Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo nº 163.466.0/6-00

Requerente: Prefeito do Município de Tietê/SP

Objeto: Lei nº 2.944, de 10 de março de 2008, do Município de Tietê

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, tendo por objeto a Lei nº 2.944, de 10 de março de 2008, do Município de Tietê, que “dispõe sobre o armazenamento de pilhas, baterias de 9 volts, baterias de celular e objetos poluidores similares”. Lei de iniciativa parlamentar. Alegação de usurpação da competência do Poder Executivo e criação de despesa sem indicação da fonte. Norma que impõe obrigações ao Poder Executivo e se traduz em ato de gestão. Geração de encargos e aumento de despesa sem a correspondente dotação orçamentária. Violação do art. 47, II c.c. o art. 144 e artigos 25 e 176, I, da Constituição Estadual. Parecer pela procedência da ação. 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

1) Relatório.

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Tietê, tendo por objeto a Lei nº 2.944, de 10 de março de 2008, do mesmo Município, que “dispõe sobre o armazenamento de pilhas, baterias de 9 volts, baterias de celular e objetos poluidores similares”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Insiste que, em razão do tema versado na lei, sua iniciativa é reservada ao Prefeito. Afirma, ademais, que a norma cria despesa sem indicação da fonte. Conclui pela violação dos artigos 5º; 25; 37; 174, I, II e III; e 176 da Constituição do Estado.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 96).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 102 e ss., em defesa da lei impugnada. Afirmou que a norma tem por escopo a proteção ao meio ambiente e que as regras instituídas são de interesse local.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 114).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

2) Preliminar.

A petição inicial e o instrumento de procuração não contêm a assinatura do Prefeito (fls. 11 e 12).

Requeiro a intimação do requerente para que, no prazo legal, as regularize.

3) Mérito.

A lei impugnada tem a seguinte redação:

José Geraldo Fabri, Presidente da Câmara Municipal de Tietê, Estado de São Paulo,

Faz saber que a Câmara manteve e ele, nos termos do artigo 40, parágrafo 7º, da Lei Orgânica do Município, promulga a seguinte lei:

LEI Nº 2.944/2007

"Dispõe sobre armazenamento de pilhas, baterias de 9 volts, baterias de celular e objetos poluidores similares".

A CÂMARA MUNICIPAL DECRETA:

Artigo 1° - Fica proibido no âmbito do Município de Tietê que sejam jogadas no lixo comum pilhas, baterias de 9 volts, baterias de celular e objetos poluidores similares.

Artigo 2° - A Prefeitura do Município de Tietê disponibilizará em locais estratégicos públicos recipientes apropriados para o armazenamento de pilhas, baterias de 9 volts, baterias de celular e objetos similares.

Parágrafo Único - O Poder Executivo Municipal poderá, em conjunto com Ong’s, estabelecimentos comerciais e empresas, estabelecer parcerias no sentido de executar a presente lei, podendo instalar recipientes também em locais privados que demonstrem interesse em contribuir com a política ambiental do município. 

Artigo 3º - Fica autorizado o Município a destinar o material recolhido às empresas de reciclagem e/ou especializadas no reaproveitamento do material, podendo até obter recursos financeiros com a destinação apropriada do lixo poluente.

Artigo 4º - Os recursos advindos da destinação adequada do material destinadas às empresas especializadas deverão ser empregues em campanhas que divulguem a necessidade de armazenar objetos poluidores em recipientes e locais apropriados.

Artigo 5º - O município poderá exigir a colaboração das empresas de pilhas, baterias de 9 volts, baterias de celular e objetos poluidores similares para a execução da presente lei, tendo em vista que é responsabilidade também deste tipo de empresa, disponibilizar aos consumidores meios corretos de armazenamento de seu produto, quando se transforma em lixo.

Artigo 6º - As despesas com a execução da presente lei correrão por conta de verbas próprias do Orçamento vigente.

Artigo 7º - Esta lei entrará em vigor na data de sua afixação no Paço Municipal, e será publicada na Imprensa Oficial do município, revogando-se as disposições em contrário.

Em que pesem os elevados propósitos que inspiraram a edição dessa lei, a norma é, de fato, inconstitucional.

Com efeito, o processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes[1].

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República[2], conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo difuso ou concentrado por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa é o ato que deflagra o processo legislativo. Pode ser geral ou reservada (ou privativa). No primeiro caso, vereador, Mesa, comissão da Câmara, prefeito ou a população podem titularizar o projeto. No segundo, há um único titular.

A lei impugnada originou-se de projeto de autoria do vereador, o que se constitui clara ofensa à Constituição, pois somente ao Chefe do Poder Executivo assiste a iniciativa de leis que criem – como é o caso – obrigações e deveres para órgãos municipais (art. 47, inc. II da Constituição Estadual, de aplicação extensível aos municípios por força do art. 144 da mesma Carta).

Note-se que a lei em análise impõe à Administração o ônus de instalar recipientes apropriados para a arrecadação de baterias e simulares em locais determinados (art. 2º) e destinar recursos eventualmente obtidos em campanhas de esclarecimento (art. 4º.).

Invadiu-se claramente a seara da administração pública, da alçada exclusiva do Prefeito, violando-se a prerrogativa deste em analisar a conveniência e oportunidade das providências que a lei quis determinar. Bem por isso, a matéria somente poderia objeto de tramitação legislativa por proposta do próprio Chefe do Poder Executivo.

Ofendeu-se, igualmente, o princípio basilar da separação de poderes. Como já proclamou esse Sodalício:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

Nem se alegue que, tratando-se de lei autorizativa (pelo menos a teor dos artigos 3º. e 5º.), o vício estaria superado.

Deve-se atentar para o fato de que o Executivo não necessita de autorização para administrar e, no caso em análise, não a solicitou. 

Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:

"...insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui  um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa,  praticada cada vez mais exageradamente autorizativa  é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos  que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente"[3].

Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo portanto inconstitucional" (ADIN n°593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7/8/00).

Esse E. Sodalício também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça”[4].

4) Conclusão.

Diante do exposto, superada a preliminar, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.944, de 10 de março de 2008, do Município de Tietê.

São Paulo, 28 de novembro de 2008.

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

jesp



[1] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 675.

[2] Alexandre de Moraes. Direito Constitucional, 23ª. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 641.

[3] Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262.

[4] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748.