Autos n. 160.474-0/0-00
Autora: Prefeita do
Município de Francisco Morato
Objeto de impugnação: Lei n. 2.304, de 14 de fevereiro de 2008, do Município de
Francisco Morato
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator
Colendo Órgão Especial
A Prefeita Municipal de Francisco Morato propôs a presente ação direta objetivando a declaração de
inconstitucionalidade da Lei n. 2.304, de 14 de fevereiro de 2008, do Município
de Francisco Morato, que “proíbe a
instalação de feirão para a venda de veículos automotores”. Trata-se de lei
de iniciativa parlamentar que foi vetada, mas, com a rejeição do veto, acabou promulgada
pelo Presidente da Câmara Municipal.
Segundo a inicial, referido
ato legislativo está eivado pelo vício de iniciativa, na medida em que
interfere diretamente na Administração Pública ao proibir que o Poder Executivo
conceda autorização para a realização, no âmbito municipal, de feiras para a
venda de veículos automotores. Aduz, ainda, violação do art. 5º, “caput”, do § 2º
e do art. 144, todos da Constituição do Estado.
A medida liminar foi deferida
pelo Exmo. Des. Relator CANGUÇU DE ALMEIDA, a fls. 35/36.
Notificada (fls. 42), a Câmara
Municipal deixou de prestar informações (fls. 50).
Citado para os fins do § 2.º
do art. 90 da Constituição Paulista, o Procurador Geral do Estado defendeu a
exegese que condiciona a sua intervenção nos processos de fiscalização abstrata
à existência de interesse estadual na preservação do texto normativo impugnado,
ausente neste caso (fls. 47/49).
É o breve relato.
A presente ação é procedente.
A lei
impugnada possui a seguinte redação:
“Artigo 1º - Fica terminantemente proibida, no território do Município de Francisco
Morato, a instalação de feirões, visando à comercialização de veículos
automotores;
Art. 2º - Esta lei entrará
em vigor, na data de sua publicação.
Art. 3º - Revogam-se as
disposições em contrário”
Na ordem constitucional
vigente, os Municípios integram a federação e são dotados de autonomia
política, legislativa, administrativa e financeira, atendidos os princípios
estabelecidos na Carta Magna e também na Constituição do respectivo Estado
(CF., art. 29, “caput”).
A autonomia legislativa é
representada pela capacidade de elaborar leis sobre os assuntos de interesse
local (CF., art. 30, inciso I) e suplementar a legislação federal e a estadual
no que couber (CF., art. 30, inciso II). Para tanto, os Municípios são
obrigados a observar as regras básicas do processo legislativo federal, nos
termos da orientação assente no STF:
“Processo legislativo
dos Estados-Membros: absorção compulsória das linhas básicas do modelo
constitucional federal entre elas, as decorrentes das normas de reserva de
iniciativa das leis, dada a implicação com o princípio fundamental da separação
e independência dos Poderes: jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal.”
(ADI 637, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ 01/10/04)
Dentre as regras básicas do processo
legislativo federal que são de observância compulsória pelos Municípios
sobressai-se aquela que consagra a iniciativa reservada de leis sobre
determinadas matérias ao Executivo (CF., art. 61, § 1.º, incisos I e II,
alíneas “‘a” a “f”), e que foi reproduzida pela Constituição Paulista, no seu
art. 24, § 2.º, itens
Ao
editar a Lei 2.304, de 14 de fevereiro de 2008, de iniciativa parlamentar, a
Câmara de Vereadores de Francisco Morato desrespeitou a regra constitucional em
referência – dado que tais matérias só poderiam ser disciplinadas em projeto de
lei de iniciativa do Executivo – e também o princípio da independência e
harmonia entre os Poderes (CE, art. 5.º), advindo, daí, a conclusão de que essa
lei é formalmente inconstitucional.
No
Brasil, como se sabe, o governo municipal tem suas funções divididas, sendo que
as administrativas foram conferidas ao Prefeito, enquanto que as funções
legislativas são de competência da Câmara. Administrar significa aplicar a lei
ao caso concreto. Assim, no exercício de suas funções, o Prefeito é obrigado a
observar as normas gerais e abstratas editadas pela Câmara, em atenção ao
princípio da legalidade, a que está pautada toda atuação administrativa, na
forma do art. 111, da Carta Paulista.
Esse mecanismo de repartição de
funções, incorporado ao nosso ordenamento constitucional, impede a concentração
de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao
absolutismo.
Daí por que é vedado à Câmara
interferir na prática de atos que são de competência privativa do Prefeito,
assim como a recíproca é verdadeira.
Tamanho
significado apresenta esse sistema de separação das funções estatais, em nosso
ordenamento jurídico, que a própria Constituição, no seu art. 60, § 4.º, inciso
III, cuidou de incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente
que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
aboli-lo.”
Considerada
essa premissa, podemos concluir pela inconstitucionalidade da Lei n.
2.304/2008, do município de Francisco Morato, de iniciativa parlamentar, pois a
Câmara Municipal acabou por interferir na esfera de competência exclusiva da
Administração, acarretando, tal iniciativa, o desequilíbrio no delicado sistema
de relacionamento entre os poderes municipais.
O art. 181, da Constituição Estadual
determina que “Lei municipal estabelecerá, em conformidade com as diretrizes do
plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e
ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações
administrativas pertinentes”.
A câmara municipal, no caso em tela,
acabou por promover o ordenamento territorial e, portanto, infringir a
Constituição de São Paulo.
Quanto à exigência de planejamento
relativo ao ordenamento e ocupação do solo, decidiu essa Egrégia Corte,
“A Constituição do Estado, com efeito,
em consonância com a Carta Magna, contempla a obrigatoriedade do planejamento
em matéria urbanística, que hoje se apresenta institucionalizada, através de
expressa previsão constitucional. É nesse sentido a lição de José Afonso de
Silva, realçando que, atualmente, “o processo de planejamento passou a ser um
mecanismo por meio do qual o administrador deverá executar sua atividade
governamental, na busca da realização das mudanças necessárias à consecução do
desenvolvimento econômico-social”. E mais adiante, conclui o renomado autor: “O
planejamento, assim, não é mais um processo dependente da mera vontade dos
governantes. É uma previsão constitucional e uma provisão legal. Tornou-se
imposição jurídica, mediante a obrigação de elaborar planos, que são os
instrumentos consubstanciados do respectivo processo” (ob. cit., pág. 86).
Nesse assunto, a Constituição Federal, em diversas passagens, alude ao dever de
planejar, em geral e em matéria urbanística especialmente, ao se referir à
competência para elaborar planos de ordenação do território (artigo 21, inciso
IX), plano de desenvolvimento equilibrado da atividade econômica (artigo 174, §
1º) e os planos definidores da política de desenvolvimento urbano (artigo 182).
Interessa sobremodo,
Reportando-se à noção de planejamento,
Hely Lopes Meirelles conclui “que a
elaboração de Plano Diretor é tarefa de especialistas nos diversos setores de
sua abrangência, devendo por isso mesmo ser confiada a órgão técnico da
Prefeitura ou contratada com profissionais de notória especialização na
matéria, sempre sob supervisão do Prefeito” (Direito Municipal
Brasileiro, São Paulo, RT, 1985, p. 397). Por este mesmo motivo, José
Afonso da Silva sustenta que a elaboração do Plano Diretor é da competência do
Executivo Municipal, por intermédio dos órgãos de planejamento da Prefeitura, e
que a iniciativa da lei respectiva é do Prefeito, sob cuja orientação se
prepara o plano (Direito Urbanístico Brasileiro, São Paulo, Malheiros,
1997, pp. 138-140). As mesmas exigências
devem ser observadas nas leis modificadoras de planos diretores, ou de qualquer
ingerência ou modificações das vocações estabelecidas no próprio Plano Diretor
ou nos decretos que aprovam os projetos de loteamentos e demais espécies de
parcelamento e ocupação do solo urbano.
Essa Egrégia Corte já decidiu que se a
Constituição Estadual impôs “o estabelecimento de diretrizes e normas relativas
ao desenvolvimento urbano” (artigo 180, caput), a elaboração de “planos,
programas e projetos” em matéria urbanística (artigo 180, inciso II), bem como
a subordinação da legislação municipal respectiva às diretrizes do plano
diretor (...), como conseqüência a de que só ao Poder Executivo cabe a
iniciativa do processo legislativo, sempre que a matéria reservada à lei seja
de tal natureza que reclame a feitura de planos prévios (ADIn 66.667-0/6, Rel.
Des. Dante Busana, j. em 12 de setembro de 2001).
Assim, embora seja inegável a
competência das Câmaras Municipais para legislar sobre os assuntos de interesse
local, está tem limites que devem necessariamente ser observados, e que
decorrem da imperiosidade de preservar-se a convivência pacífica dos poderes
políticos, entre os quais não existe nenhuma relação de hierarquia e
subordinação, mas sim de independência e harmonia, em face do contido no art.
5.º, da Constituição do Estado de São Paulo.
A administração municipal está afeta ao
Prefeito eleito. É ele quem define as prioridades e as políticas públicas a
serem implementadas, bem assim os serviços públicos que serão prestados à
população, tudo sob a perspectiva e motivação do atendimento do interessa
público. Nessa seara, a Câmara não tem como impor suas preferências, podendo
quando muito formular indicações, mas não sujeitar aquela autoridade ao
cumprimento de lei que, longe de fixar uma regra geral e abstrata, constitui
verdadeira ordem ou comando, para que se faça algo.
Nesse aspecto, portanto, é procedente o
pedido declaratório de inconstitucionalidade, pois pretendeu a Câmara Municipal proibir o Poder
Executivo de instalar “Feirões”, para a venda de veículos automotores,
interferindo na direção e organização do município.
Conclui-se,
portanto, que houve supressão de atribuição reservada do Chefe do Poder
Executivo com a conseqüente imposição de normas que ofende diretamente sua
iniciativa legislativa.
Nestes termos, opino
pela procedência do pedido para o fim de se declarar inconstitucional a Lei 2.304,
de 14 de fevereiro de 2008, do Município de Francisco Morato.
São
Paulo, 10 de junho de 2008.
MAURÍCIO AUGUSTO GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA
no exercício de função
delegada
pelo Procurador-Geral de
Justiça