Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 163.458.0/0-00

Autor: Prefeito Municipal de Tietê

Objeto: Lei Municipal nº 2.936, de 10 de março de 2008, de Tietê

 

Ementa: 1)Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal. Instituição da Política Municipal de Mudanças Climáticas. Criação de programa governamental, de órgão, e de fundo financeiro. 2)Lei de iniciativa parlamentar. Violação de reserva de iniciativa do Executivo (criação de órgão e matéria orçamentária). Quebra da separação de poderes (criação de programa governamental). Incompatibilidade vertical com dispositivos da Constituição Paulista (art.5º; art.24 §2º n.2; art.25; art.47 II e XIV; art.144; art.174). 3)Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

1)Relatório.

 

         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Tietê, tendo como alvo a Lei Municipal nº 2.936, de 10 de março de 2007, daquele Município, sob a alegação de: (a) vício de iniciativa; (b) quebra da separação de poderes; (c) criação de despesas sem indicação da fonte de receitas. Apontou assim para a violação dos seguintes dispositivos da Constituição Paulista: art.5º, 25, 37, 47 II e XIV, 144, 174, e 176 I.

 

         Foi deferida a liminar, determinando-se a suspensão do ato normativo impugnado (fls.89/91).

 

         Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a defesa do ato normativo (fls.100/102).

 

         A Presidência da Câmara Municipal prestou informações, sustentando a constitucionalidade da lei (fls.104/106).

 

         Este é o breve relato do que consta dos autos.

 

2)Do ato normativo impugnado.

 

         A Lei Municipal nº 2.936, de 10 de março de 2008, de Tietê, fruto de iniciativa parlamentar, que “Institui a Política Municipal de Mudanças Climáticas (PMMC) e dá outras providências”, tem a seguinte redação:

 

“LEI Nº 2.936/2007

 

"Institui a Política Municipal de Mudanças Climáticas (PMMC) e dá outras providências".

 

A CÂMARA MUNICIPAL DECRETA:

 

Artigo 1º - Esta Lei institui a Política Municipal de Mudanças Climáticas (PMMC), dispondo sobre seus princípios, diretrizes, objetivos e instrumentos.

 

DOS PRINCÍPIOS

 

Artigo 2º - As ações empreendidas no âmbito da Política Municipal de Mudanças Climáticas serão orientadas pelos seguintes princípios:

I - do desenvolvimento sustentável;

II - da prevenção:

III - da precaução;

IV - do acesso às informações ambientais;

V - da participação de todos os cidadãos interessados;

VI - das responsabilidades comuns, porém diferenciadas dos Estados Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima na proteção do sistema climático;

VII - da cooperação internacional.

 

DOS OBJETIVOS

 

Artigo 3º - A Política Municipal de Mudanças Climáticas visa coordenar as medidas adotadas pela Administração Pública Municipal que estimulem a redução e o seqüestro das emissões de gases de efeito estufa, por meio da consecução dos seguintes objetivos específicos:

I - o incentivo ao uso de tecnologias mais limpas;

II - a conscientização ambiental;

III - o estímulo a práticas empresariais que visem à redução ou seqüestro dos gases de efeito estufa;

IV - a compatibilização do desenvolvimento econômico com a preservação do meio ambiente e a realização da justiça social;

V - a promoção da pesquisa e a disseminação do conhecimento acerca das mudanças climáticas.

DAS DIRETRIZES

 

Artigo 4º - São diretrizes da Política Municipal de Mudanças Climáticas:

  I - a articulação entre as ações do Poder Público Municipal com os diversos segmentos do setor privado;

  II - a coordenação com outras políticas e programas que possam contribuir com a proteção do sistema climático;

  III - a cooperação entre Município, Estado e União no desenvolvimento de programas e ações conjuntas;

  IV - facilitar e agilizar o encaminhamento e aprovação dos projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo perante a Autoridade Nacional Designada;

  V - a promoção do desenvolvimento sustentável do Município de Tietê.

 

DOS INSTRUMENTOS

 

Artigo 5º - Para alcance dos objetivos da Política Municipal de Mudanças Climáticas, serão utilizados os seguintes instrumentos:

I - incentivos econômicos e financeiros para alteração de matrizes energéticas;

II - estabelecimento de padrões ambientais para construção civil;

III - disponibilização de linhas de crédito e financiamento para alterações e construções de edificações sustentáveis;

IV - inventários de emissões de gases de efeito estufa das atividades econômicas do âmbito do município;

V - desenvolvimento de linhas de pesquisa por agências de fomento municipais;

VI - planos de ação por setores ou categorias por fontes de emissões;

VII - proposição de projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo.

 

DO FUNDO MUNICIPAL DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS

 

 Artigo 6º - Fica criado o Fundo Municipal de Mudanças Climáticas (FMMC), com a finalidade de viabilizar a consecução dos objetivos da Política Municipal de Mudanças Climáticas (PMMC).

 

 Artigo 7º - O Fundo Municipal de Mudanças Climáticas (FMMC) será composto dos seguintes recursos:

I - dotações orçamentárias provenientes da União, Estado e do Município;

II - recursos resultantes de doações, valores, bens móveis e imóveis, que venha a receber de pessoas físicas e jurídicas, sejam de direito público ou privado;

III - recursos advindos da comercialização de Reduções Certificadas de Emissões (RCEs) de titularidade da Administração Pública Municipal;

IV - outros valores destinados por lei.

 

Artigo 8º - O Fundo Municipal de Mudanças Climáticas (FMMC) será gerido pelo Conselho Gestor do Fundo Municipal de Mudanças Climáticas (FMMC), sediado na Prefeitura Municipal de Tietê.

 

Parágrafo Único - A composição e funcionamento do Conselho Gestor do Fundo Municipal de Mudanças Climáticas (FMMC) serão definidos por Decreto.

 

DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

 

Artigo 9º - Esta lei entrará em vigor na data de sua afixação no Paço Municipal e será publicada na Imprensa Oficial do Município, revogadas as disposições em contrário.”

 

         Entretanto, em que pese a boa intenção do Poder Legislativo Municipal, retratada no ato normativo direcionado à defesa do meio ambiente, o diploma é verticalmente incompatível com nossa sistemática constitucional.

 

3)Mérito: vício de iniciativa e separação de poderes.

 

         A lei em epígrafe, fruto de iniciativa parlamentar, apresenta vertical incompatibilidade com a Constituição do Estado, tanto por vício de iniciativa como pela quebra da regra da separação de poderes, na medida em que: (a) cria programa de governo (a denominada “Política Municipal de Mudanças Climáticas”), delineando inclusive de forma pormenorizada suas diretrizes e instrumentos; (b) cria órgão na Administração Pública Municipal, o denominado Conselho Gestor do Fundo Municipal de Mudanças Climáticas; (c) trata de matéria orçamentária, criando o Fundo Municipal de Mudanças Climáticas.

 

         Nesse contexto, fica patenteada a ocorrência: (a) da quebra da separação de poderes (art.5º, 47 II e XIV da Constituição Paulista); (b) do vício de iniciativa, por criação de órgão administrativo e regulação de matéria orçamentária (art.24 §2º n.2, e art.174 da Constituição Paulista); (c) de criação de novas despesas sem a indicação da respectiva fonte de receita (art.25 da Constituição do Estado). Todas estas diretrizes são aplicáveis aos Municípios por força do art.144 da Constituição Paulista.

 

         A iniciativa reservada do Executivo é fruto de disciplina expressa, não podendo o Poder Legislativo dar início a projeto de lei destinado à criação de órgão ou mesmo instituição de Fundo, que diz respeito a matéria orçamentária.

 

         Como salienta Régis Fernandes de Oliveira, “a Constituição estabeleceu a competência exclusiva do Presidente da República para iniciar a tramitação dos projetos orçamentários. Em segundo lugar, os projetos são eminentemente técnicos, pressupondo informações sobre a arrecadação de recursos e estabelecendo prioridades inseridas nas competências do Chefe do Executivo” (Curso de direito financeiro, São Paulo, RT, 2006, p.338/339).

 

         Na mesma senda, pondera Ricardo Lobo Torres, a respeito da unidade orçamentária, que ganhou ênfase na Constituição de 1988, que este princípio “sinaliza que todas as despesas e fundos da mesma pessoa jurídica devem se unificar finalisticamente no mesmo orçamento. (...) A unificação dos orçamentos teve o mérito de permitir o controle da utilização de recursos do orçamento fiscal e da seguridade social para suprir necessidade ou cobrir déficit de empresas, fundações e fundos (art.167 VIII, CF)” (Tratado de direito constitucional financeiro e tributário, vol V, Rio de Janeiro, Renovar, 2000, p.79).

 

         De outro lado, há quebra do princípio da separação de poderes nos casos em que o Poder Legislativo edita um ano normativo que configura, na prática, ato de gestão executiva. Quando o legislador, a pretexto de legislar, administra, configura-se o desrespeito à independência e harmonia entre os poderes.

 

         E isso se verifica quando o ato normativo que estabelece diretrizes políticas ou programas de governo.

 

Nestes termos, a disciplina legal findou, efetivamente, invadindo a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, envolvendo o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos Poderes.

 

Não é necessário que a lei diga o que o Poder Executivo pode ou não fazer dentro de sua típica atividade administrativa. Se o faz, torna-se patente que a atividade legislativa imiscuiu-se no âmbito de atuação do administrador, fazendo-o de modo inconstitucional.

 

         Cumpre recordar, nesse passo, o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regras para a Administração; a Prefeitura as executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

 

         Exatamente esta é a hipótese dos autos.

 

         Em situações análogas esse E. Órgão Especial tem reconhecido a inconstitucionalidade do ato normativo por quebra do princípio de separação de poderes.

 

         É o que se infere dos julgados a seguir transcritos, mutatis mutandis aplicáveis ao caso em exame:

 

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (ADI n. 53.583-0, rel. Des. Fonseca Tavares).

 

“Ação direta de inconstitucionalidade. Artigo 2º da Lei Municipal 10975/2006, de Ribeirão Preto. Legislação, de iniciativa parlamentar, que determina a obrigatoriedade da inscrição ‘Patriota brasileira assassinada pela ditadura militar’ em placa indicativa de logradouro ou próprio municipal. Impossibilidade. Matéria de cunho eminentemente administrativo atinente a planejamento e ordenamento urbano. Função legislativa da Câmara de Vereadores possui caráter genérico e abstrato. Lei dispôs de maneira concreta, com caráter de obrigatoriedade, afrontando o princípio da separação dos poderes. Procedência” (ADI 147.772.0/5-00, rel. des. Maurício Ferreira Leite, j. 03.10.2007).

 

“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei Municipal n° 6.641, de 31 de julho de 2006, que dispõe sobre a obrigatoriedade de fixação de quadro informativo com nome, registro e especialidade de profissional médico de plantão nos pronto-socorros e unidades básicas de saúde - Ato típico de administração, cujo exercício e controle cabe ao Chefe do Poder Executivo - Ofensa ao princípio da separação dos poderes - Criação de despesas não previstas no orçamento - Afronta aos artigos 5º, 25 e 144, ambos da Constituição Estadual - Ação procedente.”(ADI 149.363-0/3-00, rel. des. Debatin Cardoso, j. 03.10.2007).

 

         Acrescente-se que em casos como o presente esse Colendo Órgão Especial tem reconhecido a inconstitucionalidade da norma com fundamento no art.25 da Constituição do Estado. Confiram-se, a título de exemplificação, recentes julgados adiante indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u..

 

4)Conclusão.

 

         Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência desta ação direta, com a declaração da inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 2.936, de 10 de março de 2008, de Tietê.

 

São Paulo, 04 de julho de 2008.

 

 

 

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça