AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE N.º 162.883-0/1-00
Requerente :
Prefeito do Município de Taubaté
Requerida :
Câmara Municipal de Taubaté
Objeto :
Lei n.º 4.137, de 4 de março de
2008
Ementa: Lei municipal de iniciativa parlamentar que determina
ao Prefeito Municipal a obrigação de publicar no jornal oficial do município,
os nomes dos beneficiários de bolsas, bem como os nomes de suas mães e seus
respectivos endereços. Matéria afeta à administração pública. Exclusividade de
iniciativa do Prefeito Municipal. Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo
Órgão Especial
Senhor
Desembargador Relator
O
Prefeito Municipal de Taubaté propôs
esta ação direta objetivando a
declaração de inconstitucionalidade da Lei n.º 4.137, de 4 de março de 2008,
que ''Altera o inciso VI, do artigo 15,
da Lei nº 2.643, de 23 de abril de 1992”, incluído pela Lei nº 2.975, de 14
de junho de 1996. A Câmara Municipal informou às fls. 94/109, sustentando a
inadequação da via eleita como preliminar. No mérito diz que a lei inquinada
traz transparência no sistema de concessão de bolsas, não havendo invasão da
esfera da intimidade das pessoas. Diz ainda que não há vício de iniciativa. A
D. Procuradoria-Geral do Estado não se manifestou sobre o mérito (fls. 89/91).
Houve o deferimento liminar do pedido (fls. 78/81).
Entendemos
que a ação deva ser julgada procedente,
afastamento da matéria prejudicial.
Com
efeito, não há se falar em mera ilegalidade na hipótese da lei inquinada
atingir, diretamente, a Constituição Estadual.
Quanto
ao mérito, há que se aduzir desde logo que a Lei em questão é de iniciativa de vereador, não tendo sido sancionada pelo Executivo, havendo o
vício apontado por afronta aos artigos 5.º, 47, inc. II e 144, da Constituição
do Estado de São Paulo a saber:
"Art. 5º - São Poderes do Estado,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art. 47 - Compete privativamente ao Governador,
além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II - exercer, com o auxílio dos Secretários de
Estado, a direção superior da
administração estadual;
Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e
financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição."(g.n.)
A
administração da cidade incumbe ao que, modernamente, chama-se de 'Governo', e que
tem na lei seu mais relevante instrumento,[1] participando
sempre o Poder Legislativo na função de aprovar-desaprovar os atos[2].
Na hipótese de administração ordinária, cabe ao Legislativo o estabelecimento
de normas gerais, diretrizes globais, jamais atos pontuais e específicos,
máxime os relacionados com os servidores públicos e suas vantagens, ainda que
tenha ocorrido o sanciona mento pelo Prefeito Municipal. Hely Lopes Meirelles
disserta sobre o assunto, no sentido por nós defendido:
“...a
Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e
aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por
inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos
afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar
prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las
aquiescer em que o Legislativo as exerça”[3]
Por
outro lado, a função dos parlamentos, hoje, certamente, é diversa daquela
imaginada pelos iluministas; é a lição dos nossos mais renomados autores:
“No presidencialismo, a separação entre presidente e Congresso
permite que ocorra pertencer aquele a um partido, a maioria deste a outro, como
tantas vezes já sucedeu nos Estados Unidos. Mas normalmente presidência e
maioria parlamentar têm a mesma cor política, o que estabelece igual vinculação.
Na hipótese primeira, ainda cumpre observar, a subordinação de certo modo ainda
existe, criada pelos meios de ação que tem politicamente o governo sobre o Congresso,
e, especialmente, pelas regras constitucionais restritivas da iniciativa
parlamentar, por exemplo, em matéria financeira. Na verdade, a tendência
contemporânea é a de restringir o Parlamento a uma função de controle, fazendo
dele o fiscal do governo. Volta ele assim para o ponto de partida, já que, na
Idade Média, surgiu como órgão de expressão dos desejos e particularmente dos
reclamos dos governados relativamente ao proceder do governo. De fato, essa
tendência foi assinalada por vários autores, como Loewenstein, Meynaud etc., e
em vários Estados diferentes. Assim, por exemplo, a prática inglesa mostra o
Parlamento reduzido a uma função de controle da atividade governamental,
simplesmente ratificando decisões tomadas pelo Gabinete, ao mesmo tempo cúpula
do partido majoritário, especialmente no campo normativo."[4]
No
mesmo sentido, segundo José Adércio Leite Sampaio:
"Não se admite que venha o
Legislativo a prever a criação de diversos órgãos, fundos e entidades públicos,
como centrais de abastecimento para armazenagem, conservação e comercialização de produtos agrícolas,
empresa de administração portuária, conselho de transporte, delegacias
especializadas de atendimento à mulher ou estabelecimento ambulatório, mesmo
considerando que a efetividade desse tipo de norma dependa sempre de lei ou
providência de iniciativa do próprio
Governador (Supremo Tribunal Federal. Pleno. ADInMC n. 827-AP. Rel. Min.
Paulo Brossard RTJ
v. 148, t. 3, p. 693; ADInMC n. l. 275-SP. Rel. Min. Marco Aurélio. RTJ \: 162, t. 3, p. 868; ADInMC n.
L. 391 -SP. Rel. Min. Celso de Mello. DJ
l de 28/11/1997, p. 62.216) tampouco
instituir um conselho destinado
ao controle e à fiscalização do sangue
(Supremo Tribunal Federal. Pleno. ADInMC n. l .275-SP. Rel. Min. Marco Aurélio. RTJ v. 162, t. 3, p. 868-870). Assim também se mostra
inconstitucional estipular a criação de conselho dotado de diversificada
composição e representatividade, destinado a orientar os órgãos de comunicação
social do Estado, suas fundações e entidades sujeitas ao seu controle (Supremo
Tribunal Federal. Pleno. ADInMC n. 821 -RS. Rel. Min. Octavio Galotti. DJ
de 7/5/1993, p. 8.327), tanto
quanto dispor sobre a organização,
funcionamento de certas entidades ou estatuto
de seus servidores (Supremo Tribunal Federal. Pleno. ADInMC n. 282-MT. Rel.
Sydney Sanches. RTJ v. 161, t. 2, p. 384-402; atribuindo à Defensoria Pública
autonomia administrativa).”[5](gn.)
Na
verdade, a iniciativa das leis representa, sobretudo, um momento de escolha
política, seja da matéria, seja dos interesses suscetíveis de tutela,
orientando-se, portanto, a determinadas finalidades e a um específico objeto.
Quando a competência para o impulso não siga a tendência à dispersão e tenha
sido reservada, excepcionalmente, a certos órgãos, isso significa que é deles a
responsabilidade de formular as propostas de transformação do ordenamento normativo.
É
claro que a reserva do poder de iniciativa das leis a um órgão exterior ao
Legislativo produz graves conseqüências sobre toda a disciplina do processo
legislativo: tal orientação constitucional reduz drasticamente os amplos
poderes de escolha dos órgãos parlamentares. Todavia, é o próprio ordenamento
constitucional que reserva um feixe de matérias cuja iniciativa de lei pertence
ao Chefe do Executivo, sob pena de inconstitucionalidade. É o caso dos autos.
Violou o referido ato normativo, entre outros, o princípio da reserva de
administração, que, nos dizeres do Min. Celso de Mello (AÇAO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
N. 2.364-1 ALAGOAS):
“A reserva de administração -- segundo adverte J. J. GOMES
CANOTILHO ("Direito Constitucional", p. 810/811, 5a
ed. , 1991, Almedina, Coimbra) --
constitui limite material à
intervenção normativa do Poder Legislativo, pois, enquanto princípio fundado na
separação orgânica e na especialização funcional das instituições do Estado, caracteriza-se
pela identificação, no sistema constitucional,
de um "núcleo funcional (...) reservado à administração
contra as ingerências do parlamento", por envolver matérias, que, diretamente
atribuídas à instância executiva de
poder, revelam-se insuscetíveis de deliberações concretas por parte do
Legislativo, desvestido, portanto, sob tal perspectiva, de qualquer
prerrogativa que lhe permita praticar, com repercussão sobre os
servidores públicos vinculados
ao Poder Executivo, verdadeiros atos administrativos
referentes à investidura funcional ou à sua eventual invalidação.”
Assim
sendo, e por entender que ao Legislativo não é dada a iniciativa de lei em
matéria de disciplinamento da Administração, matéria cometida ao Executivo, o parecer
é pela procedência da ação, para que
seja declarada inconstitucional a Lei
n.º 4.137, de 4 de março de 2008, do Município de Taubaté.
São Paulo, 28 de julho de 2008.
MAURÍCIO
AUGUSTO GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA,
no exercício de função delegada
pelo
Procurador-Geral de Justiça
[1] Christian Starck.
'El Concepto de ley en la constitucion alemana', Madrid: CEC, 1979,
pág.73.
[2] "...O poder governante é que goza, de fato (e talvez de direito) de
uma estabilidade garantida, necessária para a tradução em atos de um
'indirizzo'. É, em geral, delegatária, também, de importantes porções da função
legislativa. Ao legislativo, sua função torna-se aquela convalidar-confirmar
solenemente o 'indirizzo politico' decidido pelo Poder Governante revestindo
as medidas sob a forma de lei. O bloqueio - com voto negativo – ao 'indirizzo'
do Poder governante, ou a remoção formal deste ultimo - quando o regime o
admite - deve ficar, pelas exigências do modelo, eventos absolutamente
excepcionais. O Legislativo controla o Poder governante também com outros meios
(investigações, comissões parlamentares etc). Provê as leis para a integração
normativa das escolhas feitas no 'indirizzo governativo'." Giovanni Bognetti, 'In' 'Digesto Delle Discipline Pubblicistiche', p. 376, XI, UTET.
[3] MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 7.º ed., São Paulo: Malheiros, 1990,
págs. 544/545.
[4] Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Do Processo Legislativo. São Paulo:
Saraiva, 2001, pág. 271.
[5] SAMPAIO. José Adércio Leite. A Constituição Reinventada pela Jurisdição
Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, pág. 490.