AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

Processo nº 160.036-0/2-00

Requerente: Prefeito Municipal de Franca

Objeto: Lei nº 6.906, de 20 de agosto de 2007

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

 

Ementa: 1)Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal que cria obrigação para o Poder Público Municipal (inclusão do estudo de temas transversais no currículo da rede municipal de ensino). Lei de iniciativa parlamentar. 2)Violação do princípio da separação de poderes (art.5º, 37, 47 II e XIV, e 144 da Constituição Estadual). 3) Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

                                                         Trata-se de ação ajuizada pelo Prefeito Municipal de Franca, visando a declaração de inconstitucionalidade da Lei 6.906, de 20 de agosto de 2007, do mesmo Município, que “Institui o Programa Estudos do Estatuto da Criança e do Adolescente nas escolas da rede municipal de ensino”.

 

                                                         O pedido liminar foi deferido, consoante demonstra a decisão de fl. 124/126. Citado, o Procurador-Geral do Estado não enfrentou o mérito da demanda, por versar matéria de interesse local (fls. 131/133). A Câmara Municipal prestou informações às fls. 138/145, na qual afirma ser incabível o controle concentrado entre lei municipal e a Constituição Federal. No mérito, pleiteou a improcedência do pedido.

 

                                                         É o relato do necessário.

                                                          

                                                         A matéria preliminar merece ser rejeitada. Realmente, o sistema constitucional não permite se faça o controle concentrado de normas municipais diretamente com a Constituição da República – art. 125, § 2º. No caso em exame isso não está ocorrendo.

 

                                                         Segundo consta da inicial, o requerente alega haver crise de constitucionalidade entre a legislação local e a Constituição Estadual – fl. 04. Logo, não há qualquer irregularidade que esteja a impedir o julgamento do mérito da presente demanda. Pelo contrário, a postulação encontra-se em plena consonância com o sistema de controle direto de normas, tal como prevê os arts. 125, § 2º, da CF e 74, VI, da CE.

 

                                                         No mérito, o pedido merece ser julgado procedente.

 

                                                         Segundo constou da vestibular, referida lei originou-se de projeto de autoria parlamentar. Após ser aprovado pela Câmara Municipal, o mesmo foi encaminhado ao Prefeito que o vetou. Porém, esse veto foi derrubado na Câmara Municipal, e a promulgação foi levada a termo pelo Vereador-Presidente.                                                                                                                    

                                                         Ocorre que, o gerenciamento da prestação de serviços públicos (aí incluída a Educação) no município é competência do Poder Executivo, único dos poderes que detém instrumentos e recursos próprios para avaliar a conveniência e oportunidade da administração pública.  Assim sendo, por inserir vício de iniciativa, a lei é inconstitucional por ofender dispositivos da Constituição do Estado de São Paulo.

 

                                                         Através dessa legislação foi criado o “Programa Estudos do Estatuto da Criança e do Adolescente nas escolas da rede municipal de ensino”, com o objetivo estimular o conhecimento das crianças e adolescentes sobre medidas que garantam os direitos de cidadania da população infanto-juvenil, inseridos no Estatuto da Criança e do Adolescente -ECA (art. 1º). Além disso, o legislador impõe a obrigação dessas atividades serem desenvolvidas com a participação dos educandos e seus familiares, dos diretores, professores, funcionários e profissionais que trabalham com as causas da infância e juventude (§ 1º). Trata-se evidentemente de matéria referente à administração pública, cuja gestão é de competência do Executivo, pois a ela cabe definir os conteúdos curriculares, inclusive considerando as diretrizes curriculares nacionais.

 

                                                         Com efeito, a edição dos parâmetros curriculares nacionais ou as diretrizes curriculares, é da competência do Conselho Nacional de Educação, com homologação pelo Ministro da Educação, sendo veiculada por resolução. Como já mencionamos, essa é a forma pela qual as diretrizes curriculares são veiculadas e, aí sim, obrigando a todos os sistemas de educação (federal, estaduais e municipais), tal como determinado na Lei de Diretrizes e Bases (incs. IV e VIII do art. 9º) e alínea “c”, do § 2º, do art. 9º, da Lei n. 4.024/61, com a redação dada pela Lei n. 9.131/95, que trata do Conselho Nacional de Educação.

 

                                                         Sob o aspecto prático, deve ser ressaltado que se o Legislativo produzir leis determinando a inclusão de disciplinas ou temas transversais na educação básica, pode chegar ao ponto de faltar espaço para aquelas cujo conhecimento é obrigatória, tais como Português, Matemática, Geografia, Artes, etc.

 

                                                         Nesse sentido que a iniciativa legislativa, conquanto possa ter bons propósitos, não encontra sustentação na Constituição Estadual e nem na Carta Maior, pois invade seara própria do Executivo. Nesse particular, o ato normativo passou a impor obrigação à Administração Pública local, interferindo diretamente na gestão administrativa.

 

                                                         Considerada a iniciativa parlamentar que culminou na edição do ato normativo em epígrafe, é visível que o Poder Legislativo municipal invadiu a esfera de atribuições do Chefe do Poder Executivo.

 

                                                         Ao Legislativo cabe a função de editar atos normativos de caráter geral e abstrato. Ao Executivo cabe o exercício da função de gestão administrativa, que envolve atos de planejamento, direção, organização e execução.

 

                                                         Atos que, na prática, representam invasão da esfera executiva pelo legislador, devem ser invalidados em sede de controle concentrado de normas, na medida em que representam quebra do equilíbrio assentado nos art. 5º, art. 37 e art. 47 incisos II e XIV, todos da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por força do art.144 da referida Carta.

 

                                                         Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário.”[1]

                                                        

                                                         Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis de efeitos concretos, ou que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os Poderes.

 

                                                         Essa é exatamente a hipótese verificada nos autos, na medida em que os dispositivos destacados acima imputaram providências concretas à Administração Municipal. Mutatis mutandis, já proclamou esse Egrégio Plenário que:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito”  (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

 

                                                         Por último, oportuno observar que a adoção das providências descritas na lei, certamente traria despesas para o erário, pois exige a presença de profissionais que trabalham com as causas da infância e juventude (§ 1º do art. 1º). Em casos similares esse E. Tribunal de Justiça tem reconhecido a inconstitucionalidade de leis por violação ao art.25 da Constituição Estadual, em razão da ausência de indicação de recursos disponíveis para fazer frente às despesas criadas (ADINs ns. 18.628-0, 13.796-0, 38.249-0, 36.805.0/2, 38.977.0/0).

 

                                                         Resta dizer que este Egrégio Tribunal de Justiça, na ADI nº 152.965-0/8-00, da relatoria do eminente Desembargador PENTEADO NAVARRO, julgada em 5 de março de 2008, assim decidiu:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei nº. 6.509/06 do Município de Franca, dispondo sobre a criação do Programa ‘Férias Ativas’, a ser desenvolvido no período de recesso escolar e de férias nas escolas municipais. Norma de iniciativa parlamentar. Matéria relativa à organização administrativa e execução de serviços públicos. Atribuição exclusiva do Prefeito. Juízo de oportunidade e conveniência. Despesas não previstas. Ofensa ao princípio da separação de poderes. Ação julgada procedente.”

 

                                                         Concluo, pois, pela afronta aos arts. 5º, art. 37 e art. 47 incisos II e XIV; e 144, da Constituição Bandeirante.

 

                                                         Nestes termos, rejeitada a matéria preliminar suscitada pela Câmara de Vereadores, opino pela procedência do pedido para o fim de se declarar inconstitucional a Lei 6.906/07, do Município de Franca.

São Paulo, 14 de abril de 2008.

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

Procurador de Justiça,

no exercício de função delegada pelo

Procurador-Geral de Justiça



[1] MEIRELLES, Hely Lopes.. Direito municipal brasileiro. 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712.