AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

 

Processo nº160.026-0/7-00

Autor: Prefeito Municipal de Franca

Objeto: Lei Municipal 6355, de 09 de maio de 2005, de Franca.

 

Ementa: 1)Lei Municipal. Iniciativa parlamentar. Previsão de reserva de vagas para estagiários, na administração municipal, portadores de necessidades especiais. Vedação de ingresso, como estagiários, de alunos que não estejam no 5º ano do ensino superior. 2)Matéria reservada à gestão administrativa. Violação do princípio da separação de poderes (art.5º, 47 II e XIV, 144 da Constituição do Estado). 3)Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

         Tratam estes autos de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Franca, tendo como alvo a Lei Municipal 6355, de 09 de maio de 2005, daquele Município, sob a alegação de que: (a) houve violação da regra da separação de poderes; (b) acarretará dificuldades administrativas. Apontou como parâmetros de controle os seguintes dispositivos da Constituição Paulista: art.5º §§1º e 2º; art.19 VIII; art.24 §2º 1 e 2; art.47 II; art.144.

 

         Deferida a liminar (fls.102), foi citado o Senhor Procurador-Geral do Estado, que declinou da defesa do ato normativo (fls.120/122).

 

         A Presidência da Câmara Municipal de Franca prestou informações (fls.111/117), sustentando a legitimidade constitucional da lei.

 

         Este é o breve relato do que consta dos autos.

 

1)Do ato normativo impugnado.

 

         A Lei 6355, de 09 de maio de 2005, de autoria parlamentar, que “acrescenta parágrafos à Lei 4304, de 10 de maio de 1993, que autoriza o Executivo Municipal a celebrar convênios sobre estagiários e dá outras providências, criando reserva de vagas de estagiários para pessoas deficientes no serviço municipal”, tem a seguinte redação:

 

“Art.1º. Fica acrescentado ao art.1º da Lei 4304, de 10 de maio de 1993, que autoriza o Executivo a celebrar convênios sobre estagiários e dá outras providência, os seguintes parágrafos:

 

§1º. (omissis)

 

...

 

§4º. Ficam reservados 10% (dez por cento) das vagas oferecidas para estagiários no Executivo Municipal para serem preenchidas, preferencialmente, por estudantes portadores de deficiência.

 

§5º. Os estagiários de que trata esta Lei somente admitirão alunos do último ano do curso superior previsto.

 

Art.2º. As despesas com a execução da presente Lei, correrão por conta de dotações orçamentárias próprias.

 

Art.3º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”.

 

                Contudo, em que pesem as relevantes intenções de cunho social na iniciativa legislativa, o ato normativo impugnado é verticalmente incompatível com nossa ordem constitucional.

 

2)Violação da regra da separação de poderes.

 

         A essência da inovação trazida ao mundo jurídico pela Lei 6355/05, de Franca, reside em dois aspectos: (a) reserva de 10% de vagas oferecidas para estagiários, no âmbito da administração local, para estudantes portadores de necessidades especiais; (b) a limitação do estágio a estudantes do último ano do curso superior.

 

         Nesse contexto, embora a lei não trate de matéria atinente à iniciativa reservada do Chefe do Executivo, nos termos do art.24 §2º da Constituição Bandeirante, ela se traduz em quebra da regra da separação de poderes, contida na Constituição do Estado, nos art.5º, e 47 II e XIV, aplicáveis aos Municípios por força do art.144 da referida Carta.

 

         Em primeiro lugar, com a devida vênia, não nos parece correto afirmar que a hipótese examinada nestes autos seja de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo.

 

         As matérias cuja iniciativa legislativa cabe apenas ao Executivo são expressamente previstas no art.24 da Constituição Paulista, entre as quais não se encontra aquela tratada no ato normativo aqui examinado.

 

         Ademais, já pacificou o E. STF o entendimento de que as hipóteses de iniciativa reservada, referindo-se a direito estrito, devem ser interpretadas restritivamente (Nesse sentido, v.g.: MS 22.690, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-06).

 

         Entretanto, no caso em exame houve violação do princípio da separação de poderes.

 

         É ponto pacífico na doutrina bem como na jurisprudência que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

 

         O legislador municipal, na hipótese analisada, acolheu iniciativa parlamentar, impondo ao Poder Executivo a reserva de percentual de vagas para estagiários, na administração local, para pessoas portadoras de necessidades especiais, limitando ainda a possibilidade de realização do estágio a alunos do último ano do curso superior.

 

         Em que pese a relevante intenção do parlamentar que apresentou originariamente referida propositura, o fato é que ela interfere no âmbito da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional.

 

         Referido diploma, na prática, criou obrigação para a administração local, invadindo a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

 

         Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

 

         Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

 

         Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

 

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que "dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

 

         Ademais, em casos como o presente, esse E. Tribunal de Justiça tem reconhecido a inconstitucionalidade de leis por violação ao art.25 da Constituição Estadual, em razão da ausência de indicação de recursos disponíveis para o pagamento da despesa criada (ADINs ns. 18.628-0, 13.796-0, 38.249-0, 36.805.0/2, 38.977.0/0).

 

3)Conclusão.

 

         Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal 6355, de 09 de maio de 2005, de Franca.

 

 

São Paulo, 15 de abril de 2008.

 

 

 

 

 

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça