AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE N.º 159.062-0/8-00
Requerente :
Prefeito do Município de Mauá
Requerida :
Câmara Municipal de Mauá
Objeto :
Lei n.º 2.733, de 27 de setembro
de 1996
Ementa: Lei municipal de iniciativa parlamentar que autoriza
o Prefeito Municipal a firmar Acordo de Relações do Trabalho com sindicato de
servidores. Imposição de atribuições específicas constantes no anexo da lei
municipal. Criação de despesas sem indicar a fonte dos recursos. Matéria afeta à
administração pública. Exclusividade de iniciativa do Prefeito Municipal.
Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo
Órgão Especial
Senhor
Desembargador Relator
O
Prefeito Municipal de Mauá propôs esta
ação direta objetivando a declaração
de inconstitucionalidade da Lei n.º 3.733, de 27 de setembro de 1996, que ''autoriza o Poder Executivo a firmar Acordo
de Relações do Trabalho”. A Câmara Municipal não forneceu suas informações
e a D. Procuradoria-Geral do Estado não se manifestou sobre o mérito (fls. 55/57).
Houve o deferimento liminar do pedido (fls. 43/47).
Entendemos
que a ação deva ser julgada procedente.
Há
que se aduzir desde logo que a Lei em questão é de iniciativa de vereador, tendo sido sancionada pelo Executivo, mas isso não afasta o vício, pois vislumbramos
afronta aos artigos 5.º, 47, incs. IV, XI e XVII, e 144, da Constituição do
Estado de São Paulo a saber:
"Art. 5º - São Poderes do Estado,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art. 24 - A
iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou
Comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de
Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos
previstos nesta Constituição (...)
§ 2º - Compete,
exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham
sobre:
1 - criação e
extinção de cargos, funções ou empregos
públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da
respectiva remuneração;
(...)
4 - servidores públicos do Estado, seu
regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis,
reforma e transferência de militares para a inatividade;
(...)
Art. 25 - Nenhum projeto de lei que implique a
criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios
para atender aos novos encargos.
Art. 47 - Compete privativamente ao Governador,
além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
I - representar o Estado nas suas relações
jurídicas, políticas e administrativas;
II - exercer, com o auxílio dos Secretários de
Estado, a direção superior da
administração estadual;
Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e
financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição."(g.n.)
A
administração da cidade incumbe ao que, modernamente, chama-se de 'Governo', e que
tem na lei seu mais relevante instrumento,[1] participando
sempre o Poder Legislativo na função de aprovar-desaprovar os atos[2].
Na hipótese de administração ordinária, cabe ao Legislativo o estabelecimento
de normas gerais, diretrizes globais, jamais atos pontuais e específicos,
máxime os relacionados com os servidores públicos e suas vantagens, ainda que
tenha ocorrido o sanciona mento pelo Prefeito Municipal. Hely Lopes Meirelles
disserta sobre o assunto, no sentido por nós defendido:
“...a
Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e
aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por
inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos
afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar
prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode
delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça”[3]
Por
outro lado, a função dos parlamentos, hoje, certamente, é diversa daquela
imaginada pelos iluministas; é a lição dos nossos mais renomados autores:
“No presidencialismo, a separação entre presidente e
Congresso permite que ocorra pertencer aquele a um partido, a maioria deste a
outro, como tantas vezes já sucedeu nos Estados Unidos. Mas normalmente
presidência e maioria parlamentar têm a mesma cor política, o que estabelece
igual vinculação. Na hipótese primeira, ainda cumpre observar, a subordinação
de certo modo ainda existe, criada pelos meios de ação que tem politicamente o
governo sobre o Congresso, e, especialmente, pelas regras constitucionais
restritivas da iniciativa parlamentar, por exemplo, em matéria financeira. Na
verdade, a tendência contemporânea é a de restringir o Parlamento a uma função
de controle, fazendo dele o fiscal do governo. Volta ele assim para o ponto de
partida, já que, na Idade Média, surgiu como órgão de expressão dos desejos e
particularmente dos reclamos dos governados relativamente ao proceder do
governo. De fato, essa tendência foi assinalada por vários autores, como
Loewenstein, Meynaud etc., e
No
mesmo sentido, segundo José Adércio
Leite Sampaio:
"Não
se admite que venha o Legislativo a prever a criação de diversos órgãos, fundos
e entidades públicos, como centrais de abastecimento para armazenagem,
conservação e comercialização de
produtos agrícolas, empresa de administração portuária, conselho de transporte,
delegacias especializadas de atendimento à mulher ou estabelecimento
ambulatório, mesmo considerando que a efetividade desse tipo de norma dependa
sempre de lei ou providêncide iniciativa do próprio Governador (Supremo Tribunal Federal. Pleno.
ADInMC n. 827-AP. Rel. Min. Paulo Brossard RTJ v.
148, t. 3, p. 693; ADInMC n. l. 275-SP. Rel. Min. Marco Aurélio. RTJ \: 162, t. 3, p. 868; ADInMC n.
L. 391 -SP. Rel. Min. Celso de Mello. DJ
l de 28/11/1997, p. 62.216) tampouco
instituir um conselho destinado
ao controle e à fiscalização do sangue
(Supremo Tribunal Federal. Pleno. ADInMC n. l .275-SP. Rel. Min. Marco Aurélio. RTJ v. 162, t. 3, p. 868-870). Assim também se mostra
inconstitucional estipular a criação de conselho dotado de diversificada
composição e representatividade, destinado a orientar os órgãos de comunicação
social do Estado, suas fundações e entidades sujeitas ao seu controle (Supremo
Tribunal Federal. Pleno. ADInMC n. 821 -RS. Rel. Min. Octavio Galotti. DJ
de 7/5/1993, p. 8.327), tanto
quanto dispor sobre a organização,
funcionamento de certas entidades ou estatuto
de seus servidores (Supremo Tribunal Federal. Pleno. ADInMC n. 282-MT. Rel.
Sydney Sanches. RTJ v. 161, t. 2, p. 384-402; atribuindo à Defensoria Pública
autonomia administrativa).”[5](gn.)
Na
verdade, a iniciativa das leis representa, sobretudo, um momento de escolha
política, seja da matéria, seja dos interesses suscetíveis de tutela,
orientando-se, portanto, a determinadas finalidades e a um específico objeto.
Quando a competência para o impulso não siga a tendência à dispersão e tenha
sido reservada, excepcionalmente, a certos órgãos, isso significa que é deles a
responsabilidade de formular as propostas de transformação do ordenamento normativo.
É
claro que a reserva do poder de iniciativa das leis a um órgão exterior ao
Legislativo produz graves conseqüências sobre toda a disciplina do processo
legislativo: tal orientação constitucional reduz drasticamente os amplos
poderes de escolha dos órgãos parlamentares. Todavia, é o próprio ordenamento
constitucional que reserva um feixe de matérias cuja iniciativa de lei pertence
ao Chefe do Executivo, sob pena de inconstitucionalidade. É o caso dos autos. Violou o referido ato
normativo, entre outros, o princípio da reserva de administração, que, nos
dizeres do Min. Celso de Mello (AÇAO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N.
2.364-1 ALAGOAS):
“A reserva de administração --
segundo adverte J. J. GOMES CANOTILHO ("Direito
Constitucional", p. 810/811, 5a ed. , 1991, Almedina, Coimbra)
-- constitui limite material à intervenção normativa do
Poder Legislativo, pois, enquanto princípio fundado na separação orgânica e na
especialização funcional das instituições do Estado, caracteriza-se pela identificação,
no sistema constitucional, de um
"núcleo funcional (...) reservado à administração contra as
ingerências do parlamento", por envolver matérias, que, diretamente
atribuídas à instância executiva de
poder, revelam-se insuscetíveis de deliberações concretas por parte do
Legislativo, desvestido, portanto, sob tal perspectiva, de qualquer
prerrogativa que lhe permita praticar, com repercussão sobre os
servidores públicos vinculados
ao Poder Executivo, verdadeiros atos administrativos
referentes à investidura funcional ou à sua eventual invalidação.”
A
lei que regula os benefícios concedidos a servidores públicos não pode provir,
pois, do Legislativo, como reconhece o Supremo Tribunal Federal na ADI nº.
2.720-ES, relatada pelo Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, julgada em 20 de março de
2003, pelo Tribunal Pleno, publciada no Diário da Justiça de 25 de abril de
2003, pág. 32, e no Ementário Vol 2109-01, pág, 191, assim ementado:
“EMENTA: Processo legislativo: reserva de iniciativa
ao Poder Executivo: dos projetos de leis que disponham sobre a criação ou
extinção de órgãos da administração pública: inconstitucionalidade da lei de
iniciativa parlamentar, instituidora de novos órgãos integrantes da
Administração Pública Estadual, com a criação de novas despesas para o Estado.”
Assim
sendo, e por entender que ao Legislativo não é dada a iniciativa de lei em
matéria de regime ou vantagens de servidores públicos, matéria cometida ao
Executivo, o parecer é pela procedência da
ação, para que seja declarada inconstitucional a Lei n.º 2.733, de 27 de setembro de 1996, do Município de Mauá.
São Paulo, 20 de abril de 2008.
MAURÍCIO
AUGUSTO GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA,
no exercício de função delegada
pelo Procurador-Geral de Justiça
[1] Christian Starck.
'El Concepto de ley en la constitucion alemana', Madrid: CEC, 1979,
pág.73.
[2] "...O poder governante é que goza, de fato (e talvez de direito) de
uma estabilidade garantida, necessária para a tradução em atos de um
'indirizzo'. É, em geral, delegatária, também, de importantes porções da função
legislativa. Ao legislativo, sua função torna-se aquela convalidar-confirmar
solenemente o 'indirizzo politico' decidido pelo Poder Governante revestindo
as medidas sob a forma de lei. O bloqueio - com voto negativo – ao 'indirizzo'
do Poder governante, ou a remoção formal deste ultimo - quando o regime o
admite - deve ficar, pelas exigências do modelo, eventos absolutamente
excepcionais. O Legislativo controla o Poder governante também com outros meios
(investigações, comissões parlamentares etc). Provê as leis para a integração
normativa das escolhas feitas no 'indirizzo governativo'." Giovanni Bognetti, 'In' 'Digesto Delle Discipline Pubblicistiche', p. 376, XI, UTET.
[3] MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 7.º ed., São Paulo: Malheiros, 1990,
págs. 544/545.
[4] Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Do Processo Legislativo. São Paulo:
Saraiva, 2001, pág. 271.
[5] SAMPAIO. José Adércio Leite. A Constituição Reinventada pela Jurisdição
Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, pág. 490.