AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Processo
nº163.546.0/1-00
Autor:
Prefeito Municipal de São José do Rio Preto
Objeto:
Lei Municipal nº10.127, de 11 de abril de 2008, de São José do Rio Preto.
Ementa: 1)Lei Municipal. Iniciativa parlamentar. Fixação de
obrigações para o Poder Executivo. Prestação de informações bimensais à
Câmara, e elaboração de parecer quanto ao desempenho de entidades que recebem
subvenção. 2)Violação da regra da separação de poderes (art.5º, art.47 II e
XIV, e art.144 da Constituição do Estado). 3)Criação de mecanismo de controle
externo não previsto na sistemática constitucional. Violação da simetria que
deve existir, na matéria, com relação aos modelos constitucionais de controle
da Administração (art.33, 144 e 150 da Constituição do Estado).
4)Inconstitucionalidade reconhecida. |
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador
Relator
1)Relatório.
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade
proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de São José do Rio Preto, tendo como
alvo a Lei Municipal nº10.127, de 11 de abril de 2008, daquele município, sob o
fundamento de que a inconstitucionalidade do ato normativo decorre: (a) da
violação de princípios da Administração Pública; (b) da quebra da separação de
poderes; (c) da falta de indicação de receitas para fazer frente às despesas
criadas pela lei; (d) da ausência de interesse público.
Deferida a liminar (fls.25/26), foi
citado o Senhor Procurador-Geral do Estado, que declinou da defesa do ato
normativo (fls.36/38).
A Câmara Municipal prestou informações
(fls.40/41).
Este é o breve relato do que consta dos
autos.
2)Fundamentação.
2.a)O ato normativo impugnado.
A Lei Municipal nº10.127, de 11 de abril de 2008, de
São José do Rio Preto, fruto de iniciativa parlamentar, que, conforme
respectiva rubrica, “Obriga o CMDCA –
Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, o CMAS – Conselho Municipal de
Assistência Social e a Secretaria Municipal de Assistência Social a enviar
relatório bimensal à Câmara das atividades das parcerias para as quais o
Executivo concede subvenção social”, tem a seguinte redação:
“Art.1º. O CMDCA – Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, o CMAS – Conselho Municipal de Assistência Social e a Secretaria Municipal de Assistência Social ficam obrigados a enviar relatório bimensal à Câmara das atividades das parcerias para as quais o Executivo concede subvenção social.
Art.2º. Os CMDCA – Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, o CMAS – Conselho Municipal de Assistência Social e a Secretaria Municipal de Assistência Social ficam obrigados também a exarar parecer, qualificando os serviços prestados pela parceira, e sobre as pendências ou irregularidades das entidades que recebem subvenção do Executivo.
Art.3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.”
Entretanto, o ato normativo é verticalmente
incompatível com a Constituição Estadual, como será demonstrado a seguir.
2.b)Vício material: quebra da separação
de poderes.
O ato normativo em exame cria obrigações para órgãos
do Poder Executivo Municipal, prevendo a necessidade de: (a) envio de relatório
bimensal à Câmara a respeito de atividades de entidades parceiras, para as
quais foi concedida subvenção social; (b) elaboração de parecer a respeito dos
serviços prestados pelas entidades que recebem a subvenção.
Entretanto,
a inconstitucionalidade decorre da violação da regra da separação de poderes,
prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art.5º, art.47 II
e XIV, e art.144).
É
ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo
cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de
planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder
Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a
função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e
abstração.
O legislador municipal, na hipótese
analisada, criou obrigações de cunho administrativo para órgãos que integram a
Administração Pública local.
Abstraindo quanto aos motivos que podem
ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente
inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão
administrativa do Município.
Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa,
que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento,
a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à
prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre recordar aqui o ensinamento de
Hely Lopes Meirelles, anotando que “a
Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos
órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a
Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico
e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo
edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de
funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio
constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da
Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza, ademais, que “todo ato do
Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da
Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo,
por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local
(CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p.708 e 712).
Deste modo, quando a pretexto de
legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na
prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência
que deve existir entre os poderes estatais.
Esse E. Tribunal de Justiça tem
declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar
que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da
separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a
seguir:
“Ação direta
de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São
José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos
edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência
entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.”
(TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).
“AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de
setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a
obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos
das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta
utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa
parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do
Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no
exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder
Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual.
JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j.
05.03.2008).
2.c)Vício material: desrespeito à
simetria quanto aos sistemas de controle externo.
Ademais,
a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e
contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam
por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o
exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à
intensidade da adoção da regra da separação.
Assim, se qualquer emenda constitucional
tendente a abolir o princípio será inconstitucional, por ofensa à cláusula
pétrea contida no art.60 §4º III da CR/88, também será verticalmente
incompatível com o texto constitucional ato normativo de menor positividade que
venha a conflitar com referido núcleo constitucional imodificável.
Deste
modo, no caso em exame, ao criar sistema de controle da Administração Direta ou
Indireta do Município o legislador instituiu metodologia que importa verdadeira
capitis diminutio para a
Administração, sujeitando-a a restrições inexistentes no paradigma constitucional
federal ou estadual.
Como anota a propósito Hely Lopes
Meirelles, mais uma vez, “(...) é
evidente que essa fiscalização externa, realizada pela Câmara, deve conter-se
nos limites do regramento e dos princípios constitucionais, em especial o da
independência e harmonia dos Poderes” (Direito
municipal brasileiro, cit., p.609).
Tanto a Constituição Federal, como a
Estadual, já estabelecem formas de controle interno e externo, cuja essência
deve ser seguida pelo legislador Municipal.
Recorde-se a propósito o art.31 §1º da CR/88
prevê que o controle externo da Câmara Municipal sobre o Executivo será “exercido com o auxílio dos Tribunais de
Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos
Municípios, onde houver”.
Por outro lado, o art.33 da
Constituição Paulista prevê que o controle externo seja exercido pela
Assembléia Legislativa, com o auxílio do Tribunal de Contas, com várias
atribuições contidas em seus diversos incisos, que, em linhas gerais, replicam
as atribuições do Tribunal de Contas da União, cf. art.71 da CR/88.
Por seu turno, o art.150 da Carta
Paulista reitera a existência de sistemas de controle interno,
Deste modo, dentro dos sistemas de
controle interno e externo, previstos tanto no texto da Constituição Federal
como na Estadual, não se identifica, nem de modo distante, metodologia de
fiscalização que se assemelhe àquela adotada pelo legislador municipal nos
dispositivos impugnados na presente ação.
A matéria já foi pacificada pelo E. STF,
como se infere dos seguintes precedentes que, mutatis mutandis, são aplicáveis ao caso:
"Os
dispositivos impugnados contemplam a possibilidade de a Assembléia Legislativa
capixaba convocar o Presidente do Tribunal de Justiça para prestar,
pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando
crime de responsabilidade a ausência injustificada desse Chefe de Poder. Ao
fazê-lo, porém, o art. 57 da Constituição capixaba
não seguiu o paradigma da Constituição Federal, extrapolando as fronteiras do
esquema de freios e contrapesos — cuja aplicabilidade é sempre estrita ou
materialmente inelástica — e maculando o Princípio da Separação de Poderes.
Ação julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade da
expressão ‘Presidente do Tribunal de Justiça’, inserta no § 2º e no caput do
art. 57 da Constituição do Estado do Espírito Santo." (ADI 2.911, Rel.
Min. Carlos Britto, julgamento em 10-8-06, DJ de 2-2-
"Separação
e independência dos Poderes: freios e contra-pesos: parâmetros federais
impostos ao Estado-Membro. Os mecanismos
de controle recíproco entre os Poderes, os ‘freios e contrapesos’ admissíveis
na estruturação das unidades federadas, sobre constituírem matéria
constitucional local, só se legitimam na medida em que guardem estreita
similaridade com os previstos na Constituição da República: precedentes.
Conseqüente plausibilidade da alegação de ofensa do princípio fundamental por
dispositivos da Lei estadual 11.075/98-RS (inc. IX do art. 2º e arts. 33 e 34),
que confiam a organismos burocráticos de segundo e terceiro graus do Poder
Executivo a função de ditar parâmetros e avaliações do funcionamento da Justiça
(...)." (ADI 1.905-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em
19-11-98, DJ de 5-11-04)
"A
fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder Executivo é um dos
contrapesos da Constituição Federal à separação e independência dos Poderes:
cuida-se, porém, de interferência que só a Constituição da República pode
legitimar. Do relevo primacial dos
'pesos e contrapesos' no paradigma de divisão dos poderes, segue-se que à norma
infraconstitucional — aí incluída, em relação à Federal, a Constituição dos
Estados-Membros —, não é dado criar novas interferências de um Poder na órbita
de outro que não derive explícita ou implicitamente de regra ou princípio da
Lei Fundamental da República. O poder de fiscalização legislativa da ação
administrativa do Poder Executivo é outorgado aos órgãos coletivos de cada
câmara do Congresso Nacional, no plano federal, e da Assembléia Legislativa, no
dos Estados; nunca, aos seus membros individualmente, salvo, é claro, quando
atuem em representação (ou presentação) de sua Casa ou comissão." (ADI
3.046, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 15-4-04, DJ de 28-5-
Esse posicionamento tem, do mesmo modo,
sido prestigiado por esse E. Tribunal de Justiça:
“INCONSTITUCIONALIDADE
- Ação direta - Inconstitucionalidade do art. 136, da Lei Orgânica do Município
de Franca - Ocorrência - Parágrafo que estabelece prazo para a remessa de
cópias de decretos e portarias pelo Prefeito aos Vereadores, sob cominação de
nulidade - Inadmissibilidade - Limites constitucionais estabelecidos para o
controle externo parlamentar ou legislativo sobre atos do Poder Executivo
extrapolados - Inconstitucionalidade declarada, comunicada a decisão à Câmara
Municipal para a suspensão da execução dessa norma - Art.90 da Constituição do
Estado”. (Relator: Carlos Ortiz - Ação direta de Inconstitucionalidade 12.345-0
- São Paulo - 15.05.91).
“AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE - Dispositivo da Lei Orgânica que determina ao
Prefeito remeter cópia à Câmara de cada balancete mensal e a publicá-los -
Normas que extravasam os limites do controle externo e da fiscalização próprios
do Poder Legislativo - Invasão, ademais, de esfera de atuação reservada ao
Chefe do Executivo - Desobediência ao princípio da harmonia e independência
entre os Poderes - Inconstitucionalidade reconhecida - Ofensa aos artigos 5º,
150 e 170 da Constituição Estadual - Pedido procedente.” (Ação Direta de
Inconstitucionalidade n.096.538-0 - São Paulo - Órgão Especial - Relator: Viseu
Júnior - 12.02.03 - V.U.)
“AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Municipal de Miracatu nº 1.299, de 15.4.2005,
que impõe ao Prefeito a obrigação de encaminhar ao legislativo municipal todos
os editais de licitações abertas pelo Município para que sejam afixados em
local próprio – Inadmissibilidade – Clara violação ao princípio da
independência e harmonia entre os poderes, com ofensa explícita aos arts. 5º,
144 e 150 da Constituição do Estado de São Paulo – As atribuições do Prefeito,
como administrador do Município, concentram-se em planejamento, organização e
direção dos serviços e obras da Municipalidade – Para a execução de tais
atividades, o Prefeito dispõe de poderes correlacionados a comando, coordenação
e controle de empreendimentos no Município – Se a Câmara Municipal interfere na
competência legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo local,
imobilizando a atuação deste no que concerne aos assuntos de política
administrativa, ainda que a pretexto de exercer a função fiscalizadora de
controle externo, privativa do Tribunal de Contas, configura-se infração à
Carta Estadual – Ação procedente.” (Ação Direita de Inconstitucionalidade n.
123.145-0/9-00 – São Paulo – Órgão Especial – Relator: Aloísio de Toledo César
– 19.04.06 – M.V.)
“AÇÃO DIRETA
DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei nº 1.674, de 21 de outubro de 2005, do Município
de Avanhandava, que “dispõe sobre a instituição de controle externo da
qualidade da água distribuída à população de Avanhandava pelo DAAEA” – Lei de
iniciativa de Vereador – Promulgação pelo Presidente da Câmara Municipal –
Matéria afeta à Administração Ordinária – Competência reservada ao Poder
Executivo – Violação dos princípios da independência e harmonia dos poderes e
da iniciativa legislativa – Ação procedente. (Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 128.082-0/7-00 – São Paulo – Órgão Especial – Relator:
Denser de Sá – 19.07.06 – V.U.).
Assim, os dispositivos impugnados na
presente ação, nitidamente: (a) violaram o necessário equilíbrio e harmonia que
devem existir entre os Poderes Legislativo e Executivo; (b) fizeram-no criando
sistemática de controle não prevista na nossa ordem constitucional; (c)
desrespeitaram, dessa forma, o “modelo” traçado pelo constituinte para
exercício do sistema de “freios e contrapesos”.
Daí a violação aos art.5º, 33, 144 e
150 da Carta Estadual.
2.d)Vício material: ausência de
indicação de receitas.
Acrescente-se
que em casos como o presente esse Colendo Órgão Especial tem reconhecido a
inconstitucionalidade da norma com fundamento no art.25 da Constituição do
Estado. Confiram-se, a título de exemplificação, recentes julgados adiante
indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.;
ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI
135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u..
3)Conclusão.
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência desta ação direta, declarando-se a
inconstitucionalidade da Lei Municipal nº10.127, de 11 de abril de 2008, de São
José do Rio Preto.
São Paulo, 11 de junho de 2008.
Maurício Augusto Gomes
Procurador de Justiça
no exercício de função delegada
pelo Procurador-Geral de Justiça