Autos n. 162.352.0/9-00
Autor: Prefeito Municipal
de São Lourenço da Serra
Objeto de impugnação: Lei Municipal n. 690, de 28 de setembro de 2007
Ementa: 1) Lei n. 690, de 28 de setembro
de 2007, do município de São Lourenço da Serra, de iniciativa parlamentar, que
dispõe sobre a transposição de cargos; 2) Inconstitucionalidade formal pelo
vício de iniciativa; 3) Inconstitucionalidade decorrente da ofensa ao art. 5º
da Constituição do Estado; 4) Inconstitucionalidade material decorrente da
transposição de cargos que viola o princípio constitucional do concurso, da
acessibilidade de cargos, empregos e funções públicas, da isonomia e da
impessoalidade (arts. 111, 115, I e II, e 144, todos da Constituição
Paulista). 5) Parecer pela procedência. |
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator
Colendo Órgão Especial
A
presente ação direta foi ajuizada para sindicar a Lei n. 690, de 28 de setembro
de 2007, do município de São Lourenço da Serra, de iniciativa parlamentar, que
dispôs sobre a transformação de cargos de Assistente do Desenvolvimento
Infantil em Cargo de Professor de Educação Infantil.
Segundo
a inicial, aditada a fls. 18, houve violação ao princípio constitucional do
concurso público, consagrado no art. 37, II, da Lei Maior, pois a lei impugnada
permitiu a transposição de cargos.
A
lei municipal impugnada teve a vigência e a eficácia suspensas por força da
decisão interlocutória de fls. 21, subscrita pelo Excelentíssimo Desembargador
Relator, Dr. SOUSA LIMA.
Devidamente
citado, o Procurador-Geral do Estado manifestou-se a fls. 35/37.
O
Presidente da Câmara Municipal foi devidamente notificado e prestou informações
a partir de fls. 40.
É
o breve relato.
A
presente ação direta é totalmente procedente, pois a lei impugnada, de fato, é
verticalmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo.
Embora
a inicial faça referência à Constituição Federal, não faltam parâmetros na Lei
Maior Paulista para a retirada da norma impugnada do ordenamento jurídico.
Ocorre
que, de início, verifica-se o vício de iniciativa, com a consequente afronta ao
princípio da independência e harmonia entre os Poderes.
Com
efeito, é possível constatar-se a afronta ao art. 5º da Constituição Estadual,
pois lei de iniciativa parlamentar não pode dispor o quadro do funcionalismo
público municipal.
Com
efeito, dispõe o art. 24, § 2º, da Constituição do Estado de São Paulo que:
“Art.
24 – .........
§
2.º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis
que disponham sobre:
1
– criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração
direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração.
Na
organização político-administrativa brasileira, o governo municipal apresenta
funções divididas. O Prefeito é o responsável pela função administrativa,
enquanto que a função básica da Câmara é a legislativa, ou seja, a edição de
normas gerais e abstratas de conduta, que devem pautar toda atuação
administrativa.
Como
essas atribuições foram preestabelecidas pela Constituição, de modo a prevenir
conflitos, qualquer tentativa de um Poder de exercer as atribuições de outro
Poder tipifica nítida violação do princípio da independência e harmonia entre
os Poderes.
A
Câmara Municipal, ao aprovar projeto de lei de iniciativa parlamentar que
dispõe sobre cargos do funcionalismo municipal, claramente viola a regra da
iniciativa reservada.
Afinal,
à vista do princípio da independência e harmonia entre os Poderes (CE, art.
5.º), a Câmara não está autorizada a legislar sobre o referido tema,
providência que depende da apresentação de projeto de lei que é de iniciativa
reservada ao Prefeito.
Se
não bastasse a inconstitucionalidade formal apontada, a norma impugnada também
é materialmente incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo.
Assim,
a referida lei, sob o pretexto de reorganizar o quadro de servidores públicos,
acabou por infringir a Constituição Paulista ao atentar contra a regra do
concurso público ao estabelecer novo enquadramento dos cargos ou empregos dos
servidores que foram colocados à disposição da Câmara Municipal.
É
fácil constatar que a lei sindicada acabou por restringir a regra
constitucional do concurso público de ingresso, ao permitir a transposição de
cargos, sem concurso público.
Ocorre
que a investidura de servidores independentemente de submissão prévia a
concurso público de provas ou de provas e títulos, revela-se sobremodo
incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente com os
seus arts. 111, 115, incisos I e II, e 144, os quais assim estabelecem:
Art. 111 – A administração
pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado,
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.
Art. 115 - Para a organização
da administração pública direta e indireta, inclusive as fundações instituídas
ou mantidas por qualquer dos Poderes do Estado, é obrigatório o cumprimento das
seguintes normas:
I - os cargos, empregos e
funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos
estabelecidos em lei;
II - a investidura em cargo ou
emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de provas ou
de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão, declarado
em lei, de livre nomeação e exoneração;
Art. 144 - Os Municípios, com
autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se
auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na
Constituição Federal e nesta Constituição.
Assim,
considerando que a Constituição do Estado é clara ao exigir que a investidura
em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia, em concurso público de
provas ou de provas e títulos, não pode ser considerada válida a lei municipal
questionada pela presente ação direta.
Cargo,
sabe-se, é o feixe de atribuições inerentes a um local na administração, bem
assim o seu padrão remuneratório. Ou, ‘Cargo público é o lugar instituído na
organização do serviço público, com denominação própria, atribuições e
responsabilidades específicas e estipêndio correspondente, para ser provido por
um titular, na forma estabelecida na lei’. (Hely Lopes Meirelles, Direito
Administrativo Brasileiro, p. 392, Malheiros, 27.ª ed.).
Para
Celso Antonio Bandeira de Mello, 'Derivação vertical. É a passagem do titular
de um para outro cargo, com elevação funcional. Na legislação federal há duas
distintas formas de provimento que implicam derivação vertical: uma é a
promoção, que na legislação paulista denomina-se acesso; outra é a ascensão,
que não tem correspondente na legislação paulista. Vejamos em que consiste cada
qual. 'Promoção', na legislação federal, ou acesso, na legislação do Estado de
São Paulo, é a modalidade de provimento em que há passagem do titular de um
cargo para outro mais elevado, dentro da mesma carreira. É uma forma pela qual
se progride naturalmente no serviço público, segundo critérios de merecimento e
antiguidade. Esta forma de progresso, a que se fez referência, não é, necessariamente,
ascensão na escala hierárquica, ainda que, muita vez, pretenda-se
caracterizá-la assim. Na verdade, tudo vai depender do sistema de classificação
de cargos adotado. Com efeito, só há elevação na hierarquia quando alguém
assume posição de mando (cargo de chefia ou direção). A promoção pode ser - e
assim geralmente ocorre nos sistemas adotados entre nós -, simplesmente,
elevação na carreira, isto é, passagem para cargo da mesma profissão, pelo menos
em tese de maior complexidade ou responsabilidade.
'Ascensão' é a forma de provimento derivado
consistente na elevação do titular de cargo alocado na classe final de uma dada
carreira (série de classe) para cargo da classe inicial de outra car¬reira,
predefinida legalmente como complementar da anterior.'
Como diz HELY LOPES MEIRELLES (‘Direito
Administrativo Brasileiro’, p. 395, 27.ª
ed.):
“CRIAÇÃO, TRANSFORMAÇÃO E
EXTINÇÃO DE CARGOS, FUNÇÕES OU EMPREGOS PÚBLICOS
A criação, transformação e
extinção de cargos, empregos e funções públicas do Poder Executivo exige lei de
iniciativa privativa do Presidente da República, dos Governadores dos Estados e
do Distrito Federal e dos Prefeitos Municipais, conforme seja federal, estadual
ou municipal a Administração interessada, abrangendo a Administração direta, autárquica e fundacional (CF, art.
48, X, c/c o art. 61, § 1a, 11, "d"). Com a EC 32/2001, ao Chefe do
Executivo compete privativamente dispor sobre a "extinção de funções ou
cargos quando vagos" (CF, art. 84, VI, "b"). Assim, não estando
vago, a extinção depende de lei, também de sua iniciativa privativa. A
privatividade de iniciativa do Executivo toma inconstitucional o projeto
oriundo do Legislativo, ainda que sancionado e promulgado pelo Chefe do
Executivo, porque as prerrogativas constitucionais são irrenunciáveis por seus
titulares. A transformação de cargos, funções ou empregos do Executivo é
admissível desde que realizada por lei de sua iniciativa. Pela transformação
extinguem-se os cargos anteriores e se criam os novos, que serão providos por
concurso ou por simples enquadramento dos servidores já integrantes da
Administração, mediante apostila de seus títulos de nomeação. Assim, a
investidura nos novos cargos poderá ser originária (para os estranhos ao
serviço público) ou derivada (para os servidores que forem enquadrados), desde
que preencham os requisitos da lei. Também podem ser transformadas funções em
cargos, observados o procedimento legal e a investidura originária ou derivada,
na forma da lei. Todavia, se a transformação "implicar em alteração do
título e das atribuições do cargo, configura novo provimento", que exige o
concurso público” – destacamos.
A
própria Constituição da República é expressa ao dispor no art. 37, inciso II
que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em
concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a
complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as
nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e
exoneração”.
Alexandre
de Moraes, em comentário ao art. 37, inciso II, da Constituição Federal nos dá
preciosa lição, ao anotar que:
“A Constituição Federal é
intransigente em relação à imposição à efetividade do princípio constitucional
do concurso público, como regra a todas as admissões da administração pública,
vedando expressamente tanto a ausência deste postulado, quanto seu afastamento
fraudulento, por meio de transferência de servidores públicos para outros
cargos diversos daquele para o qual foi originariamente admitido”.
Mais
adiante, conclui dizendo:
“Importante também ressaltar
que, a partir da Constituição de
Realmente,
nos termos do art. 37, inciso II, da Constituição da República, cuja regra é
repetida pelo dispositivo do art. 115, inciso II, da Carta Paulista, o
instituto da transposição de cargos não foi recepcionado pela Constituição
Federal de 1988, que exige o concurso público para qualquer investidura,
ressalvadas as hipóteses de nomeações para cargo em comissão declarado em lei
de livre nomeação e exoneração.
A
propósito, é justamente através da realização de concurso público que se
assegura a observância do princípio da acessibilidade de todos os brasileiros
aos cargos públicos, consagrado no dispositivo do art. 37, inciso I, da
Constituição Federal. Aliás, é da tradição constitucional pátria a adoção do
aludido princípio, conforme se verifica das Constituições de: 1824, art. 179,
n°14; 1891, art. 73; 1934, art. 168; 1937, art. 122, parágrafo 3°; 1946, art.
184; 1967, art. 95 “caput”; 1967/ Emenda Constitucional n°1, art. 97, “caput” e
1988, art. 37, inciso I.
Como
observa Márcio Cammarosano, “o princípio da acessibilidade aos cargos públicos
consiste, em resumo, no direito de todos os brasileiros à igual oportunidade de
ingressar no serviço público, desde que preenchidos os requisitos estabelecidos
em lei”. Como se vê, a sua observância
é a própria consagração do princípio de isonomia, já que a “igualdade de
oportunidades constitui postulado fundamental no regime democrático”, como já
advertia o eminente Ministro Francisco Campos.
Márcio
Cammarosano (op. cit., p. 69), bem observa que “conquanto desfrute o legislador
ordinário de liberdade para criar cargos agrupando-os em classes, e de reunir
classes dispondo-as escalonadamente em séries, instituindo, assim, carreiras,
essa liberdade não é ilimitada, não pode ser exercida arbitrariamente.
Principalmente
como no caso em tela, em que o legislador municipal autorizou a transposição de
cargos.
“Não
há como privilegiar alguém pelo só fato de (já) ser funcionário público e
livrá-lo da concorrência dos não funcionários para ingressar em outro cargo ou carreira,
que por concurso público deveriam ser disputados” (Edmir Netto de Araújo, Curso
de Direito Administrativo, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 327)
Sendo
assim, o legislador municipal acabou por restringir a regra constitucional do
concurso público de ingresso.
Registre-se
a ementa do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da
ADI n. 289/CE , em que foi Relator o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, referente a
caso análogo:
“Servidor Público:
estabilidade extraordinária (ADCT/CF/88, art. 19). O Tribunal tem afirmado a
sujeição dos Estados-membros às disposições da Constituição Federal relativas
aos servidores públicos, não lhes sendo dado, em particular, restringir ou
ampliar os limites da estabilidade excepcional conferida no artigo 19 do ato
federal das disposições transitórias. II. Estabilidade excepcional (Art. 19
ADCT): não implica efetividade no cargo, para a qual é imprescindível o
concurso público (v.g. RE 181.883, 2ª T., Corrêa, DJ 27.02.98; ADIns. 88-MG,
Moreira, DJ 08.09.00; 186-PR, Rezek, DJ 15.09.95; 2433-MC, Corrêa, DJ 24.8.01).
III. Concurso público: exigência incontornável para que o servidor seja
investido em cargo de carreira diversa. 1. Reputa-se ofensiva ao art. 37, II,
CF, toda modalidade de ascensão de cargo de uma carreira ao de outra, a exemplo
do "aproveitamento" de que cogita a norma impugnada. 2. Incidência da
Súmula/STF 685 ("É inconstitucional toda modalidade de provimento que
propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado
ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente
investido"). IV. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente,
para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 25, 26, 29 e 30 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado do Ceará –
fizemos destaques.
Como
se vê, a matéria encontra-se sumulada pelo Pretório Excelso:
Enunciado n. 685
É INCONSTITUCIONAL TODA
MODALIDADE DE PROVIMENTO QUE PROPICIE AO SERVIDOR INVESTIR-SE, SEM PRÉVIA
APROVAÇÃO
Em
tais circunstâncias, aguardo o julgamento de procedência da
presente ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei
n. 690, de 28 de setembro de 2007, do município de São Lourenço da Serra.
São Paulo, 12 de fevereiro de
2009.
Maurício Augusto Gomes
Subprocurador-Geral de Justiça
- Assuntos Jurídicos –
/md