AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE N.º 162.886-0/5-00
Requerente :
Prefeito do Município de Taubaté
Requerida :
Câmara Municipal de Taubaté
Objeto :
Lei Complementar n.º 116, de 3 de
janeiro de 2005
Ementa: Lei complementar de iniciativa parlamentar que estabelece
condições para a perda da licença e cassação de alvará de funcionamento de
estabelecimentos que comercializarem combustível veicular adulterado. Matéria
afeta à administração pública. Exclusividade de iniciativa do Prefeito
Municipal. Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo
Órgão Especial
Senhor
Desembargador Relator
O
Prefeito Municipal de Taubaté propôs
esta ação direta objetivando a
declaração de inconstitucionalidade da Lei Complementar n.º 116, de 3 de
janeiro de 2005, que ''Acrescenta os artigos
719-A, 719-B e 719-C na Lei Complementar nº 7, de 17 de maio de 1991, que
dispõem sobre a perda de licença e cassação do alvará de funcionamento de
estabelecimentos que comercializarem combustível veicular adulterado”. A Câmara
Municipal informou às fls. 96/103, sustentando no mérito que a lei inquinada é
benéfica ao consumidor por punir as empresas fraudadoras de combustíveis, não
havendo vício de iniciativa. A D. Procuradoria-Geral do Estado não se
manifestou sobre o mérito (fls. 91/93). Houve o indeferimento da liminar pedida
(fls. 82/83).
Entendemos
que a ação deva ser julgada procedente.
Há
que se aduzir desde logo que a Lei em questão é de iniciativa de vereador, não tendo sido sancionada pelo Executivo, havendo o vício apontado por afronta aos
artigos 5.º, 47, inc. II e 144, da Constituição do Estado de São Paulo a saber:
"Art. 5º - São Poderes do Estado,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art. 47 - Compete privativamente ao Governador,
além de outras atribuições previstas nesta Constituição:
(...)
II - exercer, com o auxílio dos Secretários de
Estado, a direção superior da
administração estadual;
Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e
financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição."(g.n.)
A
administração da cidade incumbe ao que, modernamente, chama-se de 'Governo', e que
tem na lei seu mais relevante instrumento,[1] participando
sempre o Poder Legislativo na função de aprovar-desaprovar os atos[2].
Na hipótese de administração ordinária, cabe ao Legislativo o estabelecimento
de normas gerais, diretrizes globais, jamais atos pontuais e específicos,
máxime os relacionados com os servidores públicos e suas vantagens, ainda que
tenha ocorrido o sanciona mento pelo Prefeito Municipal. Hely Lopes Meirelles
disserta sobre o assunto, no sentido por nós defendido:
“...a
Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e
aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por
inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos
afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar
prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode
delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça”[3]
Por
outro lado, a função dos parlamentos, hoje, certamente, é diversa daquela
imaginada pelos iluministas; é a lição dos nossos mais renomados autores:
“No presidencialismo, a separação entre presidente e
Congresso permite que ocorra pertencer aquele a um partido, a maioria deste a
outro, como tantas vezes já sucedeu nos Estados Unidos. Mas normalmente
presidência e maioria parlamentar têm a mesma cor política, o que estabelece
igual vinculação. Na hipótese primeira, ainda cumpre observar, a subordinação
de certo modo ainda existe, criada pelos meios de ação que tem politicamente o
governo sobre o Congresso, e, especialmente, pelas regras constitucionais
restritivas da iniciativa parlamentar, por exemplo, em matéria financeira. Na
verdade, a tendência contemporânea é a de restringir o Parlamento a uma função
de controle, fazendo dele o fiscal do governo. Volta ele assim para o ponto de
partida, já que, na Idade Média, surgiu como órgão de expressão dos desejos e
particularmente dos reclamos dos governados relativamente ao proceder do
governo. De fato, essa tendência foi assinalada por vários autores, como
Loewenstein, Meynaud etc., e em vários Estados diferentes. Assim, por exemplo,
a prática inglesa mostra o Parlamento reduzido a uma função de controle da
atividade governamental, simplesmente ratificando decisões tomadas pelo
Gabinete, ao mesmo tempo cúpula do partido majoritário, especialmente no campo
normativo."[4]
No
mesmo sentido, segundo José Adércio Leite Sampaio:
"Não se admite que venha o
Legislativo a prever a criação de diversos órgãos, fundos e entidades públicos,
como centrais de abastecimento para armazenagem, conservação e comercialização de produtos agrícolas,
empresa de administração portuária, conselho de transporte, delegacias
especializadas de atendimento à mulher ou estabelecimento ambulatório, mesmo
considerando que a efetividade desse tipo de norma dependa sempre de lei ou
providência de iniciativa do próprio
Governador (Supremo Tribunal Federal. Pleno. ADInMC n. 827-AP. Rel. Min.
Paulo Brossard RTJ
v. 148, t. 3, p. 693; ADInMC n. l. 275-SP. Rel. Min. Marco Aurélio. RTJ \: 162, t. 3, p. 868; ADInMC n.
L. 391 -SP. Rel. Min. Celso de Mello. DJ
l de 28/11/1997, p. 62.216) tampouco
instituir um conselho destinado
ao controle e à fiscalização do sangue
(Supremo Tribunal Federal. Pleno. ADInMC n. l .275-SP. Rel. Min. Marco Aurélio. RTJ v. 162, t. 3, p. 868-870). Assim também se mostra
inconstitucional estipular a criação de conselho dotado de diversificada
composição e representatividade, destinado a orientar os órgãos de comunicação
social do Estado, suas fundações e entidades sujeitas ao seu controle (Supremo
Tribunal Federal. Pleno. ADInMC n. 821 -RS. Rel. Min. Octavio Galotti. DJ
de 7/5/1993, p. 8.327), tanto
quanto dispor sobre a organização,
funcionamento de certas entidades ou estatuto
de seus servidores (Supremo Tribunal Federal. Pleno. ADInMC n. 282-MT. Rel.
Sydney Sanches. RTJ v. 161, t. 2, p. 384-402; atribuindo à Defensoria Pública
autonomia administrativa).”[5](gn.)
Na
verdade, a iniciativa das leis representa, sobretudo, um momento de escolha
política, seja da matéria, seja dos interesses suscetíveis de tutela,
orientando-se, portanto, a determinadas finalidades e a um específico objeto.
Quando a competência para o impulso não siga a tendência à dispersão e tenha
sido reservada, excepcionalmente, a certos órgãos, isso significa que é deles a
responsabilidade de formular as propostas de transformação do ordenamento normativo.
É
claro que a reserva do poder de iniciativa das leis a um órgão exterior ao
Legislativo produz graves conseqüências sobre toda a disciplina do processo legislativo:
tal orientação constitucional reduz drasticamente os amplos poderes de escolha
dos órgãos parlamentares. Todavia, é o próprio ordenamento constitucional que reserva
um feixe de matérias cuja iniciativa de lei pertence ao Chefe do Executivo, sob
pena de inconstitucionalidade. É o caso dos autos. Violou o referido ato
normativo, entre outros, o princípio da reserva de administração, que, nos
dizeres do Min. Celso de Mello (AÇAO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N.
2.364-1 ALAGOAS):
“A reserva de administração -- segundo adverte J. J. GOMES
CANOTILHO ("Direito Constitucional", p. 810/811, 5a
ed. , 1991, Almedina, Coimbra) --
constitui limite material à
intervenção normativa do Poder Legislativo, pois, enquanto princípio fundado na
separação orgânica e na especialização funcional das instituições do Estado, caracteriza-se
pela identificação, no sistema constitucional,
de um "núcleo funcional (...) reservado à administração
contra as ingerências do parlamento", por envolver matérias, que, diretamente
atribuídas à instância executiva de
poder, revelam-se insuscetíveis de deliberações concretas por parte do
Legislativo, desvestido, portanto, sob tal perspectiva, de qualquer
prerrogativa que lhe permita praticar, com repercussão sobre os
servidores públicos vinculados
ao Poder Executivo, verdadeiros atos administrativos
referentes à investidura funcional ou à sua eventual invalidação.”
É
de ver que a lei inquinada, ao contrário do sustentado pela Câmara, causa
prejuízo ao consumidor, na medida em que trouxe exigências que beneficiam os
fraudadores, tais como “a alteração significativa no padrão de qualidade”;
exigência de instauração de processo administrativo instruído com “I – cópia da
sentença penal condenatória transitada em julgado; II – cópia autenticada dos
laudos periciais que evidenciem a adulteração do combustível ou a violação de
lacres ou outros mecanismos de segurança.” Como se nota, é requisito para instauração
do processo administrativo a cópia da ação penal, com trânsito em julgado,
sabidamente demorado ante a existência de sucessivas instâncias. Pode ocorrer,
ainda, que não tenha sido instaurado o processo criminal, impedindo o trâmite
do processo administrativo.
Assim
sendo, e por entender que ao Legislativo não é dada a iniciativa de lei em
matéria de disciplinamento da Administração, matéria cometida ao Executivo, o parecer
é pela procedência da ação, para que
seja declarada inconstitucional a Lei
Complementar nº 116, de 3 de janeiro de 2005, do Município de Taubaté.
São Paulo, 28 de julho de 2008.
MAURÍCIO
AUGUSTO GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA,
no exercício de função delegada
pelo
Procurador-Geral de Justiça
[1] Christian Starck.
'El Concepto de ley en la constitucion alemana', Madrid: CEC, 1979,
pág.73.
[2] "...O poder governante é que goza, de fato (e talvez de direito) de
uma estabilidade garantida, necessária para a tradução em atos de um
'indirizzo'. É, em geral, delegatária, também, de importantes porções da função
legislativa. Ao legislativo, sua função torna-se aquela convalidar-confirmar
solenemente o 'indirizzo politico' decidido pelo Poder Governante revestindo
as medidas sob a forma de lei. O bloqueio - com voto negativo – ao 'indirizzo'
do Poder governante, ou a remoção formal deste ultimo - quando o regime o admite
- deve ficar, pelas exigências do modelo, eventos absolutamente excepcionais. O
Legislativo controla o Poder governante também com outros meios (investigações,
comissões parlamentares etc). Provê as leis para a integração normativa das
escolhas feitas no 'indirizzo governativo'." Giovanni Bognetti, 'In' 'Digesto Delle Discipline Pubblicistiche', p. 376, XI, UTET.
[3] MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 7.º ed., São Paulo: Malheiros, 1990,
págs. 544/545.
[4] Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Do Processo Legislativo. São Paulo:
Saraiva, 2001, pág. 271.
[5] SAMPAIO. José Adércio Leite. A Constituição Reinventada pela Jurisdição
Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, pág. 490.