Ação Direta de Inconstitucionalidade

(Parecer do Ministério Público Estadual)

Processo n.º 160.866-0/0-00

Requerente:  Mesa Diretora da Câmara Municipal de Porangaba

Objeto de impugnação: Lei n.º 23, de 28 de dezembro  de 2007, do Município de Porangaba.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

                            Cuida-se de ação proposta pela Mesa Diretora da Câmara Municipal de Porangaba na qual se questiona a validade jurídico-constitucional da Lei n.º 23, de 28 de dezembro de 2007, do Município de Porangaba, em face do art.  28 e §§, da Constituição do Estado de São Paulo. Notificado, o Prefeito Municipal de Porangaba prestou informações nos termos regimentais (fls.45/53), requerendo a improcedência da ação, sob o argumento de que a emenda parlamentar à Lei que estima  a receita e fixa a despesa para o exercício de 2008 não poderia prosperar, na medida em que padece de vício de processual, eis que não adotou os procedimentos insculpidos pelo art. 178 e seu parágrafo único do Regimento Interno da Câmara Municipal de Porangaba, tendo em vista que a mesma não foi votada como parte integrante da Lei Orçamentária. Ademais, o mencionado projeto de lei foi remetido ao Poder Executivo sem qualquer emenda que passou a integrar seu corpo, razão pela qual sua aprovação se deu  na forma em que o mesmo foi recebido. Por fim sustenta que a emenda modificativa não era compatível  com a Lei de Diretrizes Orçamentárias. Citado para os fins do § 2.º, do art. 90, da Constituição Paulista, o Procurador Geral do Estado asseverou não haver interesse concreto para a defesa do ato impugnado (fls.120/122).

 

                                Em resumo, é o que consta nos autos.

 

                            A despeito do que foi alegado na defesa do ato impugnado, bem assim considerados os aspectos fáticos, jurídicos e demais circunstâncias trazidas aos autos, a presente ação deverá ser julgada procedente.

 

                            Primeiramente  é necessário relembrar o que dispõe a Constituição Bandeirante sobre o tema central discutido nos autos,  a saber:

 

                            Art. 28 – Aprovado o projeto de lei, na forma regimental, será ele enviado ao Governador que, aquiescendo, o sancionará e promulgará.

                            § 1º -  Se o Governador julgar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á, total ou parcialmente, dentro de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, comunicando, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente da Assembléia Legislativa, o motivo do veto.

                            § 2º - O veto parcial deverá abranger, por inteiro, o artigo, o parágrafo, o inciso, o item ou alínea.

                            § 3º - Sendo negada a sanção, as razões do veto serão comunicadas ao Presidente da Assembléia Legislativa e publicadas se em época de recesso parlamentar.

                            § 4º - Decorrido o prazo, em silêncio, considerar-se-á sancionado o projeto, sendo obrigatória a sua promulgação pelo Presidente da Assembléia Legislativa no prazo de dez dias.

                            § 5º  - A Assembléia Legislativa deliberará sobre a matéria vetada, em único turno de votação e discussão, no prazo de trinta dias de seu recebimento, considerando-se aprovada quando obtiver o voto favorável da maioria absoluta de seus membros.

                            § 6º - Esgotado, sem deliberação, o prazo estabelecido no § 5º, o veto será incluído na ordem do dia da sessão imediata, até sua votação final.

                            § 7º - Se o veto for rejeitado, será o projeto enviado para promulgação, ao Governador.

                            § 8º - Se, na hipótese do § 7º, a lei não for promulgada dentro de quarenta e oito horas pelo Governador, o Presidente da Assembléia Legislativa promulgará e, se este não o fizer, em igual prazo, caberá ao Primeiro Vice-Presidente fazê-lo”.

 

                            O dispositivo supra aduzido traz disposições cogentes aplicáveis  ao processo legislativo na Assembléia Legislativa e nas Câmaras Municipais do Estado de São Paulo, sem prejuízo das disposições das respectivas leis orgânicas e regimentos internos.

 

                             A  emenda modificativa foi apresentadas dentro do prazo regimental de 05 (cinco) dias, contados após  a aprovação em primeira votação.

 

                              No entanto, o chefe do executivo preteriu o caminho do veto da emenda parlamentar pura e simplesmente, seguido da sanção e promulgação  da lei, nos termos em que a mesma inicialmente havia sido proposta. Ao tomar referida atitude, porém, o Prefeito Municipal de Porangaba maculou indelevelmente todo o processo legislativo e a própria  Lei n. 23, de 28 de dezembro de 2007, uma vez que sancionou o projeto de lei,  sem a alteração feita pela emenda n. 04/2007 e sem vetá-la, como determinava as regras regimentais. Note-se que se o chefe do Poder Executivo considerou a emenda modificativa ilegal ou inconstitucional, deveria tê-la vetado e não procedido da forma como agiu. Com isso, o chefe do Poder Executivo feriu tanto as regras do art.28, quanto dos arts. 5º, 111 e 144, todos da Constituição Estadual, ignorando a vontade e atuação do Poder Legislativo na formação da norma.

                  

                                 De fato, se a determinação constitucional obriga o chefe do executivo a devolver ao legislativo a matéria em caso de veto, ou sancionar a lei com a alteração da emenda modificativa,   caberia ao Prefeito Municipal fazê-lo, necessariamente,  porque o Poder Legislativo deliberou sobre o projeto com a emenda  à ele incorporada. Não tendo ocorrido essa etapa essencial, o Prefeito acabou sancionando um projeto e não uma lei acabada. Esse vício efetivamente é insanável e corrigível pelo controle concentrado de constitucionalidade objetivado pela requerente.

 

                           A propósito, o magistério de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (In: Do Processo Legislativo. São Paulo. Editora Saraiva. 5ª edição, pág.225), ensina que “ O veto, seja total, seja parcial, deve ser manifestado pelo Presidente, de acordo com o art.66, §1º, da Constituição, no prazo de quinze dias úteis contados da data do recebimento do projeto. Esse prazo é fatal. Transcorrido o prazo, dispõe o § 3º, desse mesmo artigo, ‘o silêncio do Presidente da República importará sanção’.

 

                            Os motivos da recusa de sanção devem ser trazidos a público. Por isso, exige a Constituição (art.66, § 1º) seja feita a comunicação do veto, com suas razões, ao Presidente do Senado Federal – que preside o Congresso Nacional (Constituição, art.57, §5º)”.

 

                            Mais adiante o mesmo autor completa: “ O veto tem a natureza de ato composto. Compreende a manifestação de vontade negativa mais a comunicação fundamentada dessa discordância. A  primeira, nos quinze dias úteis seguintes ao recebimento do projeto aprovado, impede a sanção tácita. Entretanto, o veto não se aperfeiçoa, caso não haja, no prazo de quarenta e oito horas, a comunicação devida ao Presidente do Senado. O veto – já se disse – suscita a reapreciação do projeto. A comunicação ao Presidente do Senado tem, assim, por efeito provocar esse reexame por parte do Congresso Nacional”.

 

                            Constata-se, pois, a par da situação retratada pelos documentos encartados nos autos, que ao deixar de vetar a emenda modificativa e sancionar lei ignorando por completo essa última, que sequer foi vetada, o Prefeito daquele município integrou uma lei inacabada e sem aptidão para receber o aperfeiçoamento próprio do processo legislativo ordinário.

 

                            A doutrina é unânime em reconhecer o processo legislativo ordinário como um ato complexo. E sobre esse aspecto mais uma vez discorre Manoel Gonçalves Ferreira Filho (pág.227, da obra citada) que “ A lei resulta normalmente da concordância da vontade do Legislativo, esta, por sua vez, ato complexo, já que fusão da vontade da Câmara com a do Senado, manifestada cada uma destas por um ato continuado, com a do Presidente da República. Nesse caso, parece ela típico ato complexo igual, porque a vontade do Legislativo e a do Presidente aparecem com peso igual.

 

                            Sobre a natureza de ato complexo do processo legislativo ordinário, é ainda pertinente enfrentar as suas variantes, ou seja, na situação em que ele é ato complexo igual e ato complexo desigual.  Valendo-se dos ensinamentos do insigne autor supra citado, na mesma obra já referida (pág.228), colhe-se: “ No Direito brasileiro, porém, a estrutura do ato legislativo não é a de ato complexo igual, nunca. É sempre de ato complexo desigual. ... Ora, no processo de formação da lei ordinária, no Brasil, a vontade principal é a do Congresso, na qual se integra, pela sanção, a vontade secundária do Presidente. Tanto é esta secundária que pode ser dispensada, pela aprovação do projeto por maioria qualificada.  ... O ato legislativo, portanto,é, no Direito pátrio, sempre ato complexo desigual, fruto da integração em uma vontade principal de vontade ou vontades secundárias.  Indo mais longe, em virtude de, por disposição constitucional (art.64), os projetos de iniciativa do Presidente  terem sua discussão necessariamente iniciada na Câmara dos Deputados e serem os mais importantes, normalmente, tende a ser a lei um ato em que à vontade principal da Câmara se soma a secundária do Senado e, quase sempre, a também secundária do Presidente”.

           

                            No Brasil, como se sabe, o governo municipal é de funções divididas. As funções administrativas foram conferidas ao Prefeito, enquanto que as funções legislativas são de competência da Câmara. Administrar significa aplicar a lei ao caso concreto. Assim, no exercício de suas funções, o Prefeito é obrigado a observar as normas gerais e abstratas editadas pela Câmara, em atenção ao princípio da legalidade, a que está pautada toda atuação administrativa, na forma do art. 111 da Carta Paulista.

 

                            Esse mecanismo de repartição de funções, incorporado ao nosso ordenamento constitucional, e que teve como principal idealizador o filósofo Montesquieu, impede a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo[1]. Daí ser vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira. 

        

                            Tamanho significado apresenta esse sistema de separação das funções estatais, em nosso ordenamento jurídico, que a própria Constituição, no seu art. 60, § 4.º, inciso III, cuidou de incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a aboli-lo. 

                            Vistos esses aspectos, tem-se no caso sob exame que o chefe do Executivo do Município de Porangaba,  sancionou texto de lei sem vetar  emenda modificativa.       Essa atitude, porém, não reúne a mínima condição de subsistir na ordem jurídica vigente, uma vez que, a pretexto de sancionar a lei, o Prefeito acabou por interferir na esfera de competência do Legislativo, acarretando, tal iniciativa, o desequilíbrio no delicado sistema de relacionamento entre os poderes municipais.

                  

                            Em face do exposto, aguardo o julgamento de procedência desta ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei n.º 23, de 27 de dezembro de 2007, do Município de Porangaba, por afronta aos arts. 5.º,  28, §1º e 111,  da Constituição Paulista, cuja observância é obrigatória pelos Municípios, por força do art. 144 dessa mesma Carta Política.

        

 

São Paulo, 06 de junho de 2008.

 

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA

no exercício de função delegada

 pelo Procurador-Geral de Justiça



[1] Em sua magistral obra “Esprit des lois”, Montesquieu formulou a seguinte advertência: “tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executá-las e o de julgar.”