AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N.º 163.462.0/8-00
Requerente :
Prefeito do Município de Tietê
Requerido : Presidente da Câmara Municipal de Tietê
Objeto :
Lei n.º 2.939, de 10 de março de
2008
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Colendo Órgão Especial
Senhor Desembargador Relator
RELATÓRIO
O Prefeito Municipal de Tietê propôs a presente ação direta objetivando a declaração de inconstitucionalidade da
Lei n.º 2. 939, de 10 de março de 2008, que 'dispõe
sobre a autorização ao Poder Executivo para providenciar que a Maternidade da
Santa Casa de Misericórdia de Tietê realize gratuitamente o exame de
diagnóstico clínico de retinopatia da prematuridade, e dá outras providências’. Entende o autor ser o ato normativo contrário à
Constituição do Estado de São Paulo, tendo em vista que
trata-se de lei, cuja matéria é de competência exclusiva do Chefe do Poder
Executivo, violando o princípio da independência e harmonia dos poderes, além
de implicar na criação de despesa pública,
sem , no entanto, dela constar a indicação dos recursos disponíveis,
para atender aos novos encargos. Foi concedida medida liminar, para suspender a
eficácia da lei impugnada, fls. 94.
A Câmara Municipal forneceu suas informações a fls. 107/109, defendendo a
constitucionalidade da lei. A D. Procuradoria-Geral
do Estado foi citada. Há que
se acrescentar que o projeto de lei foi vetado pelo Executivo, tendo sido
rejeitado o veto aposto.
MANIFESTAÇÃO
1) Dos
fundamentos da impugnação.
A Lei
n.º 2. 939, de 10 de março de
2008, que 'dispõe sobre a autorização ao Poder Executivo para providenciar que a
Maternidade da Santa Casa de Misericórdia de Tietê realize gratuitamente o
exame de diagnóstico clínico de retinopatia da prematuridade, e dá outras providências’. (fls. 25), tem
o seguinte teor:
“Art.1º.
Fica o Poder Executivo autorizado a adquirir os equipamentos e tomar as demais
providências necessárias a fim de que a “Maternidade Dr. Franklin Alves de
Moura” da Santa Casa de Misericórdia de
Tietê realize, gratuitamente, exame de diagnóstico clínico de retinopatia da
prematuridade, catarata e glaucoma congênitos, infecções, traumas de parto e
cegueira em todas as crianças nascidas em suas dependências, através da técnica
como “Reflexo Vermelho” (Teste do Olhinho).
§1º - O
exame a que se refere o “caput” deste artigo será realizado segundo a
orientação técnica do pediatra responsável pela respectiva Maternidade.
§2º - Caso
o resultado seja negativo, a família deverá receber um relatório sobre a
realização do exame apontado o seu resultado.
Artigo 2º
- As famílias dos recém-nascidos receberão,
quando das altas médicas, relatório dos exames e dos procedimentos realizados,
contendo esclarecimentos e orientação.
Artigo 3º -
As despesas com a execução da presente Lei correrão por conta de verbas
próprias do Orçamento vigente.
Artigo 4º -
Esta lei entrará em vigor na data de sua afixação no Paço Municipal, e será
publicada na Imprensa Oficial do Município, revogando-se as disposições em contrário”
2)Mérito:
iniciativa reservada e separação de poderes.
O primeiro
aspecto que merece análise diz respeito ao vício de iniciativa, bem como ao
princípio da separação dos Poderes, que decorrem do disposto no art.5º, art.37
e art.47 incisos II e XIV, todos da Constituição do Estado de São Paulo,
aplicáveis aos Municípios por força do art.144 da referida Carta.
É ponto pacífico na doutrina bem como na
jurisprudência que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de
administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e
execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder
Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos
normativos revestidos de generalidade e abstração.
De outra sorte, decorre da sistemática da
separação de Poderes que há certas matérias cuja iniciativa legislativa é
reservada ao Poder Executivo.
A propósito, a Constituição do Estado
prescreve iniciativa privativa do Chefe do Executivo para leis que versem, em
síntese, sobre: cargos, funções e empregos públicos na administração direta e
indireta e sua remuneração; criação e extinção de órgãos na administração
pública; regime jurídico dos servidores públicos (cf. art.24, §2º, n.
De outro lado, a Constituição do Estado
de São Paulo também determina que cabe ao Executivo exercer a direção superior
da Administração Estadual, bem como a prática de atos de administração (art.47,
incisos II e XIV).
Parte o requerente da idéia de que
legislar a respeito da prestação de serviços de saúde estaria na esfera
privativa de iniciativa do Chefe do Poder Executivo. Ademais, o planejamento,
deliberação, organização e realização
dos serviços públicos de saúde seriam atos de gestão, da esfera exclusiva da
Administração.
O princípio da independência e harmonia
entre os Poderes, adotado expressamente no ordenamento constitucional
brasileiro, não coloca o Executivo em posição de preeminência, e o Legislativo
em situação de mera coadjuvação. É indispensável vislumbrar na
proporcionalidade de forças na formulação das opções políticas do Estado,
decorrente do sistema de separação associado aos freios e contrapesos (checks and balances), que Executivo e
Legislativo, atuando em suas respectivas esferas de atribuição, possuem a mesma
relevância política.
Assim como o Executivo não deve sofrer
indevida interferência em sua primacial função de administrar (planejamento,
direção, organização e execução das atividades da Administração), o Legislativo
não deve ver minimizada sua atividade de legislar. Afinal, em última análise,
nosso regime democrático é representativo, e o Poder Legislativo, em sede de
elaboração legislativa, reflete a própria voz da vontade popular.
Entendimento diverso significa admitir,
como perfil do Estado Democrático brasileiro, numa imagem representativa, uma
balança deslocada para um lado de maior importância e prestígio: o lado do
Poder Executivo. Um Executivo hipertrofiado em suas atribuições e poderes,
ladeado por um Legislativo que se limitará a chancelar iniciativas daquele.
Não parece ter sido esta a opção do
Constituinte.
Note-se, de início, que a essência da
separação de Poderes, como ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho, é a “proteção da independência de determinado
Poder, como ocorre com a de iniciativa em favor do Judiciário, que aliás,
procede da inspiração que em Montesquieu sugeria a atribuição de veto ao
Executivo, ou a redução das despesas públicas”(Do processo legislativo, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p.147).
Como anota José Afonso da Silva, nos
casos de iniciativa reservada aos Chefes do Executivo só estes “estão em condições de saberem quais são
esses interesses e como fazerem para resguardá-los” (Processo constitucional de formação das leis, 2ªed., São Paulo,
Malheiros, 2006, p.179).
Deve-se notar, entretanto, que a regra em
nosso regime constitucional é a livre iniciativa legislativa, que decorre do
art.61 caput da CF, ao passo que as
hipóteses de iniciativa reservada são excepcionais.
Como tal é curial que regras de exceção sejam interpretadas restritivamente,
sem a possibilidade de extensão por integração ou interpretação analógica.
Lembrando o brocardo latino segundo o qual “exceptiones sunt strictissimae
interpretanionis”, há muito Carlos Maximiliano anotava que “as disposições excepcionais são
estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas
jurídicas ou contra o direito comum, por isso não se estendem além dos casos e
tempos que designam expressamente” (Hermenêutica
e aplicação do direito, 18ªed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1999,
p.227).
O Pretório Excelso já assentou que as hipóteses indicadas
pelo texto constitucional como casos de iniciativa legislativa privativa do
Executivo, assumindo o caráter de direito excepcional, na expressão de Carlos
Maximiliano, devem ser interpretadas de forma restritiva. Confira-se:
"O
respeito às atribuições resultantes da divisão funcional do Poder constitui
pressuposto de legitimação material das resoluções estatais, notadamente das
leis. Prevalece, em nosso sistema jurídico, o princípio geral da legitimação
concorrente para instauração do processo legislativo. Não se presume, em
conseqüência, a reserva de iniciativa, que deve resultar — em face do seu
caráter excepcional — de expressa
previsão inscrita no próprio texto da Constituição, que define, de modo
taxativo, em numerus clausus, as hipóteses em que essa cláusula de
privatividade regerá a instauração do processo de formação das leis. O
desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo legislativo, quando resultante
da usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz hipótese de
inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria
integridade do diploma legislativo assim editado, que não se convalida,
juridicamente, nem mesmo com a sanção manifestada pelo Chefe do Poder Executivo
(...).”(ADI 776-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-10-92, DJ de
15-12-
"A
disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente
constitucional, pois residem, no texto da Constituição — e nele somente —, os
princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles
que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. A teoria geral do processo legislativo, ao
versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se
legitima — considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder
de agir em sede legislativa — se houver,
no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja.
Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito
positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao
Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa."
(MS 22.690, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-
Tornemos então ao caso em exame.
Ao
editar lei prevendo a possibilidade realização gratuita de exame de “exame de
diagnóstico clínico de retinopatia da prematuridade, catarata e glaucoma
congênitos, infecções, traumas de parto e cegueira em todas as crianças em suas
dependências, através da técnica conhecida como “Reflexo Vermelho”, o
legislador acabou por invadir a esfera de gestão administrativa, que cabe ao
Poder Executivo e, envolve, o planejamento,
a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à
prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos Poderes
(art.5º da Constituição do Estado).
Cumpre recordar aqui o ensinamento de
Hely Lopes Meirelles, anotando que “a
Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos
tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração;
a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em
atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o
Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que
residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º)
extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara,
realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p.708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis de efeitos concretos, ou que equivalem na prática a verdadeiros atos de
administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os
Poderes. Essa é exatamente a hipótese verificada nos autos.
Em
trabalho, publicado na Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos da
Instituição Toledo de Ensino (Bauru, n. 29, ago/nov. 2000, pp. 259-267),
disponível também na internet (Endereço eletrônico: www.srbarros.com.br), sustenta o Professor
Sérgio Resende de Barros:
“Em 17
de março de 1982 – ainda sob a Constituição (Emenda Constitucional nº 1/69)
anterior à atual – o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou representação
(nº 993-9) por inconstitucionalidade de uma lei estadual (Lei nº 174, de
8/12/77, do Estado do Rio de Janeiro) que autorizava o Chefe do Poder Executivo
a praticar ato que já era de sua competência constitucional privativa. Nesse
julgamento, decidiu, textualmente: O só fato de ser autorizativa a lei não
modifica o juízo de sua invalidade por falta de legítima iniciativa. Não
obstante a clareza do acórdão (Diário da Justiça de 8/10/82, p. 10187, Ementário
nº 1.270-1, RTJ 104/46), persistiu por toda a Federação brasileira, nos níveis
estadual e municipal, a prática de "leis" autorizativas (....).
Insistente na prática legislativa brasileira, a
"lei" autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares,
para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos
materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias
administrativas. Mediante esse tipo de "leis" passam eles, de autores
do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes
consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso,
os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda,
realmente exagerada, surgiu "lei" autorizativa, praticada cada vez
mais exageradamente. Autorizativa é a "lei" que – por não poder
determinar – limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe
estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional
desse Poder. O texto da "lei" começa por uma expressão que se tornou
padrão: "Fica o Poder Executivo autorizado a...". O objeto da
autorização – por já ser de competência constitucional do Executivo – não
poderia ser "determinado", mas é apenas "autorizado" pelo
Legislativo. Tais "leis", óbvio, são sempre de iniciativa
parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio,
muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício
patente.
(...)
Pelo que, se uma lei fixa o que é
próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder
constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei é
inconstitucional. Não é só inócua ou rebarbativa. É inconstitucional, porque
estatui o que só o Constituinte pode estatuir, ferindo a Constituição por ele
estatuída. O fato de ser mera autorização não elide o efeito de dispor, ainda
que de forma não determinativa, sobre matéria de iniciativa alheia aos
parlamentares. Vale dizer, a natureza teleológica da lei – o fim: seja
determinar, seja autorizar – não inibe o vício de iniciativa. A inocuidade da
lei não lhe retira a inconstitucionalidade. A iniciativa da lei, mesmo sendo só
para autorizar, invade competência constitucional privativa.
(...)
Em suma, as "leis"
autorizativas são inconstitucionais: a. por
vício formal de iniciativa, invadindo campos em que compete privativamente ao
Chefe do Executivo iniciar o processo legislativo;
b. por usurparem a competência
material do Poder Executivo, disposta na Constituição, nada importando se a
finalidade é apenas autorizar;
c. por ferirem o princípio
constitucional da separação de poderes, tradicional e atual na ordenação
constitucional brasileira.”
Esse entendimento já foi adotado pelo
Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
“A lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa
privada implica, em verdade, uma determinação, sendo, portanto inconstitucional”.
(ADIN n. 593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7.8.00).
Na prática, a lei em exame criou obrigação
para o Poder Executivo Municipal, no sentido de realizar o programa de
prevenção de saúde nela previsto.
Ademais, a lei fixa ainda particularidades
de seu cumprimento, bem como providências a serem adotadas em casos concretos.
Mutatis
mutandis, já proclamou esse Egrégio Plenário que:
“Ao executivo haverá de
caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades
municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe
propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara
Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual
se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do
Prefeito” (Adin n.
53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).
Ademais, em casos como o presente, esse
E. Tribunal de Justiça tem reconhecido a inconstitucionalidade de leis por
violação ao art.25 da Constituição Estadual (ADINs ns. 18.628-0, 13.796-0,
38.249-0, 36.805.0/2, 38.977.0/0).
3)Conclusão.
Assim sendo, e por entender que ao Legislativo não é dado prover sobre todos
os assuntos por meio de lei, e
que somente poderá
estabelecer programas gerais
objetivando os valores maiores da Constituição se
não criar atribuições para órgãos
públicos ou determinar (com o eufemismo autorizar)
a execução de programas (competência do
Executivo), o parecer é pela procedência da ação, para que seja declarada inconstitucional a Lei
n.º 2. 939, de 10 de março de
2008, que 'dispõe sobre a autorização ao Poder Executivo para providenciar que a
Maternidade da Santa Casa de Misericórdia de Tietê realize gratuitamente o
exame de diagnóstico clínico de retinopatia da prematuridade, e dá outras providências’. (fls. 25).
São Paulo, 08 de julho de 2008.
MAURÍCIO AUGUSTO GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA
no exercício de função
delegada
pelo Procurador-Geral de
Justiça