de 2007, do Município de Bebedouro.
São Paulo, 02 de junho
de 2008.
MAURÍCIO AUGUSTO GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA
no exercício de função delegada
pelo Procurador-Geral de Justiça
[1] Em sua magistral obra “Esprit des lois”,
Montesquieu formulou a seguinte advertência: “tudo estaria perdido se o
mesmo homem ou o mesmo corpo exercesse esses três poderes: o de fazer as leis,
o de executá-las e o de julgar.”
[2]
R. Carré de Malberg distingue Estado legal e Estado de Direito: “El Estado
de derecho se establece simple y únicamente en interés y para la salvaguardia
de los ciudadanos; sólo tiende a asegurar la protección de su derecho o de su
estatuto individual. El régimen del Estado legal está orientado en otra
dirección. Se relaciona con un concepto político referente a la organización
fundamental de los poderes, concepto según el cual debe la autoridad
administrativa, en todos los casos y respecto a todas las materias, subordinarse
al órgano legislativo, en el sentido de que no podrá actuar sino en
ejecución o por autorización de una ley. Esta subordinación no se reduce desde
luego a aquellos actos de administración que producen efectos de orden
individual respecto a los administrados, sino que se extiende, en principio, a
todas las medidas de administración, hasta aquellas – reglamentarias o
particulares – que, sin tocar al derecho de los administrados, conciernen
únicamente al funcionamiento interno de los servicios administrativos y sólo
deben dejar sentir sus efectos en el interior del organismo administrativo.”
(Teoría General del Estado, Traducción de José Lión Depetre, Facultad de
Derecho/UNAM e Fondo de Cultura Económica, México, 2001, p. 451)