Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos n. 163.815.0/0

Autores: Sindicato da Indústria da Fabricação do Álcool do Estado de São Paulo – SIFAESP – e Sindicato da Indústria do Açúcar no Estado de São Paulo – SIAESP

Objeto de impugnação: Art. 1º da Lei n. 4.518, de 18 de dezembro de 2007, do município de Moji Mirim

 

 

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

 

 

 

                        Colendo Órgão Especial

 

 

 

                   O Sindicato da Indústria da Fabricação do Álcool do Estado de São Paulo – SIFAESP e o Sindicato da Indústria do Açúcar no Estado de São Paulo – SIAESP – propuseram ação direta de inconstitucionalidade, na qual se questiona a validade  jurídico-constitucional do  art. 1º da Lei n. 4.518, de 18 de dezembro de 2007, do município de Moji Mirim, em face do art. 23,  parágrafo único, 14, 192, § 1º e 193, XX e XXI, da Constituição do Estado de São Paulo. 

                  

                   O dispositivo legal impugnado estabelece que:

                 Esta Lei dispõe sobre a eliminação do uso de queimadas para o corte da cana-de-açúcar, ficando proibida toda e qualquer queimada de canaviais, neste Município.

                   A suspensão liminar dos efeitos da referida norma foi deferida pelo Excelentíssimo Desembargador Relator PAULO TRAVAIN (fls. 179).

                   A Câmara Municipal prestou informações, defendendo a constitucionalidade da norma impugnada, bem assim a competência do Município para tratar do assunto em pauta (fls. 205 e s.).

                   Em face do mandamento do art. 90, § 2º, da Constituição bandeirante, a Procuradoria-Geral do Estado foi citada e se manifestou a fls. 187/202.

                   É o breve relato.

                   A presente ação deve ser julgada improcedente.  

                   A Lei n. 4.518, de 18 de dezembro de 2007, do município de Moji Mirim, teve por fim a garantia do bem estar da população da cidade e do Município,  que  em épocas de seca ressente-se dos  efeitos deletérios de todo o tipo de queimada, de vários materiais de fácil combustão, ao ar livre, dentre elas as queimadas da palha da cana-de-açúcar, que despejam toneladas de  gases tóxicos na atmosfera local, sobretudo o Ozônio (O³).

                   De outro lado, a proibição da queima da palha da cana-de-açúcar no Município de Moji Mirim, à evidência, não coloca em perigo fatores sensíveis da economia regional envolvendo o modo de despalhamento para a colheita desta cultura, como alegam as entidades autoras. 

                   Aos argumentos da competência dos Municípios para editarem a proibição de queimadas ao ar livre em seu território, inclusive, as de cana-de-açúcar, soma-se os preceitos da Constituição da República, cuja transcrição é de rigor:

                 Art.182 – A Política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

                 § 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana....” .

                   Pertinente gizar o conteúdo da espinha dorsal do ‘Capítulo VI - Do Meio Ambiente’, inscrito pelo constituinte originário de 1988:

                  Art. 225 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

                   Frise-se, ainda, que as disposições do capítulo referente ao meio ambiente encontram eco em outros princípios do texto fundamental, inclusive, como elemento de legitimação da própria atividade econômica, conforme dá conta o art.170, III e VI, da CF (“ a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios - ... III – função social da propriedade; ... VI – defesa do meio ambiente”).

                   Ainda sobre o interesse e competência de todos os organismos do Estado na proteção ambiental, bem assim no resguardo e recuperação da qualidade de vida e saúde da população, mister acorrer ao texto da Constituição Bandeirante:

                 Art. 191 – O Estado e os Municípios providenciarão, com a participação da coletividade, a preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambiente natural, artificial e do trabalho, atendidas as peculiaridades regionais e locais e em harmonia com o desenvolvimento social e econômico.

                 Art.192 – A execução de obras, atividades, processos produtivos e empreendimentos e a exploração de recursos naturais de qualquer espécie, quer pelo setor público, quer pelo privado, serão admitidas se houver resguardo do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

                 ...

                 Art.201 – O Estado apoiará a formação de consórcios entre os Municípios, objetivando a solução de problemas comuns relativos à proteção ambiental, em particular à preservação dos recursos hídricos e ao uso equilibrado dos recursos naturais”.

                   Do que se extrai até aqui, considerando que o direito é uno e considerando que os princípios constitucionais devem ser interpretados, aplicados e harmonizados sem prevalência de uns em detrimento de outros, não há como negar que o Município de Moji Mirim, através dos seus representantes eleitos, no caso sob análise, tem competência na matéria.

                   Assim sendo, julgando a Apelação Cível n.º 240.742.5/5, da Comarca de Mauá, deduzida em Mandado de Segurança e tendo como apelada  a Secretaria do Planejamento e Meio Ambiente  do Município de Mauá, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em acórdão relatado pelo Eminente Desembargador SOARES LIMA, enfocando o tema competência legislativa dos municípios, denegou a ordem em pleito de anulação de indeferimento de licenciamento ambiental nos seguintes termos:

                   “... Inconsistente se afigura o reclamo, na medida em que não se vislumbra a inconstitucionalidade do artigo 157, da Lei Orgânica do Município de Mauá. A propósito, justificado ficou, de passagem, que ‘os direitos de livre concorrência não são absolutos, podendo sofrer limitações em prol do interesse social’ (fls.220). Realmente, embora a livre concorrência tenha sido ditada constitucionalmente em princípio geral da atividade econômica (art.170, IV, da Constituição Federal), a defesa do meio ambiente também o foi (inciso VI), o que ‘tem o efeito de condicionar a atividade produtiva ao respeito do meio ambiente e possibilita ao Poder Público interferir drasticamente, se necessário, para que a exploração econômica preserve e ecologia’ (Curso de Direito Constitucional Positivo, José Afonso da Silva, 11ª ed., 1996, Malheiros Editores, SP., pág.728). Nessa ordem de raciocínio, de toda evidência que a lei municipal não invadiu esfera de competência exclusiva do Estado ou  da União, traçando parâmetros para a execução de atividade de fins lucrativos que, indiscutivelmente, deteriora o meio ambiente, vez que lhe cabe ‘o controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano’ (artigo 30, VIII, da Carta Magna) cumprindo-lhe, ainda, ‘proteger o  meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas’ (artigo 23, VI, da Constituição Federal). É o quanto basta para desvanecer o almejado direito subjetivo líquido e certo dos impetrantes.    Nego provimento ao recurso”.

                   Comentando as  competências exclusiva, privativa, comum, concorrente e suplementar da União, dos Estados, dos Municípios e Distrito Federal,  leciona JOAQUIM CASTRO AGUIAR:  Existem matérias sobre as quais tanto a União, quanto os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem legislar, sendo os poderes  compartilhados entre as unidades federativas. Podemos ditar, como exemplos, a proteção e defesa da saúde, a proteção do meio ambiente e controle da poluição. Nesses casos, diz-se que a legislação é concorrente, no sentido de que cada ente federativo possui um quinhão do poder legislativo, nessa partilha de competências. A matéria não é exclusive e nem privativa de ninguém, podendo, pois, ser objeto de legislação federal, estadual, distrital ou municipal”.

                   Ao discorrer sobre o assunto, o doutrinador JOSÉ NILO DE CASTRO (in: Perspectivas do Direito Municipal. Ciência Jurídica, set-out. 1993, vol.53, pág.131), ensina: “inegavelmente, cabe ao Município, como poder público, dispor sobre regras de direto, legislando em comum com a União e o Estado, com fundamento no art. 23,VI, CR. Portanto, quando um Município, através de lei – mesmo que se lhe reconheça conteúdo administrativo, em se  tratando de  competência comum -, disciplinar esta matéria, fa-lo-á no exercício da competência comum, peculiarizando-lhe a ordenação pela compatibilidade local, e consideração a esta ou àquela vocação sua”.

                   Para TOSHIO MUKAI (In: Legislação, meio ambiente e autonomia municipal. Estudos e Comentários: RDP, Vol. 79, pág.131), “a competência do Município é sempre concorrente com a da União e a dos Estados-membros, podendo legislar sobre todos os aspectos do meio ambiente, de acordo com sua autonomia municipal (art.15 da CR), prevalecendo sua legislação sobre qualquer outra, desde que inferida do seu predominante interesse; não prevalecerá em relação às outras legislações, nas hipóteses em que estas forem diretamente inferidas de suas competências privativas, subsistindo a do Município, entretanto, embora observando as mesmas”.

                   Ante as circunstâncias jurídicas e regras de competência traçadas na Constituição de 1988, a existência de leis ordinárias reafirmando a autonomia política dos municípios na República Federativa do Brasil, tudo ainda sob o enfoque da doutrina e jurisprudência, inclusive, do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (cf. acórdão retro transcrito), não há como afastar a possibilidade do legislador de Moji Mirim  optar através  de norma formal e com natureza de lei, a garantir a qualidade do meio ambiente e de vida à sua população[1].

                   Aliás, este E. Órgão Especial já decidiu, superiormente, que os municípios têm competência constitucional para legislarem a respeito do meio ambiente, inclusive para a proibição, em seu território, de qualquer tipo de queimada, inclusive a da pelha da cana-de-açúcar. O ‘leading case’ é de Limeira, sendo o Ilustre Relator desta ação, o E. Desembargador JACOBINA RABELLO, também o relator daquela, afirmando (Ação Direta de Inconstitucionalidade n.° 129.132.0/3):

                   “Todavia, quis me parecer que, no embate entre as autonomias dos entes federados, como lembrado pelo Desembargador Laerte Nordi, de se prestigiar a do Município, uma vez que, como anteriormente decidido pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça (RT 679/204), a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente não exclui a edição pelo último de normas e padrões que objetivem regular situação local como a vivida pela população de Limeira, sem condição de continuar a suportar o sofrimento causado pelas queimadas. As regras atacadas apenas complementam a lei estadual citada como violada, como, de seu lado, argumentou o Desembargador Caio Canguçu de Almeida, na medida em que adaptaram à realidade e para a defesa dos interesses locais dos munícipes a tímida proibição de queima trilhada por aquela. No voto do Desembargador Renato Nalini, ressaltado que a própria Lei estadual veda a queima de cana-de-açúcar, mas a tolerar leniência incompatível com os danos causados à saúde dos cidadãos e à qualidade de vida, mostrando-se legítima, pois, a atuação do poder local na vedação de continuidade de pernicioso quadro. Se se considerar de modo isolado o disposto no artigo 24 da Constituição Federal, em que se estabelece, no inciso VI, competência concorrente da União e dos Estados para legislar sobre proteção do meio ambiente e controle da poluição, não competência concorrente da União, dos Estados e dos Municípios, haveria mesmo lugar para suposição de que os dispositivos da Lei municipal sobre proibição de queima de palha de cana-de-açúcar se mostrariam contrários à Lei Maior e também ao previsto quanto a essa matéria na Constituição do Estado de S. Paulo. O mesmo referido artigo 24, no inciso n. XII, outra vez mais com exclusão dos Municípios, volta a estabelecer competência concorrente apenas da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar sobre proteção e defesa da saúde, com o que também sob sua regência a lei municipal a dispor sobre proibição de queima de palha de cana-de-açúcar deveria ser tida como inconstitucional, certo ainda que reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas (artigo 25, "caput"). Acontece que a Constituição Federal, no artigo 23, ns. II, VI, VII e IX, tem como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dentre outras atribuições, "cuidar da saúde e assistência pública", "proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas", '''preservar as florestas, a fauna e aflora" (inciso VII) e "promover saneamento básico" (inciso IX). E bem, quer parecer não ser possível fazê-lo, isto é, cuidar o Município da saúde» da proteção ao meio ambiente, de combate à poluição em qualquer de suas formas, de preservação de .florestas, fauna e flora, de promoção do saneamento básico, sem legislar a esse respeito. Não bastantes portarias administrativas ou decretos. Os cidadãos sabem que ninguém é obrigado, a fazer ou a não fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Por isso, em princípio, o artigo 24 da Constituição Federal não estaria, a rigor, a excluir o Município de editar regras sobre queima de palha de cana-de-açúcar. Mas sempre ficaria ainda pendente de resposta a questão sobre se ao legislar a esse respeito o Município poderia proibir, no âmbito de seu território, a queima de palha de cana-de-açúcar. Afinai, no que tange a legislar, a Carta Magna confere aos Municípios, dentre outros poderes, competência apenas para "suplementar a legislação federal e a estadual no que couber", bem como "legislar sobre assuntos de interesse local" (artigo 30). Pretende-se que com a proibição de se queimar a vegetação em causa estaria a Lei municipal a ultrapassar as fronteiras da limitada suplementação e a contrariar as existentes leis  federal e estadual específicas, que permitiriam a queima. No plano social, em decorrência, apregoado desemprego. Contudo, entendimento mais demorado de sua leitura, sobretudo quando em linha de compatibilidade com as normas gerais, parece atuar exatamente no lado oposto, isto é, que ao invés de permitir a queima o que as leis federal e estadual fazem é proibi-la, a começar pelo Código Florestal  (artigo 27).  Com efeito, nelas, a queima se toma algo excepcional, com tempo marcado para extinção, nas que, especificamente, cuidam de palha de cana-de-açúcar. Assim, a proibição de queima instituída pela Lei municipal em causa, por seus objetivos... estaria, na verdade, a se mostrar em harmonia com a proclamação do constituinte, constante no artigo 197, segundo .a qual a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido esse direito mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença. E não se pode recusar cunho social e econômico à política consistente na proibição de queima, sabido que se esta, a queima, não provoca doenças (sérias e conhecidas pesquisas  indicam que sim), a verdade é que no mínimo as agrava e acarreta busca de socorro ambulatorial e de outros meios de combate a seus males, com pesados ônus para as pessoas e os recursos públicos e privados com que se tem de fazer frente às exigências. Ora, na Carta do Rio de Janeiro Sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente, redigida ao término do congresso promovido pela ONU, no ano de 1992, constou, no 11°  princípio firmado, que "Os estados deverão promulgar leis eficazes sobre o meio ambiente". Também ressaltado, no. que veio a constituir o princípio n. 15, que o critério da precaução deveria se fazer presente, de modo tal que "Quando houver perigo de dano grave  ou irreversível, a falta de certeza cientificamente absoluta não deverá ser utilizada-como razão para postergar a adoção de medidas eficazes, em função dos custos para impedir a degradação do meio ambiente". Inegável se mostrar a queima de vegetação como algo muito primitivo, que leva a terra a ficar calcinada e o ar a se tomar poluído. Tudo isso à conta da higidez do meio ambiente, que, como verificado por cientistas de todo o mundo, já se mostra muito comprometido, de maneira que não mais possível reversão do quadro, sem prejuízo de tudo dever ser feito para que não haja agravamento. Queima agrava. Proibição de queima constitui passo em sentido oposto a agravamento. A Lei municipal, pois, conquanto editada em caráter suplementar ao disposto na Lei estadual, não estaria, sob todos os aspectos, a ofender o disposto na Constituição do Estado de S. Paulo, como também não estaria a atentar contra o disposto na Constituição da República, mas sim o contrário disso. Não houvesse dano. ao meio ambiente ou aos ecossistemas com a queima de vegetação e não teriam sido editadas leis federal e estadual a impedi-la, como visto acima, embora com toleradas exceções restritas no tempo. Para indispensável combate aos gases que emanam das queimadas, o remédio existente é a proibição destas, outra solução para o problema não existe. (...) Por último, os -trabalhadores da cana sempre terão  oportunidade de continuar suas atividades em outros ramos em que exigida participação na cultura do campo, no seu preparo e conservação. É o que  já acontece nos vários lugares em que já quase cessada a colheita de cana por prévia queima, substituída por máquinas. Simultaneamente, estarão a deixar uma das mais árduas atividades da vida. Os empreendedores poderão ter à disposição máquinas, quer por compra, comodato ou locação, competindo aos sindicatos e cooperativas exercer fundamental papel em benefício de seus filiados e também dos assalariados. Deste modo, por este voto é julgada improcedente a ADIN em causa, referente a uma Lei municipal que apressa atendimento aos tratados internacionais ratificados, tratados esses que, segundo o que tem sido decidido pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, viriam, na hipótese menos favorável, a se situar na mesma posição daquela das leis gerais e especiais do ordenamento jurídico pátrio, revogando-as, na hipótese de incompatibilidade.”

                   Acrescente-se, ainda, que Constituição Federal de 1988 foi pioneira ao determinar, no plano constitucional, a tutela do bem ambiental, elevando-o à condição de direito/garantia fundamental.

                   Esse caráter já foi proclamado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.540/DF, em acórdão do qual foi relator o eminente Ministro Celso de Mello[2]:

        “MEIO AMBIENTE - DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225) - PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE - NECESSIDADE DE IMPEDIR QUE A TRANSGRESSÃO A ESSE DIREITO FAÇA IRROMPER, NO SEIO DA COLETIVIDADE, CONFLITOS INTERGENERACIONAIS - ESPAÇOS TERRITORIAIS ESPECIALMENTE PROTEGIDOS (CF, ART. 225, § 1º, III) - ALTERAÇÃO E SUPRESSÃO DO REGIME JURÍDICO A ELES PERTINENTE - MEDIDAS SUJEITAS AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI - SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - POSSIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, CUMPRIDAS AS EXIGÊNCIAS LEGAIS, AUTORIZAR, LICENCIAR OU PERMITIR OBRAS E/OU ATIVIDADES NOS ESPAÇOS TERRITORIAIS PROTEGIDOS, DESDE QUE RESPEITADA, QUANTO A ESTES, A INTEGRIDADE DOS ATRIBUTOS JUSTIFICADORES DO REGIME DE PROTEÇÃO ESPECIAL - RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA (CF, ART. 3º, II, C/C O ART. 170, VI) E ECOLOGIA (CF, ART. 225) - COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS - CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO DESSE ESTADO DE TENSÃO ENTRE VALORES CONSTITUCIONAIS RELEVANTES - OS DIREITOS BÁSICOS DA PESSOA HUMANA E AS SUCESSIVAS GERAÇÕES (FASES OU DIMENSÕES) DE DIREITOS (RTJ 164/158, 160-161) - A QUESTÃO DA PRECEDÊNCIA DO DIREITO À PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE: UMA LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL EXPLÍCITA À ATIVIDADE ECONÔMICA (CF, ART. 170, VI) - DECISÃO NÃO REFERENDADA - CONSEQÜENTE INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR. A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE: EXPRESSÃO CONSTITUCIONAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS PESSOAS.

        Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral. Doutrina. A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE.

        A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a "defesa do meio ambiente" (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural. A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º, II) E A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA.

        O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações. O ART. 4º DO CÓDIGO FLORESTAL E A MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.166-67/2001: UM AVANÇO EXPRESSIVO NA TUTELA DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE.

        A Medida Provisória nº 2.166-67, de 24/08/2001, na parte em que introduziu significativas alterações no art. 4º do Código Florestal, longe de comprometer os valores constitucionais consagrados no art. 225 da Lei Fundamental, estabeleceu, ao contrário, mecanismos que permitem um real controle, pelo Estado, das atividades desenvolvidas no âmbito das áreas de preservação permanente, em ordem a impedir ações predatórias e lesivas ao patrimônio ambiental, cuja situação de maior vulnerabilidade reclama proteção mais intensa, agora propiciada, de modo adequado e compatível com o texto constitucional, pelo diploma normativo em questão.

        Somente a alteração e a supressão do regime jurídico pertinente aos espaços territoriais especialmente protegidos qualificam-se, por efeito da cláusula inscrita no art. 225, § 1º, III, da Constituição, como matérias sujeitas ao princípio da reserva legal.

        É lícito ao Poder Público - qualquer que seja a dimensão institucional em que se posicione na estrutura federativa (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) - autorizar, licenciar ou permitir a execução de obras e/ou a realização de serviços no âmbito dos espaços territoriais especialmente protegidos, desde que, além de observadas as restrições, limitações e exigências abstratamente estabelecidas em lei, não resulte comprometida a integridade dos atributos que justificaram, quanto a tais territórios, a instituição de regime jurídico de proteção especial (CF, art. 225, § 1º, III)”.

 

          Portanto, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito constitucional fundamental.

          E ao instituir o bem ambiental como bem jurídico fundamental, o legislador constituinte trouxe um importante dever ao Poder Público e, portanto, também aos prefeitos municipais: determinou ao Poder Público uma série de deveres fundamentais.

          Com efeito, estabelece o art. 225, caput, que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações - negritamos.

          O § 1º do mencionado dispositivo legal explicita diversos deveres:

        Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

        I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

        II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;

        III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

        IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;

        V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;

        VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

        VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

         

  Portanto, não há dúvida: INCUMBE AO PODER PÚBLICO A DEFESA DO MEIO AMBIENTE ECOLGICAMENTE EQUILIBRADO. Não há discricionariedade.

          A EXPRESSÃO “PODER PÚBLICO” ABRANGE A CÂMARA MUNICIPAL.

          Ou seja, à Câmara Municipal também incumbe a defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

                   Em face do exposto, aguarda-se a improcedência desta ação direta, já que o dispositivo legal impugnado não ofende frontalmente os preceitos da Constituição Paulista indicados na inicial.

 

São Paulo, 14 de agosto de 2008.

 

 

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA,

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

 



[1] Constou no parecer emitido na ADI similar, de Limeira, desta Procuradoria-Geral: “É  praticamente impossível ao intérprete e aplicador da legislação ambiental  constitucional e ordinária, que instado a interpretar  e  decidir  sobre o  tema queimada de cana-de-açúcar, não seja remetido ao conceito jurídico de meio ambiente e princípios constantes do art. 225, da Carta Suprema. É impossível, ainda, que não seja guindado à reflexão e tomada de posição no que se refere ao Ozônio (O³), produzido em altas quantidades na troposfera (baixa atmosfera) a partir da queima da palha da cana, tudo em razão da combinação dos gases primários de características nitrosas com a luminosidade do dia, prejudicando plantas, animais e o homem. É impossível ao aplicador do direito, que ao decidir questão como a dos autos passe ao largo dos aspectos negativos e incômodos (fumaça e substâncias cancerígenas) provocados  pelas queimadas de cana à população, sobretudo para as mais próximas  dos sítios dos incêndios. Que não enfrente ou reflita sobre os graves danos à fauna e à flora, que a queimada de talhões de cana em círculos ou limítrofes a florestas e áreas de preservação permanente causam. Que não afaste o falso argumento do perigo do desemprego em massa, no caso de se proibir as queimadas de cana, já que o setor canavieiro (usinas e grandes fornecedores) vem cada vez mais colhendo cana mecanicamente, mas, frise-se, cana queimada.”

[2] Julgamento proferido pelo Tribunal Pleno, em 1/9/2005. DJ de 3-2-2006, p. 14.