AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

 

Processo nº160.034-0/3-00

 

Autor: Prefeito Municipal de Franca

Objeto: Lei Municipal 6481, de 05 de dezembro de 2005, de Franca.

 

Ementa: 1)Lei Municipal. Iniciativa parlamentar. Imposição de averbação, nos carnês de IPTU, de informações relativas ao serviço de limpeza pública. 2)Matéria reservada à gestão administrativa. Violação do princípio da separação de poderes (art.5º, 47 II e XIV, 144 da Constituição do Estado). 3)Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

 

         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Franca, tendo como alvo a Lei Municipal 6481, de 05 de dezembro de 2005, daquele Município, fruto de iniciativa parlamentar, argumentando o autor, em síntese, no sentido de que: (a) teria ocorrido quebra do princípio da separação de poderes; (b) há reserva de iniciativa, relacionada à organização administrativa. Aponta como parâmetros de controle, portanto, os seguintes artigos da Constituição Paulista: art.5º; 19 VIII; 24 §2º 1 e 2; 47 II e 144.

 

         Foi deferida a liminar, determinando-se a suspensão da eficácia do ato impugnado (fls.107/111).

 

         A Presidência da Câmara Municipal prestou informações (fls.119/126), sustentando a legitimidade constitucional da lei impugnada.

 

         Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa da norma (fls.130/132).

 

         Este é breve relato do que consta dos autos.

 

1)Do ato normativo impugnado.

 

         Lei Municipal 6481, de 05 de dezembro de 2005, de Franca, de iniciativa parlamentar que, conforme respectiva rubrica, “estabelece norma para a fiscalização pela população dos serviços públicos de limpeza urbana”, tem o seguinte teor:

 

“Art.1º. O direito da população à informação, à fiscalização e ao acompanhamento da execução dos serviços públicos de limpeza urbana será exercido pela população através da disponibilização de detalhamento inserido graficamente no carnê de cobrança do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU, contendo, no mínimo, os seguintes esclarecimentos:

 

I – dias e horários da semana em que ocorre a coleta de lixo domiciliar na rua em que o imóvel se localiza;

 

II – dias, horários e freqüência da varrição da rua em que o imóvel se localiza;

 

III – número de telefone público para obtenção de informações e apresentação de reclamações a respeito do serviço público de limpeza urbana, coleta e varrição do lixo.

 

Art.2º. As despesas para a consecução da presente lei correm à conta de dotações orçamentárias próprias.

 

Art.3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação”.

 

 

                Entretanto, em que pese a relevante intenção associada à propositura legislativa que resultou na edição da lei (acesso a informações relativas ao serviço de limpeza pública), esta é verticalmente incompatível com nossa sistemática constitucional, como será visto a seguir.

 

2)Quebra da regra da separação de poderes.

 

         A lei em exame, a propósito de facilitar a fiscalização do serviço público de limpeza urbana, impôs ao Poder Executivo Municipal a necessidade de aposição, nos carnês de IPTU, de informações atinentes ao cronograma e detalhes das atividades na realização daquele serviço público.

 

         Nesse contexto, embora a lei não trate de matéria atinente à iniciativa reservada do Chefe do Executivo, nos termos do art.24 §2º da Constituição Bandeirante, ela se traduz em quebra da regra da separação de poderes, contida na Constituição do Estado, nos art.5º, e 47 II e XIV, aplicáveis aos Municípios por força do art.144 da referida Carta.

 

         Em primeiro lugar, com a devida vênia, não nos parece correto afirmar que a hipótese examinada nestes autos seja de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo.

 

         As matérias cuja iniciativa legislativa cabe apenas ao Executivo são expressamente previstas no art.24 da Constituição Paulista, entre as quais não se encontra aquela tratada no ato normativo aqui examinado.

 

         Ademais, já pacificou o E. STF o entendimento de que as hipóteses de iniciativa reservada, referindo-se a direito estrito, devem ser interpretadas restritivamente (Nesse sentido, v.g.: MS 22.690, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-06).

 

         Entretanto, no caso ora analisado houve violação do princípio da separação de poderes.

 

         É ponto pacífico na doutrina bem como na jurisprudência que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

 

         O legislador municipal, na hipótese analisada, acolheu iniciativa parlamentar, impondo ao Poder Executivo medidas concretas relacionadas ao gerenciamento do serviço público, em especial, a disponibilização de informações relativas à limpeza pública, para facilitação de sua fiscalização pelos munícipes.

 

         Em que pese a relevante intenção do parlamentar que apresentou originariamente referida propositura, o fato é que ela interfere no âmbito da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional.

 

         Note-se que: (a) decidir quais as informações que devem constar em carnê relativo ao IPTU é providência que deve decorrer de deliberação da administração pública, e não de imposição legal, até mesmo prescindível esta na hipótese; (b) quando o legislador, a pretexto de legislar, assume o papel do administrador, está a extrapolar no exercício de suas competências constitucionais.

 

         Referido diploma, na prática, criou obrigação para a administração local, invadindo a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

 

         Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

 

         Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

 

         Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

 

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

 

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que "dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

 

         Note-se também que, como demonstrou o autor e afirmou o Sr. des. Palma Bisson, i. relator da presente ação direta, na ADI 94.356-0/7 (j. 18.06.2003, rel. des. Ruy Camilo) foi declarada a inconstitucionalidade de lei do município de Guarulhos em situação análoga à destes autos, valendo transcrever a ementa do referido julgado:

 

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal 5777 de 8 de março de 2002 que, nos dispositivos questionados (art.2º e incisos e art.3º, § único), impõem ao Executivo o dever de fixar dias e horários para a prestação de serviços públicos de coleta de lixo domiciliar e varrição de vias públicas e ainda o de divulgar tais informações no carnê do IPTU e jornais locais – matéria que diz respeito ao gerenciamento da prestação de serviços de iniciativa exclusiva do Executivo. Ação procedente.”

 

         Ademais, em casos como o presente, esse E. Tribunal de Justiça tem reconhecido a inconstitucionalidade de leis por violação ao art.25 da Constituição Estadual, em razão da ausência de indicação de recursos disponíveis para o pagamento da despesa criada (ADINs ns. 18.628-0, 13.796-0, 38.249-0, 36.805.0/2, 38.977.0/0).

 

3)Conclusão.

 

         Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal 6481, de 05 de dezembro de 2005, de Franca.

 

 

São Paulo, 16 de abril de 2008.

 

 

 

 

 

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça