Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo nº 164.041-0/4

Requerente: Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal de São José dos Campos

Objeto: Lei Complementar n.º 359/08, de 12 de maio de 2008.

Ementa: Lei Complementar n.º 359/08, de 12 de maio de 2008, que dispõe sobre a organização do quadro da Guarda Civil Municipal, institui novo plano de carreira, cria novas escalas de vencimentos e dá outras providências. Dispositivos contestados em face do art. 39 da Constituição Federal; dos artigos 124 e 129 da Constituição Paulista; e da Lei Complementar Municipal nº 56/92, que é o “Estatuto dos Servidores Públicos do Município”. Constituição do Estado como único parâmetro a ser considerado. Julgamento, no entanto, que não está adstrito à causa de pedir exposta na inicial. Legitimidade ativa do sindicato dos trabalhadores do serviço público municipal, embora detectado, no caso dos autos, defeito de representação. Lei que decorre da autonomia municipal e da prerrogativa que tem o Município de organizar o serviço público mediante regulação própria. Irrelevância da natureza formal da lei como complementar a despeito da inexistência da reserva constitucional em razão da matéria versada. Dispositivo que prevê a ascensão ao último degrau da carreira mediante escolha discricionária do Prefeito. Inviabilidade dessa solução por ofensa ao princípio da impessoalidade, previsto no artigo 111 da Constituição Paulista. Parecer pela procedência parcial da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade do inciso VII do artigo 29 da referida lei.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

1) Relatório.

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal de São José dos Campos, tendo por objeto os seguintes dispositivos da Lei Complementar nº 359/08, do Município de São José dos Campos: art. 5º, § 2º; 15, incisos II, IV e V; 18; 19; 20; 21; 29, inciso VII; 32 e seu § 2º; 33, § 3º; 35 e seu § 4º e incisos; 42 e seu § 4º; 43; e 52.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu (nº 13/2008) é de autoria do Prefeito Municipal e que, tendo sido aprovado pela Câmara Municipal, tornou-se lei que entrará em vigor no dia 2 de janeiro de 2009.

Esse diploma normativo que, segundo a inicial, dispõe “sobre a organização do quadro da Guarda Civil Municipal, institui novo plano de carreira, cria novas escalas de vencimentos e dá outras providências”, estaria em desacordo com o disposto no art. 39 da Constituição Federal; artigos 124 e 129 da Constituição Paulista; e artigo 222 da Lei Complementar Municipal nº 56/92, que é o “Estatuto dos Servidores Públicos do Município”.

A inicial está instruída com os documentos de fls. 28/292.

Pelo r. Despacho de fls. 284, o eminente Des. Boris Kauffmann, relator, denegou o pedido de suspensão liminar da vigência e eficácia da lei impugnada.

Vieram aos autos as manifestações da Câmara Municipal (fls. 309/320) e do Alcaide (fls. 326/414), ambas em defesa do ato normativo impugnado.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa da lei, observando que o tema é de interesse local (fls. 322/324).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

2) Preliminares

2.1. Capacidade processual

O Sindicato requerente tem legitimidade para propor a presente ação declaratória de inconstitucionalidade, de acordo com o que dispõe o art. 90, inc. V, da Constituição Paulista.

Todavia, como apontado às fls. 311 e 331, há defeito na representação, pois, de acordo com o estatuto encartado a fls. 32/43, essa entidade é representada, em Juízo e fora dele, pela Diretoria Colegiada (art. 20).

Vê-se na ata de fls. 44 que o subscritor do instrumento de procuração (fls. 28) é o Secretário de Assuntos Institucionais, órgão que, embora integre a Diretoria Colegiada (art. 19 do estatuto), com ela não se confunde.

É de se cumprir, portanto, o disposto no artigo 13 do CPC, sob pena de extinção do processo, sem julgamento de mérito, nos precisos termos do artigo 267, inciso VI, do CPC.

2.2. Parâmetro de constitucionalidade

O contraste da lei impugnada com dispositivos da Constituição Federal e de outras normas municipais não viabiliza o controle abstrato, concentrado e direto de constitucionalidade de lei municipal. Nessa ação, o único parâmetro a ser considerado é a Constituição do Estado (art. 125, § 2º, Constituição Federal). Nesse sentido:

“as ações diretas de inconstitucionalidade devem ater-se a contrastes com dispositivos constitucionais, não com normas de direito comum, independente de sua hierarquia. A violação de dispositivo de leis ordinárias, leis complementares e mesmo de preceitos inseridos em lei orgânica do município, não pode ser invocada em ação direta” (TJSP, ADI 46.911-0/4-00, Órgão Especial, Rel. Des. Franciulli Netto, v.u., 08-09-1999).

Desse modo, nossa análise deveria se conter na verificação da compatibilidade dos dispositivos destacados com os artigos 124 e 129 da Constituição do Estado de São Paulo – a seguir transcritos – que foram os únicos parâmetros válidos apontados pelo requerente como violados:

Artigo 124 - Os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público terão regime jurídico único e planos de carreira.

§ 1º - A lei assegurará aos servidores da administração direta isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados do mesmo Poder, ou entre servidores dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho.

 (...)

Artigo 129 - Ao servidor público estadual é assegurado o percebimento do adicional por tempo de serviço, concedido no mínimo por qüinqüênio, e vedada a sua limitação, bem como a sexta-parte dos vencimentos integrais, concedida aos vinte anos de efetivo exercício, que se incorporarão aos vencimentos para todos os efeitos, observado o disposto no art. 115, XVI, desta Constituição.

Cabe ressalvar, entretanto, que, por força do artigo 144 da Constituição Estadual, é possível reconhecer a inconstitucionalidade da norma questionada ao se detectar a sua contrariedade com princípios da Carta Política de observância obrigatória pelos Estados-membros.

Com efeito, ao sintetizar os princípios ligados ao controle da constitucionalidade, Alfredo Buzaid[1] afirma que “o tribunal não se pronunciará sobre a constitucionalidade de uma lei, salvo em litígio regularmente submetido ao seu conhecimento”. Instaurada a relação processual do controle concentrado, entretanto, nada impede que se julgue procedente a ação por causa de pedir diversa da exposta na inicial.

No julgamento da ADI n. 2.396/MS[2], a Ministra Ellen Gracie afirmou ser possível “pelos fatos narrados na inicial, verificar[-se] a ocorrência de agressão a outros dispositivos constitucionais que não os indicados na inicial”.

Aliás, no julgamento da ADI-MC n. 2396/MS[3], o Pleno do Supremo, em acórdão relatado pela mesma magistrada, foi mais incisivo: “O Tribunal não está adstrito aos fundamentos invocados pelo autor, podendo declarar a inconstitucionalidade por fundamentos diversos dos expendidos na inicial”.

Fica, destarte, aberta a possibilidade de se aferir a constitucionalidade dos dispositivos destacados na inicial em face de qualquer dispositivo da Carta Bandeirante, ainda que o autor da ação não os tenha indicado expressamente, desde que seja verificada a sua incompatibilidade com princípios constitucionais de observância obrigatória pelo Município.

Com essa premissa, passamos à análise dos dispositivos destacados na inicial.

3) Mérito

Transcrevem-se os dispositivos acoimados de inconstitucionais:

Art. 5º Ficam criados os seguintes cargos de comando na Guarda Civil Municipal, de provimento em comissão de livre nomeação e exoneração:

   I - 01 (um) Comandante - padrão de vencimento 23;

   II - 01 (um) Subcomandante - padrão de vencimento 22.

   § 1º O Comandante e o Subcomandante serão escolhidos, pelo Prefeito Municipal, dentre profissionais com reputação ilibada, formação de nível superior e experiência em atividades de comando e segurança.

   § 2º Se designados para o exercício dos cargos de que trata este artigo Guardas Civis Municipais ocupantes do último posto da carreira, o serão sem prejuízo do adicional de risco de vida e do Regime Especial de Trabalho de Guarda, e receberão gratificação sobre o vencimento de 60 % (sessenta por cento), pela função de Subcomandante e 100% (cem por cento), para função de Comandante, enquanto permanecerem no cargo de provimento em comissão, gratificação que não se incorporará aos vencimentos do servidor para nenhum efeito legal.

Art. 15. São requisitos mínimos, além dos estabelecidos no artigo 5º da Lei Complementar nº 56, de 24 de julho de 1992, para a investidura no cargo de provimento efetivo de Guarda Civil Municipal 2ª Classe:

I - haver concluído o ensino médio;

II - ter idade máxima de 25 anos, completados até o dia do término da inscrição ao concurso público de Guarda Civil Municipal;

III - apresentar certidão negativa dos distribuidores criminais, nos lugares de residência do candidato nos últimos 05 (cinco) anos;

IV - altura mínima de 1,70m (um metro e setenta centímetros) para homens e 1,65m (um metro e sessenta e cinco centímetros) para mulheres;

   V - possuir Carteira Nacional de Habilitação válida e definitiva nas categorias “A” e “B”.

Art. 18. Para fins de avaliação no estágio probatório, além dos fatores previstos nos incisos I a V do artigo 20 da Lei Complementar nº 56, de 24 de julho de 1992, serão acrescidos, exclusivamente, para avaliação do Guarda Civil Municipal 2ª Classe, os seguintes fatores:

I - obediência hierárquica;

II - conduta moral e profissional que se revele compatível com suas atribuições;

 III - cometimento de infração disciplinar ou irregularidade administrativa grave;

IV - prática de ilícito penal;

 V - conclusão e aproveitamento do curso de formação de ingresso.

   Parágrafo único. A falta de aproveitamento ou a não conclusão do curso a que se refere o inciso V deste artigo, implicará a exoneração do servidor em estágio probatório.

Art. 19. A Comissão Especial instituída para a avaliação especial de desempenho no estágio probatório, condição para a aquisição da estabilidade, será composta por 03 (três) membros, sendo 01 (um) da Secretaria de Administração e 02 (dois) membros da Guarda Civil Municipal.

Art. 20. O Guarda Civil Municipal será submetido, anualmente, à avaliação periódica de desempenho, que obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência, contraditório e ampla defesa, observados os seguintes fatores:

I - qualidade do trabalho;

II - liderança;

III - iniciativa;

IV - presteza;

V - aproveitamento em programa de capacitação;

VI - assiduidade;

VII - pontualidade;

VIII - uso adequado dos equipamentos e instalações de serviço;

IX - capacidade de trabalho em equipe.

§ 1º A aplicação dos fatores a que se refere o “caput” deste artigo e os sistemas de avaliação serão estabelecidos em regulamento.

§ 2º Do total de pontos da avaliação, no mínimo 60% (sessenta por cento) serão atribuídos em função dos fatores estabelecidos nos incisos I a V deste artigo.

§ 3º Na avaliação de desempenho de que trata este artigo, serão adotados os seguintes conceitos:

I - excelente: igual ou superior a 90% (noventa por cento) da pontuação máxima;

II - bom: igual ou superior a 70% (setenta por cento) e inferior a 90% (noventa por cento) da pontuação máxima;

III - regular: igual ou superior a 50% (cinqüenta por cento) e inferior a 70% (setenta por cento) da pontuação máxima;

IV - insatisfatório: inferior a 50% (cinqüenta por cento) da pontuação máxima.

§ 4º A Administração dará ao servidor conhecimento prévio das normas, dos critérios e dos conceitos a serem utilizados na avaliação periódica de desempenho de que trata este artigo.

Art. 21. A avaliação periódica de desempenho será realizada por Comissão de Avaliação composta por, no mínimo, 03 (três) e, no máximo, 05 (cinco) servidores efetivos, com mais de 03 (três) anos de exercício, com nível hierárquico igual ou superior ao do avaliado.

§ 1º A avaliação será homologada pelo Subcomandante da Corporação, dela dando ciência ao interessado.

§ 2º O conceito de avaliação anual será baseado exclusivamente na aferição dos fatores previstos nesta Lei Complementar, sendo obrigatória a indicação, no termo final de avaliação, dos fatos, das circunstâncias e dos demais elementos de convicção, bem como a anexação do relatório relativo ao colhimento de provas testemunhais e documentais, quando for o caso.

Art. 29. Dar-se-á a promoção para o cargo de Guarda Civil Municipal Inspetor Regional mediante atendimento dos seguintes requisitos:

VII - ser escolhido pelo Prefeito Municipal em lista tríplice encaminhada pelo Comando da Corporação.

Art. 32. A jornada de trabalho do Guarda Civil Municipal será fixada pelo Comandante, de acordo com a natureza e necessidade do serviço, não ultrapassando o limite de 44 (quarenta e quatro) horas semanais, sujeita a escalas de revezamento e plantões.

§ 1º Os integrantes da Guarda Civil Municipal estão sujeitos à jornada especial de trabalho, que se caracteriza pelo cumprimento de horário especial e de plantões noturnos.

§ 2º Em caso de situações excepcionais e temporárias ou imperiosa necessidade de serviço, os integrantes da Guarda Civil Municipal poderão ser convocados para prestar serviço em regime de horas extraordinárias, que não deverão ultrapassar o limite máximo de 60 (sessenta) horas mensais.

Art. 33. Fica criado o Regime Especial de Trabalho de Guarda - RETG, caracterizado pelo cumprimento de horário e local de trabalho variável, prestação de serviço em domingos, feriados e plantões noturnos.

(...)

§ 3º A gratificação prevista no § 2º deste artigo incorporar-se-á, para fins de aposentadoria, aos vencimentos do servidor ativo, na proporção de 10% (dez por cento) após 03 (três) anos de exercício no cargo, 20% (vinte por cento) após 05 (cinco) anos de exercício, 40% (quarenta por cento) após 07 (sete) anos de exercício, 60% (sessenta por cento) após 10 (dez) anos de exercício, 80% (oitenta por cento) após 12 (doze) anos e 100% (cem por cento) após 15 (quinze) anos de exercício, não sendo cumulativa a incorporação da gratificação por tempo de exercício de que trata este dispositivo.

Art. 35. As disposições estabelecidas nesta Lei Complementar alcançarão os Guardas Civis Municipais que ingressarem na carreira a partir de sua vigência e aqueles em exercício que expressamente optarem pelo presente Plano de Carreira, Cargos e Vencimentos.

§ 4º Feita a opção pelo novo regime ora instituído, o Guarda Civil Municipal fica automaticamente enquadrado no cargo de Guarda Civil Municipal 2ª Classe, desde que:

I - apresente escolaridade de ensino médio completo;

II - demonstre condicionamento físico compatível com as atribuições do cargo;

III - possua Carteira Nacional de Habilitação válida e definitiva nas categorias “A” e “B”.

Art. 42. A nomeação dos cargos de Comandante e Subcomandante da Guarda Civil Municipal deverá ser feita de acordo com o interesse da Administração Pública.

§ 4º O Adicional de Risco de Vida e o Regime Especial de Trabalho de Guarda, incidirão sobre o padrão do cargo ao qual estiver designado, conforme previsto no §1º deste artigo.

Art. 43. Esta Lei Complementar aplica-se aos ocupantes dos cargos ou funções de vigilante, vigilante-líder e vigilante-rondante e que se encontram lotados na Guarda Civil Municipal.

Art. 52. Ficam revogadas as disposições em contrário, em especial as Leis nºs 3.298, de 06 de janeiro de 1988 e 5.617, de 03 de abril de 2000.

Os artigos da Constituição Estadual que, segundo o autor, foram violados, devem ser interpretados à luz do artigo 18 da Carta Política, que consagra a autonomia municipal.

A Lei Maior concebeu o município como entidade indispensável ao nosso sistema federativo, integrando-o na organização político-administrativa e garantindo-lhe plena autonomia, como se observa da análise dos artigos 1.º, 18, 29, 30 e 34, inciso VI, “c” da Constituição Federal[4].

Na definição de Hely Lopes Meirelles, “autonomia é prerrogativa política outorgada pela Constituição a entidades estatais internas (Estados-membros, Distrito Federal e Municípios), para compor o seu governo e prover a sua Administração segundo o ordenamento jurídico vigente (CF., art. 18). É a administração própria daquilo que lhe é próprio. Daí por que a Constituição assegura a autonomia do Município pela composição de seu governo e pela administração própria no que concerne ao seu interesse local (art. 30, inciso I)”[5].

A autonomia municipal assenta-se em quatro capacidades básicas: (a) auto-organização, mediante a elaboração de lei orgânica própria (CF., art. 29), (b) autogoverno, pela eletividade do Prefeito e dos Vereadores, (c) autolegislação, mediante competência para a elaboração de leis municipais sobre áreas que são reservadas à sua competência exclusiva e suplementar, (d) auto-administração ou administração própria, para manter e prestar todos os serviços que sejam de interesse local[6].

E nas quatro capacidades acima expostas estão caracterizadas a autonomia política (capacidades de auto-organização e autogoverno), a autonomia normativa (capacidade de fazer leis próprias sobre matéria de sua competência), a autonomia administrativa (administração própria e organização dos serviços locais) e a autonomia financeira (capacidade de decretação de seus tributos e aplicação de suas rendas).

Como corolário do poder de auto-organização dos municípios, estes podem dispor sobre os seus servidores de modo muito abrangente.

Cabe-lhes, segundo a doutrina, “regular, no que respeita a seus servidores estatutários, a admissão, a promoção, os direitos, os deveres, a ação e o procedimento disciplinar, as penas cabíveis e a extinção do vínculo”[7].

Celso Antônio Bandeira de Mello ensina, a propósito, que Estados, Municípios e Distrito Federam desfrutam de autonomia para organizar seu pessoal, fixando as regras que melhor lhes pareçam para a organização e disciplina de atividade funcional de seus agentes. Os limites para essa atividade se encontram na Constituição Federal[8].

Não é exigível, portanto, que os municípios regulem todas as suas carreiras num único diploma legal. E, no caso em discussão, cabe dizer que o legislador se empenhou para abarcar num único diploma legislativo tudo o que diz respeito à Guarda Municipal, o que parece consultar a boa técnica.

À vista da prolatada autonomia, a lei questionada, quando considerada em seu conjunto, não se apresenta em contradição com os artigos 124, § 1º e 129 da Constituição Bandeirante. Dito diploma legal representa verdadeiro estatuto da Guarda Civil Municipal, corporação com dignidade constitucional, para a qual apresenta soluções que, se não são as melhores, decorrem de opção política discricionária do legislador, acerca da qual não nos cabe questionar.

Nesse sentir, não divisamos inconstitucionalidade no art. 5º, que cria dois cargos de provimento em comissão no âmbito da milícia. Comandante e subcomandante da Guarda Municipal são cargos aos quais correspondem funções de chefia e direção, o que atende ao comando do artigo 115, inc. V, da CE. 

Também não se constata evidente afronta ao texto constitucional o disposto no § 2º do art. 5º, que mantém gratificação para os servidores de carreira que, eventualmente, forem designados para os cargos já citados.

Os requisitos mínimos estabelecidos para a investidura no cargo de provimento efetivo de guarda civil (art. 15) não são discriminatórios e atendem às peculiaridades da função. Nesse passo, é oportuno lembrar que os requisitos citados são razoáveis[9] e, por isso mesmo, exigíveis ao funcionário que se ocupará das peculiares missões da área de segurança pública.

As disposições do artigo 18 – submissão do guarda municipal em início de carreira a estágio probatório – atendem ao interesse público e estão de acordo com os deveres de moralidade e eficiência impostos à Administração pelo artigo 111 da Constituição Estadual.

Decorre dessa exigência legal a instituição, pelo artigo 19, de comissão para a avaliação do servidor em estágio probatório, outra vez sem contradição com o parâmetro constitucional.

Os artigos 20 e 21 determinam a avaliação anual do servidor público. Antes de causar espanto, disposições da espécie deveriam ser comuns na Administração Pública, outra vez à luz do dever de eficiência. Embora haja campo para a subjetividade sempre perniciosa, a lei consagra a oportunidade de defesa e reserva ao regulamento as especificidades dessas providências, sem incorrer em inconstitucionalidade.

Os artigos 32 e 33 dispõem sobre jornada de trabalho e regime especial de trabalho, fixando o limite de horas e prevendo a sujeição do servidor a escalas de revezamento e plantões, do que decorre o pagamento de gratificações que, ao longo do tempo, se incorporam aos vencimentos. Os dispositivos se justificam pelas missões afetas à Guarda Municipal, que impõem ônus de maior monta a seus integrantes, quando comparados àqueles que decorrem do exercício de outros cargos da Administração.

O artigo 35, ao contrário do que sugere a inicial, preserva o direito adquirido, porque concede ao atual integrante da Guarda Municipal a possibilidade de permanecer no regime revogado. É legítima a opção legislativa que institui uma nova carreira, com requisitos próprios, cujos cargos serão preenchidos também pelos servidores antigos que, se habilitados, expressamente os pleiteiem. Solução análoga foi considerada legítima pelo Tribunal de Justiça quando da edição da Lei Municipal (da Capital) nº 13.768, de 26 de janeiro de 2004, que criou o plano de carreira da Guarda Civil Metropolitana, conforme se constata nos documentos de fls. 401/408, que acompanharam a petição do Alcaide.

O artigo 42 diz que “a nomeação dos cargos de Comandante e Subcomandante da Guarda Civil Municipal deverá ser feita de acordo com o interesse da Administração Pública”. Esses cargos, como se constata da leitura do artigo 5º, são de provimento em comissão, de tal modo que o dispositivo em comento é ocioso ou não contém regra que mereça acurada atenção.

O artigo 43 explicita que a lei se aplica aos cargos e funções que especifica e sua repercussão há de ser compreendida a partir da conjugação desse dispositivo com o artigo 35, já comentado, pois somente àqueles se dará o direito de optar pelos regimes anterior e instituído.

O artigo 52 contém, sem qualquer ofensa a parâmetro constitucional, a óbvia determinação de que ficam revogadas as disposições em contrário, em especial as Leis nºs 3.298, de 06 de janeiro de 1988 e 5.617, de 03 de abril de 2000, que tratam da Guarda Municipal.

Resta dizer, diante do debate proposto na inicial sobre a natureza jurídica da lei impugnada, que, ainda que se admitisse que a matéria deveria ter sido veiculada em lei ordinária, não se apontaria a inconstitucionalidade da lei pelo simples fato de se apresentar como formalmente complementar. O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de se pronunciar sobre esse assunto e, em diversas decisões sobre a Cofins, deixou assentado que a Lei Complementar nº 70/91, a despeito de seu caráter formalmente complementar, veiculou matéria não submetida a reserva constitucional de lei complementar; a conseqüência disso para a Corte Constitucional não é a declaração de invalidade da lei, mas o reconhecimento de que as alterações de seu texto podem ser introduzidas por simples lei ordinária[10].

Para finalizar, tenho para mim que o inciso VII do artigo 29, e só ele, é, de fato, inconstitucional, por violar o princípio da impessoalidade, previsto no artigo 111 da Constituição Paulista.

O artigo 29 da lei impugnada elenca os requisitos para a promoção ao último degrau da carreira: Guarda Civil Municipal Inspetor Regional. São exigências razoáveis, que prestigiam o mérito do servidor, à exceção do que diz o inciso VII: “ser escolhido pelo Prefeito Municipal em lista tríplice encaminhada pelo Comando da Corporação”.

Nesse passo, entende-se, com Celso Antônio Bandeira de Mello, que o princípio da impessoalidade é corolário do princípio da igualdade e que a lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar eqüitativamente todos os cidadãos[11].

A propósito, Fábio Konder Comparato anota que “a força desse princípio impõe-se não só ao aplicador da lei, na esfera administrativa ou judiciária, mas também ao próprio legislador. Em outras palavras, quando a Constituição consagra a igualdade, ela está proibindo implicitamente, quer a interpretação inigualitária das normas legais, quer a edição de leis que consagrem, de alguma forma, a desigualdade vedada. Ao lado, pois, de uma desigualdade perante a lei, pode haver uma desigualdade da própria lei, o que é muito mais grave”[12].

Dessa orientação se afastou o legislador ao permitir que servidores públicos tenham de se submeter à lista tríplice e à discricionariedade do Prefeito para a ascensão ao cargo mais elevado da carreira da Guarda Municipal, anotando-se que os critérios objetivos constantes dos incisos precedentes já são suficientes para a identificação do funcionário mais qualificado à promoção.

4) Conclusão.

Diante do exposto, superadas as preliminares, opino pela parcial procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade do inciso VII, do artigo 29 da Lei Complementar nº 359/08, de 12 de maio de 2008, do Município de São José dos Campos .

 

São Paulo, 10 de outubro de 2008.

 

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

jesp



[1] Da ação direta, São Paulo: Saraiva, 1958, p. 22.

[2] Julgamento do Pleno do STF em 08/05/2003. Publicação: DJ de 1/8/2003, p. 100.

[3] Publicação: DJ de 14/12/2001, p. 23.

[4] Cf. Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 7ª. ed., São Paulo: Atlas, p. 261.

[5] Cf. Direito Municipal Brasileiro, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 83.

[6] José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo, 8ª. ed., São Paulo: Malheiros, p. 546.

[7] Diógenes Gasparini. Direito Administrativo. 13ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 173.

[8] Apud Diógenes Gasparini. Direito Administrativo. 13ª. ed., São Paulo: Saraiva, 2008,  p. 174.

[9] Informativo STF - Brasília, 14 a 18 de outubro de 1996 – n.º 49. Inscrição em Concurso: Limite de Idade. A estipulação de limite de idade para a inscrição em concurso público só se legitima em face do art. 7º, XXX, da CF - "proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil" (aplicável aos servidores públicos por força do disposto no art. 39, § 2º, da CF) - quando tal limite possa ser justificado pela natureza das atribuições do cargo a ser preenchido. Na falta de justificação razoável, a lei, ou o edital, que adote esse critério para restringir o universo de concorrentes será inconstitucional.

[10] RTJ 156/721-722.

[11] Celso Antônio Bandeira de Mello. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª. ed., São Paulo: Malheiros, p. 10.

[12] Precisões sobre os conceitos de lei e de igualdade jurídica. São Paulo: RT, ano 87, v. 750, abril de 1998, p. 11/19