AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

Processo nº 163.820.0/2-00

Autor: Prefeito Municipal de Pedrinhas Paulista

Objeto: parágrafo 3º, do art. 4º, da Lei Municipal n. 677, de 19 de novembro de 2007, do Município de Pedrinhas Paulista.

 

Ementa: 1)Lei Municipal. Iniciativa parlamentar. Fixação de obrigações para o Poder Executivo. Condicionamento de início e execução de projeto de construção civil à lei específica.. 2)Violação da regra da separação de poderes (art.5º, art.47 II e XIV, e art.144 da Constituição do Estado). 3)Criação de mecanismo de controle externo não previsto na sistemática constitucional. Violação da simetria que deve existir, na matéria, com relação aos modelos constitucionais de controle da Administração (art.33, 144 e 150 da Constituição do Estado). 4)Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

1)Relatório.

        

         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Pedrinhas Paulista, tendo como alvo o parágrafo 3º, do art. 4º , da Lei Municipal nº 677, de 19 de novembro de 2007, daquele município, sob o fundamento de que a inconstitucionalidade do ato normativo decorre: (a) da violação de princípios da Administração Pública; (b) da quebra da separação de poderes; (c) não é permitido a aprovação pelo Legislativo de emendas ao projeto do Executivo que sejam incompatíveis com o plano plurianual.

 

         Deferida a liminar (fls.37), foi citado o Senhor Procurador-Geral do Estado, que declinou da defesa do ato normativo (fls.45/47).

 

         A Câmara Municipal prestou informações (fls.50/52).

 

         Este é o breve relato do que consta dos autos.

 

2)Fundamentação.

 

2.a)O ato normativo impugnado.

 

         O parágrafo 3º, do art. 4º , da Lei Municipal n. 677, de 19 de novembro de 2007, que alterou  a Lei de Diretrizes Orçamentárias, daquele Município, dispõe:

 

         Art. 4º - Fica acrescido parágrafo 3º ao art. 7º, que passa a viger com a seguinte redação:

 

         (....)

 

         §3º - Nenhum projeto de construção civil poderá ser iniciado e executado sem lei específica que o autorize”.

        

 

            Entretanto, o ato normativo é verticalmente incompatível com a Constituição Estadual, como será demonstrado a seguir.

 

2.b)Vício material: quebra da separação de poderes.

 

         O ato normativo em exame exige criação de lei específica, para que qualquer projeto de construção civil seja iniciado ou executado.

 

         Entretanto, a inconstitucionalidade decorre da violação da regra da separação de poderes, prevista na Constituição Paulista e aplicável aos Municípios (art.5º, art.47 II e XIV, e art.144).

 

         É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

 

         O legislador municipal, na hipótese analisada, criou proibição de cunho administrativo para órgãos que integram a Administração Pública local, na medida em que em virtude dela,  o Prefeito Municipal só pode iniciar ou executar projeto de construção civil através de lei específica.

 

         Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

 

         Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

 

         Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

 

         Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

 

         Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

 

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

 

 

2.c)Vício material: desrespeito à simetria quanto aos sistemas de controle externo.

 

         Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade da adoção da regra da separação.

 

         Assim, se qualquer emenda constitucional tendente a abolir o princípio será inconstitucional, por ofensa à cláusula pétrea contida no art.60 §4º III da CR/88, também será verticalmente incompatível com o texto constitucional ato normativo de menor positividade que venha a conflitar com referido núcleo constitucional imodificável.

 

         Deste modo, no caso em exame, ao criar sistema de controle da Administração Direta ou Indireta do Município o legislador instituiu metodologia que importa verdadeira capitis diminutio para a Administração, sujeitando-a a restrições inexistentes no paradigma constitucional federal ou estadual.

 

         Como anota a propósito Hely Lopes Meirelles, mais uma vez, “(...) é evidente que essa fiscalização externa, realizada pela Câmara, deve conter-se nos limites do regramento e dos princípios constitucionais, em especial o da independência e harmonia dos Poderes” (Direito municipal brasileiro, cit., p.609).

 

         Tanto a Constituição Federal, como a Estadual, já estabelecem formas de controle interno e externo, cuja essência deve ser seguida pelo legislador Municipal.

 

         Recorde-se a propósito o art.31 §1º da CR/88 prevê que o controle externo da Câmara Municipal sobre o Executivo será “exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver”.

 

         Por outro lado, o art.33 da Constituição Paulista prevê que o controle externo seja exercido pela Assembléia Legislativa, com o auxílio do Tribunal de Contas, com várias atribuições contidas em seus diversos incisos, que, em linhas gerais, replicam as atribuições do Tribunal de Contas da União, cf. art.71 da CR/88.

 

         Por seu turno, o art.150 da Carta Paulista reitera a existência de sistemas de controle interno, em cada Poder, e externo pela Câmara Municipal, com remissão expressa ao art.31 da CR/88.

 

         Deste modo, dentro dos sistemas de controle interno e externo, previstos tanto no texto da Constituição Federal como na Estadual, não se identifica, nem de modo distante, metodologia de fiscalização que se assemelhe àquela adotada pelo legislador municipal no dispositivo impugnado na presente ação.

 

         Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

 

 

"Separação e independência dos Poderes: freios e contra-pesos: parâmetros federais impostos ao Estado-Membro. Os mecanismos de controle recíproco entre os Poderes, os ‘freios e contrapesos’ admissíveis na estruturação das unidades federadas, sobre constituírem matéria constitucional local, só se legitimam na medida em que guardem estreita similaridade com os previstos na Constituição da República: precedentes. Conseqüente plausibilidade da alegação de ofensa do princípio fundamental por dispositivos da Lei estadual 11.075/98-RS (inc. IX do art. 2º e arts. 33 e 34), que confiam a organismos burocráticos de segundo e terceiro graus do Poder Executivo a função de ditar parâmetros e avaliações do funcionamento da Justiça (...)." (ADI 1.905-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-11-98, DJ de 5-11-04)

 

"A fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder Executivo é um dos contrapesos da Constituição Federal à separação e independência dos Poderes: cuida-se, porém, de interferência que só a Constituição da República pode legitimar. Do relevo primacial dos 'pesos e contrapesos' no paradigma de divisão dos poderes, segue-se que à norma infraconstitucional — aí incluída, em relação à Federal, a Constituição dos Estados-Membros —, não é dado criar novas interferências de um Poder na órbita de outro que não derive explícita ou implicitamente de regra ou princípio da Lei Fundamental da República. O poder de fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder Executivo é outorgado aos órgãos coletivos de cada câmara do Congresso Nacional, no plano federal, e da Assembléia Legislativa, no dos Estados; nunca, aos seus membros individualmente, salvo, é claro, quando atuem em representação (ou presentação) de sua Casa ou comissão." (ADI 3.046, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 15-4-04, DJ de 28-5-04, g.n.)

 

         Assim, os dispositivos impugnados na presente ação, nitidamente: (a) violaram o necessário equilíbrio e harmonia que devem existir entre os Poderes Legislativo e Executivo; (b) fizeram-no criando sistemática de controle não prevista na nossa ordem constitucional; (c) desrespeitaram, dessa forma, o “modelo” traçado pelo constituinte para exercício do sistema de “freios e contrapesos”.

 

         Daí a violação aos art.5º, 33, 144 e 150 da Carta Estadual.

 

3)Conclusão.

 

         Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade do parágrafo 3º do art. 4º , da Lei Municipal nº 677, de 19 de novembro de 2007, do Município de Pedrinhas Paulista.

 

                            São Paulo, 22 de julho de 2008.

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça