Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo n.º 163.915-0/6-00

Requerente: Prefeito Municipal de Taubaté

Objeto de impugnação: Lei Complementar n.º 4.105, de 22 de outubro de 2007, do Município de Taubaté.

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

                                                           1.- Cuida-se de ação proposta pelo Prefeito Municipal de Taubaté, na qual se questiona a validade jurídico-constitucional da Lei Complementar n.º 4.105, de 22 de outubro de 2007, do Município de Taubaté[1], em face dos arts. 5.º e 144 da Constituição do Estado de São Paulo. 2.- Ao despachar a inicial, o Excelentíssimo Desembargador Relator não concedeu a liminar (fl. 31). 3.- Notificada, a Câmara de Taubaté prestou informações nos termos regimentais (fls. 46/59), alegando em preliminar a inadequação da via eleita e no mérito defendeu a constitucionalidade da norma, inclusive com fundamento nos arts. 23 e 30 da Constituição Federal e juntou documentos (fls. 46/72). 4. - O Senhor Procurador Geral do Estado, citado para os fins do § 2.º, do art. 90, da Constituição Paulista,  assevera não haver interesse concreto para a defesa do ato impugnado, em razão do nítido contorno local das previsões (fls. 42/44).

 

                                                                            Em resumo, é o que consta nos autos.

                                                            

                                                           Esta ação deverá ser julgada procedente.

 

                                                           Tem-se que no Brasil o governo municipal é de funções divididas. As funções administrativas foram conferidas ao Prefeito, enquanto que as funções legislativas são de competência da Câmara. Administrar significa aplicar a lei ao caso concreto. Assim, no exercício de suas funções, o Prefeito é obrigado a observar as normas gerais e abstratas editadas pela Câmara, em atenção ao princípio da legalidade, a que está pautada toda atuação administrativa, na forma do art. 111 da Carta Paulista.

 

                                                           Esse mecanismo de repartição de funções, incorporado ao nosso ordenamento constitucional, e que teve como principal idealizador o filósofo Montesquieu, impede a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo[2]. Daí ser vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira. 

 

                                                         Tamanho significado apresenta esse sistema de separação das funções estatais, em nosso ordenamento jurídico, que a própria Constituição, no seu art. 60, § 4.º, inciso III, cuidou de incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a aboli-lo. 

                                                        

                                                         Vistos esses aspectos, tem-se no caso sob exame que a Câmara de Vereadores de Taubaté aprovou a Lei n.º 4.105/07, derivada de projeto de iniciativa parlamentar.

 

                                                           Essa lei, malgrado os bons propósitos que a nortearam, não reúne a mínima condição de subsistir na ordem jurídica vigente, uma vez que, a pretexto de disciplinar assunto de interesse local, a Câmara Municipal de Taubaté acabou por interferir na esfera de competência do Executivo, acarretando, tal iniciativa, o desequilíbrio no delicado sistema de relacionamento entre os poderes municipais.

 

                                                           Com efeito, é irrecusável a competência da Câmara para legislar sobre os assuntos de interesse local, inclusive, referentes a direito urbanístico, etc., mas há limites que devem ser observados, e que decorrem, basicamente, da necessidade de preservar-se a convivência pacífica dos poderes políticos, entre os quais não existe nenhuma relação de hierarquia e subordinação, mas sim de independência e harmonia, em face do contido no art. 5.º, da Constituição do Estado de São Paulo.

 

                                                           Como já visto inicialmente, a administração municipal incumbe ao Prefeito, que é quem define as prioridades da sua gestão, as políticas públicas a serem implementadas e a direção do desenvolvimento urbano além dos serviços públicos que serão prestados à população. Nessa seara, a Câmara não tem como impor suas preferências, podendo quando muito formular indicações, mas não sujeitar aquela autoridade ao cumprimento de lei que, longe de fixar uma regra geral e abstrata, constitui verdadeira ordem ou comando, para que se faça algo.

 

                                                           Logo, se a iniciativa em exame for considerada válida – o que corresponde, na prática, a uma tentativa de restabelecer-se o sistema que vigorava ao tempo das Comunas -, ocorrerá uma hipertrofia do Legislativo, que sempre poderá impor suas vontades ao Executivo, por meio da edição de leis[3], criando uma verdadeira relação de subordinação e hierarquia entre os poderes, incompatível com o sistema adotado pela Constituição em vigor, o qual se baseia na independência e harmonia entre os poderes, cuja observância é vital para a preservação do Estado de Direito.

 

                                                         Na realidade, o diploma legal ora questionado é lei apenas em sentido formal’, porquanto não encerra o conteúdo de uma norma abstrata ou teórica, instituída em caráter permanente e de generalidade. As leis formais não se mostram regras jurídicas, mas simples atos administrativos dos poderes legislativos, indicando-se decisões particulares, tais como a lei orçamentária, as leis de autorização ou as leis que concedem favores especiais a determinadas pessoas. São leis que atendem a casos particulares, de natureza por vezes executiva, ou reguladoras de situações especiais. Bem por isso, aliás, é que são consideradas leis impróprias (Cf. DE PLACIDO E SILVA, “Vocabulário Jurídico”, ed. Forense, Rio de Janeiro, Volume III, 1984, p. 67).

 

                                                           Advém, daí, a necessidade de saber se a Câmara dispõe de ampla liberdade para editar leis que condicionam a atividade administrativa ou se há algum limite a essa prerrogativa, máxime nos casos em que a condicionante é fixada para a prática de ato que se insere na esfera de competência de outro Poder, tal como neste caso, em que se fixa áreas urbanas de especial proteção.

 

                                                           Na ordem constitucional vigente, como anotado em tópico precedente, não existe a mínima possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por intermédio da edição de leis. Em relação a esse aspecto, aliás, não paira nenhuma controvérsia, uma vez que a atual Constituição é suficientemente clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (CE., art. 47, inciso II) e a praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE., art. 47, inciso XIV).

 

                                                           Bem por isso, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que: “Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial.” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).

 

                                                           Nesse contexto, a aprovação de lei de iniciativa parlamentar, pela Câmara Municipal, que impõe ao Executivo o condicionante de aprovação pela Câmara, para que possa alterar de qualquer forma determinadas áreas, criando uma obrigação para setores de seu próprio organismo de execução, só pode ser interpretada como atentatória ao postulado básico da independência e harmonia entre os poderes (CE., art. 5.º, caput), visto que a Constituição em vigor não impõe nenhuma autorização especial para a prática de ato que se insere na órbita de competência tipicamente administrativa.

 

                                                         Em suma, a Câmara Municipal de Taubaté não pode arrogar a si a competência para autorizar a prática de atos concretos de administração, como criar condicionantes ou obrigações para serem executadas pela própria administração direta. Disso resulta a conclusão de que referido ato legislativo é incompatível com o princípio da independência e harmonia entre os poderes.

 

                                                         O Prefeito, enquanto chefe do Poder Executivo, exerce tarefas específicas à atividade de administrador, tendente à atuação concreta, referentes ao “planejamento, organização e direção de serviços e obras da municipalidade. Para tanto, dispõe de poderes correspondentes de comando, de coordenação e de controle de todos os empreendimentos da Prefeitura ... A execução das obras e serviços públicos municipais está sujeita, portanto, em toda a sua plenitude, à direção do Prefeito, sem interferência da Câmara, tanto no que se refere às atividades internas das repartições da Prefeitura (serviços burocráticos ou técnicos), quanto às atividades externas (obras e serviços públicos) que o Município realiza e põe à disposição da coletividade” (Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, RT, 3ª ed., pp. 870/873). Em idêntica lição, José Afonso da Silva, “O Prefeito e o Município”, Fundação Pref. Faria Lima, 1977, pp. 134/143.

 

                                                           Por outro lado, disciplinando atividade abstrata e genérica, a Câmara Municipal “não administra o Município, estabelece, apenas, normas de administração” (Hely Lopes Meirelles, ob. cit., p. 444). Não e o que se observa em relação à lei inquinada.     

                                                          

                                                           Em face do exposto, aguardo o julgamento de procedência desta ação direta, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei n.º 4.105, de 22 de outubro de 2007, do Município de Taubaté, por afronta aos arts. 5.º, 37,  47, II e XIV,  da Constituição Paulista, cuja observância é obrigatória pelos Municípios, por força do art. 144 e do art. 297 dessa mesma Carta Política.

São Paulo, 28 de julho de 2008.

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA,

no exercício de função delegada pelo

Procurador-Geral de Justiça



[1] “fls.22/23 - Dispõe sobre as Áreas de Especial Interesse Urbanístico do Município.” (Projeto de lei de autoria do Vereador Ângelo Mariano Filippini)

             

 

 

                       

[2] Em sua magistral obra “Esprit des lois”, Montesquieu formulou a seguinte advertência: “tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executá-las e o de julgar.”

[3] R. Carré de Malberg distingue Estado legal e Estado de Direito: “El Estado de derecho se establece simple y únicamente en interés y para la salvaguardia de los ciudadanos; sólo tiende a asegurar la protección de su derecho o de su estatuto individual. El régimen del Estado legal está orientado en otra dirección. Se relaciona con un concepto político referente a la organización fundamental de los poderes, concepto según el cual debe la autoridad administrativa, en todos los casos y respecto a todas las materias, subordinarse al órgano legislativo, en el sentido de que no podrá actuar sino en ejecución o por autorización de una ley. Esta subordinación no se reduce desde luego a aquellos actos de administración que producen efectos de orden individual respecto a los administrados, sino que se extiende, en principio, a todas las medidas de administración, hasta aquellas – reglamentarias o particulares – que, sin tocar al derecho de los administrados, conciernen únicamente al funcionamiento interno de los servicios administrativos y sólo deben dejar sentir sus efectos en el interior del organismo administrativo.” (Teoría General del Estado, Traducción de José Lión Depetre, Facultad de Derecho/UNAM e Fondo de Cultura Económica, México, 2001, p. 451)