Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo
Órgão Especial
Ação Direta de
Inconstitucionalidade 163.415-0/4-00
Requerentes:
Sindicato da Indústria da Fabricação do Álcool do Estado de São Paulo e
Sindicato da Indústria do Açúcar no Estado de São Paulo
Requeridos:
Prefeito e Câmara Municipal de Cedral
Parecer
Ação
direta de inconstitucionalidade. Lei municipal proibitiva da queimada da palha
de cana-de-açúcar. Competência legislativa municipal para proteção do
meio-ambiente. Precedentes do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo. Parecer pela improcedência da ação.
Egrégio Tribunal,
Colendo Órgão
Especial,
Douto Relator:
1. Trata-se de ação direta de
inconstitucionalidade impugnando o art. 1º da Lei n. 1.911, de 28 de agosto de
2007, do Município de Cedral, que proíbe a queima da palha da cana-de-açúcar
como método auxiliar de colheita em seu território, alegando incompatibilidade
vertical com os arts. 144, 152, III, 192 e § 1º, e 193, XX e XXI, da
Constituição Estadual, na medida em que invadiu competência do art. 24, VI, da
Constituição Federal (fls. 02/55).
2. A liminar requerida foi denegada (fls.
183/191) em decisão mantida (fl. 248) após pedido de reconsideração (fls.
196/202).
3. O douto Procurador-Geral do Estado
manifestou-se pela procedência da ação (fls. 258/273), seguindo-se informações
do Prefeito e da Câmara Municipal (fls. 305/308, 311/318).
4. É o relatório.
5. A lei local proíbe expressamente a
queima da palha da cana-de-açúcar como método auxiliar de colheita em seu
território.
6. Impõe-se a análise da competência
municipal para disciplina do assunto, abordagem que envolve obrigatoriamente os
dispositivos constitucionais tido por hostilizados.
7. A lei local foi motivada com a finalidade precípua
da garantia do bem estar da população da cidade e do Município de Cedral, que
em épocas de seca padece com os efeitos deletérios de todo o tipo de queimada
de vários materiais de fácil combustão ao ar livre, dentre elas as queimadas da
palha da cana-de-açúcar, que despejam toneladas de gases tóxicos na atmosfera
local, sobretudo o ozônio resultante da combinação em combustão, de gases
primários como o gás carbônico e outros nitrosos.
8. A proibição da queima da palha da
cana-de-açúcar, à evidência, não coloca em
perigo fatores sensíveis da economia regional envolvendo o modo de
despalhamento para a colheita desta cultura, já que sabidamente o setor vem, a
cada ano, aumentando significativamente a quantidade de hectares de cana crua
colhidos mecanicamente. Este aspecto repele o argumento de que o interesse é
somente regional ou Estadual, até porque a norma abstrata não pode ser
totalmente divorciada da possibilidade de aplicação concreta - para isso ela é
feita, aplicação ao caso concreto – e como já repisado, os munícipes locais são
os primeiros a sofrerem com os efeitos das queimadas da palha da cana-de-açúcar
no território do município.
9. O Município tem, indiscutivelmente,
competência para disciplina da matéria objeto da lei local impugnada, premissa
extraída da leitura de dispositivos da Constituição Federal (art. 182, § 1º e
225) e da Constituição Estadual (arts. 191 e 192), sendo relevante destacar que
está legislando sobre atividade econômica privada no âmbito de seu território e
para os fins de seu preponderante interesse local (art. 30, I, II e VIII,
Constituição Federal).
10. Assim, ad esempia, foi fixado por este egrégio Tribunal de Justiça:
“Inconsistente
se afigura o reclamo, na medida em que não se vislumbra a inconstitucionalidade
do artigo 157, da Lei Orgânica do Município de Mauá.
A
propósito, justificado ficou, de passagem, que ‘os direitos de livre
concorrência não são absolutos, podendo sofrer limitações em prol do interesse
social’ (fls.220).
Realmente,
embora a livre concorrência tenha sido ditada constitucionalmente em princípio
geral da atividade econômica (art. 170, IV, da Constituição Federal), a defesa
do meio ambiente também o foi (inciso VI), o que ‘tem o efeito de condicionar a
atividade produtiva ao respeito do meio ambiente e possibilita ao Poder Público
interferir drasticamente, se necessário, para que a exploração econômica
preserve e ecologia’ (Curso de Direito Constitucional Positivo, José Afonso da
Silva, 11ª ed., 1996, Malheiros Editores, SP., pág.728).
Nessa ordem
de raciocínio, de toda evidência que a lei municipal não invadiu esfera de
competência exclusiva do Estado ou da União, traçando parâmetros para a
execução de atividade de fins lucrativos que, indiscutivelmente, deteriora o
meio ambiente, vez que lhe cabe ‘o controle do uso, parcelamento e ocupação do
solo urbano’ (artigo 30, VIII, da Carta Magna) cumprindo-lhe, ainda, ‘proteger
o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas’ (artigo 23,
VI, da Constituição Federal)” (TJSP, AC 240.742-5/5-00, Mauá, Rel. Des. Soares
Lima).
11. A doutrina precisa exatamente que o Município é detentor de competência para tratamento dos assuntos de seu interesse, notadamente em meio-ambiente, também por decorrência do art. 23, VI, da Constituição Federal:
“Existem matérias sobre as quais tanto
a União, quanto os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem legislar,
sendo os poderes compartilhados entre as unidades federativas. Podemos ditar,
como exemplos, a proteção e defesa da saúde, a proteção do meio ambiente e
controle da poluição. Nesses casos, diz-se que a legislação é concorrente, no
sentido de que cada ente federativo possui um quinhão do poder legislativo,
nessa partilha de competências. A matéria não é exclusiva e nem privativa de
ninguém, podendo, pois, ser objeto de legislação federal, estadual, distrital
ou municipal” (Joaquim Castro Aguiar. Competência e Autonomia Dos Municípios na
Nova Constituição, Forense: Rio de Janeiro, 1995, p. 24).
“A Constituição Federal, no art. 23,
partilhou entre os vários entes da Federação um vasto rol de matérias em que
todos, isolados, em parceria ou em conjunto, podem atuar segundo regras
pré-estabelecidas. É a chamada competência comum. Ela se distingue da
competência concorrente, que se verifica quando em relação a uma só matéria
concorre mais de uma pessoa política” (Vladimir Passos de Freitas. A
Constituição Federal e a Efetividade das Normas Ambientais, Revista dos
Tribunais: São Paulo, 2ª ed., 2002, p. 75).
“inegavelmente, cabe ao Município, como
poder público, dispor sobre regras de direto, legislando em comum com a União e
o Estado, com fundamento no art. 23,VI, CR. Portanto, quando um Município,
através de lei – mesmo que se lhe reconheça conteúdo administrativo, em se
tratando de competência comum -,
disciplinar esta matéria, fa-lo-á no exercício da competência comum,
peculiarizando-lhe a ordenação pela compatibilidade local, e consideração a
esta ou àquela vocação sua” (José Nilo de Castro. Perspectivas do Direito
Municipal. Ciência Jurídica, set-out. 1993, vol.53, p.131).
“a competência do Município é sempre
concorrente com a da União e a dos Estados-membros, podendo legislar sobre
todos os aspectos do meio ambiente, de acordo com sua autonomia municipal
(art.15 da CF), prevalecendo sua legislação sobre qualquer outra, desde que
inferida do seu predominante interesse; não prevalecerá em relação às outras
legislações, nas hipóteses em que estas forem diretamente inferidas de suas
competências privativas, subsistindo a do Município, entretanto, embora
observando as mesmas” (Toshio Mukai. Legislação, meio ambiente e autonomia
municipal. Estudos e Comentários: RDP, vol. 79, p.131).
12. Neste sentido, reverbera a
jurisprudência do colendo Órgão Especial deste egrégio Tribunal de Justiça:
“Ação Direta de Inconstitucionalidade
de dispositivos de lei municipal – Suposta antinomia destes com regras da
Constituição estadual e de Lei também do Estado de São Paulo – Questão de
queimadas, proibidas pela cidade – Conflito aparente de autonomias – Solução em
favor das regras municipais de proteção do meio ambiente equilibrado e da saúde
da população, segundo o interesse local – Ação improcedente” (TJSP, ADI
129.132-0/3, Rel. Des. Jacobina Rabello, 21-03-2007).
“Ação Direta de Inconstitucionalidade
de dispositivo de lei municipal – Acusada antinomia deste com regras da
Constituição estadual e de Lei também do Estado de São Paulo – Questão a
envolver queimadas de palha de cana-de-acúcar, proibidas pela cidade – Conflito
aparente de autonomias – Solução em favor das regras municipais de proteção do
meio ambiente equilibrado e da saúde da população, segundo o interesse local –
Ação julgada improcedente” (TJSP, ADI 146.999-0/3-00, Rel. Des. Jacobina
Rabello, m.v., 14-11-2007).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
LEI MUNICIPAL QUE PROÍBE A QUEIMA DE PALHA DE CANA-DE-AÇÚCAR E O USO DE FOGO
QUEIMA DE PALHA DE CANA-DE-AÇÚCAR.
MÉTODO PRIMITIVO, QUE PODE SER VANTAJOSAMENTE SUBSTITUÍDO PELA MECANIZAÇÃO.
EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL DO ÓRGÃO ESPECIAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. PRECEDENTES
QUE EVIDENCIAM ESSA EVOLUÇÃO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
IMPROCEDENTE” (TJSP, ADI 126.780-0/8-00, Rel. Des. Renato Nalini, m.v.,
24-10-2007).
13. Argumento que alicerça a conclusão da
competência normativa local radica-se no Código Florestal, como bem assentou o
Superior Tribunal de Justiça:
“2. Segundo a disposição do art. 27 da Lei n. 4.771/85, é proibido o uso de fogo nas florestas e nas demais
formas de vegetação – as quais
abrangem todas as espécies –, independentemente de
serem culturas permanentes ou renováveis. Isso ainda vem corroborado no parágrafo
único do mencionado artigo, que ressalva a possibilidade de se obter permissão do Poder Público
para a prática de queimadas em
atividades agropastoris, se as peculiaridades regionais assim indicarem” (STJ,
REsp 439.456-SP, 2ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, 03-08-2006, v.u.,
DJ 26-03-2007, p. 217).
14. A alusão na lei federal a
excepcionalidade de permissão do poder público para promoção de queimada está
subordinada à indicação das peculiaridades regionais. A previsão legal é
demonstrativa da competência municipal na medida em que somente nesse plano
federativo poderão ser sopesadas as peculiaridades regionais.
15. Condicionante da atividade econômica e
do direito de propriedade a defesa do meio-ambiente ostenta caráter de inegável
transcendência no esquema federativo e se esparge para a partilha de
competências justificando a adoção de normas, no âmbito local, que atenda às
suas peculiaridades, desde que guardadas as esferas da competência normativa de
outros entes. No caso em exame, não se afigura potencial nem concreta a invasão
da competência normativa federal ou estadual na medida em que o poder público
municipal exerce sua capacidade legiferante sem invadir o círculo das atribuições
dos outros entes. Neste sentido:
“É lícito ao Poder Público - qualquer que seja a
dimensão institucional em que se posicione na estrutura federativa (União,
Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) - autorizar, licenciar ou
permitir a execução de obras e/ou a realização de serviços no âmbito dos
espaços territoriais especialmente protegidos, desde que, além de observadas as
restrições, limitações e exigências abstratamente estabelecidas em lei, não
resulte comprometida a integridade dos atributos que justificaram, quanto a
tais territórios, a instituição de regime jurídico de proteção especial (CF,
art. 225, § 1º, III)” (STF, ADI-MC 3.540-DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de
Mello, 01-09-2005, DJ 03-02-2006, p. 14).
16. Opino pela improcedência da ação.
São
Paulo, 15 de setembro de 2008.
MAURÍCIO AUGUSTO GOMES
PROCURADOR
DE JUSTIÇA
no exercício de função delegada
pelo Procurador-Geral de Justiça