AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Processo
nº162.356-0/7-00
Autor:
Prefeito Municipal de Jundiaí
Objeto:
Lei Municipal nº6.955, de 21 de novembro de 2007, de Jundiaí.
Ementa: 1)Ação direta de inconstitucionalidade. Lei
Municipal. Iniciativa de vereador. Determinação de que todos os postes de
afixação de radares controladores de velocidade sejam pintados na cor
amarela. 2)Violação da separação de
poderes. Lei que invade a esfera da gestão administrativa, determinando
providências concretas da Administração Pública (art.5º e 47 II e XIV da
Constituição Estadual). 3) Inconstitucionalidade reconhecida. |
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador
Relator
Tratam estes autos de ação direta de
inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Jundiaí, tendo
como alvo a Municipal nº6.955, de 21 de novembro de 2007, daquela cidade, fruto
de iniciativa parlamentar, com o argumento de que: (a) teria ocorrido quebra do
princípio da separação de poderes; (b) a lei gerou despesas sem que haja
previsão de receitas; (c) a matéria não é da competência do legislador
municipal, que não pode disciplinar trânsito e transporte (art.1º, 5º e 144 da
Constituição Paulista).
Foi
deferida a liminar, determinando-se a suspensão do ato normativo impugnado
(fls.32/33).
Citado, o Senhor Procurador-Geral do
Estado declinou da defesa do texto legal (fls.42/44).
A Presidência da Câmara Municipal
prestou informações (fls.46/47).
Este
é o breve relato do que consta dos autos.
1)Do ato normativo impugnado.
A
Lei Municipal nº6.955, de 21 de novembro de 2007, de Jundiaí, que “prevê nos suportes de radares de
fiscalização de trânsito a pintura que especifica”, tem a seguinte redação:
“Art.1º. Serão pintados na cor amarela refletiva:
I – os postes de sustentação de equipamentos de radares de fiscalização de trânsito estáticos;
II – os equipamentos de suporte de radares de fiscalização de trânsito móveis.
§1º. A cor amarela refletiva é exclusiva dos equipamentos mencionados no artigo anterior.
§2º. Os equipamentos estarão sempre visíveis aos motoristas.
Art.2º. O disposto no inciso II do art.1º não se aplicará se:
I – no local houver sinalização horizontal (solo) e vertical – conforme Resolução 08/98 do Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN;
II – o local a ser fiscalizado for divulgado previamente.
Art.3º. Serão divulgados, trimestralmente:
I – o número de equipamentos estáticos e móveis que são utilizados e suas localizações;
II – as velocidades máximas permitidas nas principais vias;
III – o valor da multa a ser aplicada, no caso de infração; e
IV – a pontuação creditada na Carteira Nacional de Habilitação.
Art.4º. Só caberá autuação após cumprido o disposto nesta lei.
Art.5º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.”
Entretanto, o diploma em epígrafe é verticalmente
incompatível com a nossa sistemática constitucional, como será demonstrando a
seguir.
2)Violação da regra da separação de
poderes.
É
assente que a regra adotada em nosso sistema constitucional, no processo
legislativo, é a iniciativa concorrente. Excepcionais são as hipóteses de
iniciativa reservada. Isso é o que decorre do art.61 e parágrafos da
Constituição Federal, cuja essência é reproduzida no art.24 e parágrafos da
Constituição do Estado de São Paulo.
Como hipótese de exceção, a iniciativa
reservada deve ser interpretada restritivamente, pois, como anotava há muito
Carlos Maximiliano, “exceptiones sunt
strictissimae interpretationis” (Hermenêutica
e aplicação do direito, 18ªed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, p.225).
O
E. STF assentou a questão, reafirmando que as hipóteses de iniciativa reservada
não podem receber interpretação analógica ou extensiva, de sorte a envolver
situações não previstas de forma expressa na Constituição (ADI 776-MC,
Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-10-92, DJ de 15-12-06).
Observando o art.24 §2º da Constituição do Estado de
São Paulo, que reproduz em essência o art.61 §1º da Constituição Federal,
verifica-se inexistir regra prevendo iniciativa reservada para o encaminhamento
de projeto de lei a respeito do tema tratado na nº6.955, de 21 de novembro de
2007, de Jundiaí.
Não havendo, destarte, reserva
expressa, não é possível acolher-se alegação de inconstitucionalidade por vício
de iniciativa.
Entretanto, verifica-se na hipótese em
exame a quebra do postulado da separação dos poderes.
Há quebra do princípio da separação de
poderes nos casos, por exemplo, em que o Poder Legislativo edita um ano
normativo que configura, na prática, ato
de gestão executiva. Quando o legislador, a pretexto de legislar,
administra, configura-se o desrespeito à independência e harmonia entre os
poderes, princípio estatuído no art.5º da Constituição Estadual, que reproduz o
contido no art.2º da Constituição Federal. Há também não observância do
disposto no art.47 II e XIV da Constituição Paulista.
Nestes termos, a disciplina legal findou,
efetivamente, invadindo a esfera da
gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, envolvendo o planejamento, a direção, a organização e a execução
de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de
sorte a malferir a separação dos Poderes.
Não é necessário que a lei diga o que o Poder
Executivo pode ou não fazer dentro de sua típica atividade administrativa. Se o
faz, torna-se patente que a atividade legislativa imiscuiu-se no âmbito de
atuação do administrador, fazendo-o de modo inconstitucional.
Cumpre recordar, nesse passo, o
ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar.
Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regras
para a Administração; a Prefeitura as executa, convertendo o mandamento legal,
genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O
Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta
sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes,
princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer
atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e
inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo
ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda
deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do
Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos
do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder
Judiciário” (Direito municipal
brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da
Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).
Exatamente esta é a hipótese dos autos.
Na Lei Municipal nº6.955, de 21 de
novembro de 2007, de Jundiaí, a pretexto de legislar, a Câmara Municipal editou
verdadeiro ato de gestão administrativa:
(a) ao determinar que os postes e equipamentos de fiscalização de trânsito
(radares) sejam pintados na cor amarela refletiva; (b) ao prever a obrigação de
divulgação trimestral de dados relativos à fiscalização de trânsito.
Não
só dispensável, como inviável se mostra a deliberação legislativa nessa
matéria, mormente quando verificado que a iniciativa para a edição da lei
partiu de parlamentar. Aquilo que a regra determina para a Administração
Pública é algo que se encontra, precisamente, no âmbito da atividade executiva.
Se os postes devem ou não ser pintados,
se essa providência alcançará apenas aqueles postes nos quais estejam
instalados equipamentos controladores de velocidade, ou ainda qual a cor
escolhida para tanto, bem como a divulgação de informações a respeito da
fiscalização de trânsito, são aspectos de conveniência
e oportunidade (mérito do ato
administrativo), que ficam exclusivamente ao alvedrio do administrador público.
Em situações análogas esse E. Órgão
Especial tem reconhecido a inconstitucionalidade do ato normativo por quebra do
princípio de separação de poderes.
É o que se infere dos julgados a seguir
transcritos, mutatis mutandis
aplicáveis ao caso em exame:
“Ao executivo
haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades
municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe
propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara
Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual
se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do
Prefeito” (ADI n. 53.583-0, rel. Des.
Fonseca Tavares).
“Ação direta
de inconstitucionalidade. Artigo 2º da Lei Municipal 10975/2006, de Ribeirão
Preto. Legislação, de iniciativa parlamentar, que determina a obrigatoriedade
da inscrição ‘Patriota brasileira assassinada pela ditadura militar’ em placa
indicativa de logradouro ou próprio municipal. Impossibilidade. Matéria de
cunho eminentemente administrativo atinente a planejamento e ordenamento urbano.
Função legislativa da Câmara de Vereadores possui caráter genérico e abstrato.
Lei dispôs de maneira concreta, com caráter de obrigatoriedade, afrontando o
princípio da separação dos poderes. Procedência” (ADI 147.772.0/5-00, rel. des.
Maurício Ferreira Leite, j. 03.10.2007).
“Ação direta
de inconstitucionalidade - Lei Municipal n° 6.641, de 31 de julho de 2006, que
dispõe sobre a obrigatoriedade de fixação de quadro informativo com nome,
registro e especialidade de profissional médico de plantão nos pronto-socorros
e unidades básicas de saúde - Ato típico de administração, cujo exercício e
controle cabe ao Chefe do Poder Executivo - Ofensa ao princípio da separação
dos poderes - Criação de despesas não previstas no orçamento - Afronta aos
artigos 5º, 25 e 144, ambos da Constituição Estadual - Ação procedente.”(ADI
149.363-0/3-00, rel. des. Debatin Cardoso, j. 03.10.2007).
Anote-se,
ademais, que em hipótese similar esse E. Tribunal de Justiça reconheceu a
inconstitucionalidade da lei municipal, conforme ementa a seguir transcrita:
“Ação direta
de inconstitucionalidade. Lei Municipal 9857/2007, de São José do Rio Preto.
Legislação, de iniciativa parlamentar, que determina a pintura, na cor amarela,
dos postes em que afixados radares controladores de velocidade.
Impossibilidade. Planejamento urbano. Uso e ocupação do solo. Afronta ao
princípio da separação de poderes. Matéria de cunho eminentemente
administrativo. Lei dispôs sobre situação concreta, concernente à organização
administrativa. Inexistência, ademais, de indicação dos recursos orçamentários
para implantação da medida. Ação direta julgada procedente, para declarar a
inconstitucionalidade da norma.” (ADI 153.649-0/3-00, rel. des. Maurício
Ferreira Leite, j. 12.03.2008, v.u.).
Acrescente-se que em casos como o
presente esse Colendo Órgão Especial tem reconhecido a inconstitucionalidade da
norma com fundamento no art.25 da Constituição do Estado. Confiram-se, a título
de exemplificação, recentes julgados adiante indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel.
des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos
Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa,
j.03.10.2007, v.u..
3)Conclusão.
Diante
do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência
da ação direta, com a declaração da inconstitucionalidade da Lei Municipal nº6.955,
de 21 de novembro de 2007, de Jundiaí.
São Paulo, 29 de maio de 2008.
Maurício Augusto Gomes
Procurador de Justiça
no exercício de função delegada
pelo Procurador-Geral de Justiça